A Europa não tem unidade linguística. Nem religiosa. Nem cultural. Ainda bem. Somos diversos, plurais. A Europa não tem coesão política interna nem externa. Essa é a nossa tragédia, o flanco exposto. Eugénia de Vasconcellos para o Observador:
As
redes sociais, o Facebook, o Instagram, o Twitter e outras, permitem a
transmissão da informação a uma velocidade extraordinária. Porém, e de
igual forma e com igual velocidade permitem a desinformação e
manipulação enquanto nos transformam num somatório de dados vendidos ao
todo e à peça. Muita da desinformação e propaganda das redes sociais
transitou para os media de referência, não apenas pela desvalorização
profissional de jornalistas e cronistas substituídos por amplificadores
de desinformação, mas também pela mais elementar falta de critério:
todos sabemos apontar o dedo à pró-trumpista Fox News, entre os media,
amplificador major, mas nem por isso a nossa imprensa e televisões
deixam de favorecer a recessão democrática quando preferem colunistas e
comentadores com cargos políticos e partidários, e seus acólitos, pagos
ou sem pagamento, e isto num país já em queda das democracias plenas e
em progressivo empobrecimento, ano após ano confirmado pelo Eurostat,
nesta corrida para o último lugar que nos arriscamos a vir a disputar
com a Bulgária.
Se
depois da enorme investida de desinformação russa contra os Estados
Unidos, materializada na radicalização do Partido Republicano; se depois
da enorme investida russa na Europa, com o fomento das direitas
populistas-nacionalistas; se depois da enorme investida russa em redes
de conspiração, particularmente naquele espaço crítico onde coincidem as
direitas nacionalistas e a esquerda woke como no movimento
anti-vacinas; se depois de tudo isto não tivermos consciência da nossa
vulnerabilidade, tanto colectiva quanto individual, por não sabermos
distinguir entre as legítimas diferenças de opinião e a construção de
redes de desinformação por países ou organizações hostis com a clara
intenção de subverter o pensamento e as regras democráticas, não teremos
capacidade política para responder adequadamente a estas enormes
investidas que a cada dia clarificam o objectivo em marcha há anos e com
o qual, mais ou menos voluntariamente, temos colaborado: a decadência
ocidental. Nada fazer é favorecer a sua concretização. E nada é o que
muitos de nós fazem quando esquecem que o jornalismo tal como a opinião
devem estar ao serviço da democracia, mais, devem ser um dos pilares da
democracia. E nada é o que muitos decisores políticos tecnocraticamente
refastelados fazem. E continuarão a fazer.
Umberto
Eco diz as «conspirações reais não são misteriosas». Esta, a de em tudo
favorecer a corrupção das democracias liberais, não tem qualquer
mistério. As falhas dos regimes democráticos, as suas fraquezas e os
seus erros, são o seu próprio Cavalo de Tróia. Basta fazer uma pergunta:
quem sai favorecido, fortalecido, com a recessão democrática?
Obviamente, não será, como num filme de Bond, um mau com um gato ao
colo, de olhar oblíquo e gargalhada assustadora.
Depois
da anexação da Crimeia, as intenções russas tornaram-se evidentes mesmo
para os não-especialistas – nos quais me incluo. Isso não obstou ao
Nord Stream 2. Tal como nada obsta à dependência chinesa, nem ao
investimento na China, com ou sem genocídio Uigur e ensaios de
totalitarismo tecnológico. A Europa rica cedeu a liberdade à economia. A
Alemanha à cabeça. A Europa pobre cedeu a coisa pública à política
partidária comprometendo tanto a prosperidade quanto a liberdade.
Portugal na cauda. Quem sai fortalecido?
A
falta de coesão política europeia é, talvez, a nossa maior
vulnerabilidade. A Europa é, antes de qualquer coisa, uma ideia. Não é
um tratado comercial. É uma ideia de si mesma assente num conjunto de
valores que as democracias liberais substanciam. Quando a economia dos
países ricos e a corrupção pública dos países pobres cedem nas
liberdades e nos mecanismos auto-correctivos do estado de direito, abrem
as portas da cidade ao inimigo. Tornam-se reféns dos outros tanto
quanto de si-mesmos. Vimo-lo claramente com a viragem nacionalista e
populista na Hungria e na Polónia. A Europa não fala a uma só voz na sua
política externa enquanto for polifónica na sua política interna – isto
não é sinónimo de ausência do necessário, obrigatório, pluralismo
democrático. Vimo-lo com igual clareza na aplicação das sanções
económicas à Rússia: a Alemanha e a Hungria indisponíveis para acelerar a
sua independência energética. A Polónia disponível para um corte
radical e imediato. Sem unidade política como será feita a manutenção
das sanções impostas ao longo do tempo? E a Nato, se não há unidade de
decisão como no caso da Hungria?
A
Europa não tem unidade linguística. Nem religiosa. Nem cultural. Ainda
bem. Somos diversos, plurais. A Europa não tem coesão política interna
nem externa. Essa é a nossa tragédia, o flanco exposto. Mas da mesma
forma que estamos a aprender, por força da mais absoluta necessidade, a
gerir a desinformação através do rigor da informação, e a gerir a
amplificação, o retweet, o reencaminhar, através da opinião, decerto
poderemos aprender a decisão política através das suas consequências.
A autora escreve segundo a antiga ortografia
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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