Luciano Trigo comenta, para a Gazeta do Povo, o livro de Roger Moorhouse, recém-lançado no Brasil, que investiga:
Na
vastíssima literatura sobre a Segunda Guerra, o pacto de não-agressão e
cooperação econômica firmado em 23 de agosto de 1939 entre a Alemanha
nazista e a União Soviética stalinista ocupa um espaço relativamente
modesto – apesar de essa aliança ter sido decisiva para a eclosão do
conflito, poucos dias depois, e para estabelecer os rumos dos primeiros
anos da guerra. Rigorosamente apurado, com base em fontes primárias e
material inédito, o recém-lançado no Brasil “O pacto do diabo – A
aliança de Hitler com Stálin: 1939-1941”, do historiador britânico Roger
Moorhouse, representa uma contribuição importante para corrigir essa
lacuna.
Também
autor de “Killing Hitler” (2007) e “Berlin at War” (2010), o próprio
Moorhouse reconhece: “Nossa ignorância sobre o assunto é espantosa.
Enquanto todas as demais curiosidades, campanhas ou catástrofes da
Segunda Guerra têm sido interpretadas e reinterpretadas, o pacto
permanece basicamente desconhecido – em geral mencionado num único
parágrafo, uma nota de rodapé da História”. Há um pouco de exagero aí,
já que outros historiadores escreveram obras importantes sobre o tema,
mas de fato o assunto recebeu menos atenção do que devia
Até
hoje, aliás, este é um tema difícil de engolir para a esquerda, cujo
comportamento diante de qualquer menção à aliança da União Soviética com
os nazistas vai da negação pura e simples ao argumento tosco de que
Stálin só estava tentando ganhar tempo para se preparar para a guerra – a
explicação soviética oficial para o episódio. O livro de Moorhouse
refuta de maneira convincente essa tese, mas o fato é que o comunismo
continuou ostentando por décadas uma atitude de superioridade moral em
relação aos seus aliados provisórios, em parte devido aos sacrifícios
feitos pela União Soviética no final da guerra para derrotar os
nazistas, agora novamente convertidos em inimigos.
Assinado
pelo ministro das relações Exteriores Alemão, Joachim Von Ribbentrop, e
seu equivalente russo, Vyacheslav Molotov, o pacto atendeu a interesses
econômicos bastante pragmáticos: a União Soviética exportaria
matérias-primas desesperadamente necessárias para a Alemanha, em troca
de armas e transferência de tecnologia. O autor dá atenção particular às
relações comerciais entre os dois países, um fator importante
geralmente ignorado: as demandas absurdas dos russos teriam provocado a
desconfiança crescente de Hitler, que rompeu unilateralmente o pacto ao
ordenar a invasão da União Soviética por tropas alemãs em 22 de junho de
1941, após 22 meses de vigência do acordo.
Um
apêndice do livro traz o texto completo do pacto – surpreendentemente
conciso, com apenas sete parágrafos e menos de 300 palavras – e do
Protocolo Secreto Adicional, que definia critérios para a partilha de
áreas de influência entre os dois países na Europa. A autenticidade
desse protocolo, aliás, só foi reconhecida em 1989 pela União Soviética,
já à beira do esfacelamento. Outro ponto alto do livro de Moorhouse são
os perfis psicológicos que ele faz de Ribbentrop e Molotov, entre
outros personagens secundários da trama.
Hitler
e Stálin eram inimigos declarados desde a ascensão do Nazismo ao poder
em 1933: diante do anúncio da parceria, um célebre cartum da época
registrou assim o encontro imaginário entre os dois ditadores (que nunca
se conheceram pessoalmente): “O lixo da Terra, eu presumo”, cumprimenta
Hitler, e Stalin responde: “O assassino sangrento de trabalhadores, eu
presumo”.
Particularmente interessante é a análise que o autor faz das consequências desastrosas do pacto para a Europa Oriental e os países bálticos, como a Finlândia, que, a exemplo, da Romênia e da Polônia, foram cruelmente ocupados. Nos anos seguintes, povos inteiros foram escravizados pela União Soviética: poloneses, letões, estonianos, lituanos. Milhares de pessoas foram torturadas e mortas, bastando citar o massacre de Katyn, em 1940, quando os soviéticos executaram mais de 20 mil poloneses de uma só vez.
Isso
sem falar nos milhões que foram deportados para uma vida de trabalhos
forçados na Sibéria, onde só uma minoria sobrevivia: segundo o autor, o
índice de mortalidade nos Gulags era mais elevado do que nos campos de
concentração de Hitler. “Hitler fez a limpeza étnica das terras sob seu
controle, Stálin fez a limpeza política daquelas sob o seu”, escreve
Moorhouse. “Apesar disso, embora os crimes de Hitler sejam documentados e
bem conhecidos, discutidos na mídia e temas de currículos de escolas e
universidades no mundo inteiro, os crimes de Stálin mal penetram a
consciência pública. Na verdade, Hitler e Stálin eram pássaros da mesma
plumagem totalitária”.
Rasgado
por Hitler e justificado por Stálin como uma necessidade estratégica, o
pacto teve uma longa sobrevida, com efeitos que persistiram por
décadas: ainda hoje, o mapa da Europa central e oriental é basicamente
resultado das fronteiras traçadas às pressas por Molotov e Ribbentrop.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário