Nada de conservadorismo ou liberalismo: a ideologia bolsonarista é uma concepção de extrema direita. Lúcido artigo do professor Denis Rosenfield, publicado pelo Estadão:
A
ideologia bolsonarista configura um caso de concepção de extrema
direita, que não se deixa confundir com posições de direita conservadora
e liberal. Ela se constitui enquanto conjunto de ideias que estrutura a
sua ação, visando à instituição de sua própria forma de poder.
Criticá-la por “insensata”, “maluca”, “macabra” ou “contraditória”
realça isoladamente determinados aspectos seus sem, no entanto, abarcar a
sua totalidade. São posições que, por assim dizer, se situam em outra
perspectiva, a de uma normalidade que é posta em questão. Vejamos alguns
de seus eixos estruturantes.
A figura do líder
– Bolsonaro se produz como um líder de massas, que com elas procura
estabelecer uma interação direta, sem o uso de mediações, como a Câmara
dos Deputados e o Senado. Ou seja, a representação política é objeto de
escárnio, salvo nos casos em que se torna necessária, como hoje ocorre
com o restabelecimento das relações com alguns partidos políticos, por
temor de impeachment ou de perda de poder. Seu objetivo consiste em
colocar-se acima das instituições e da sociedade, como se só ele
soubesse o que é melhor para elas. Não hesita em se colocar como grande
médico e cientista, prescrevendo medicamentos ineficazes, como a
cloroquina. Sozinho sabe o que é melhor para a saúde dos brasileiros,
menosprezando a ciência por princípio. Em outra versão, é o
“super-homem” contra os “maricas”. Eis por que é tratado por mito, por
maior que seja a bobagem que diga. O mito é o lugar do seu saber.
O medo
– Insufla ele o medo da pandemia e do desemprego, ao mesmo tempo que se
apresenta como a solução da pandemia e do desemprego. Não é ele
responsável por nada, tudo atribui aos outros como causadores desta
situação, sejam os chineses, os comunistas ou os políticos a ele não
alinhados. Ele precisa do medo para governar e se põe na posição de
“salvador”. Isso pode soar paradoxal, porém só o é na perspectiva da
política clássica, e não da de extrema direita, que expressa a sua
concepção. Mais especificamente, o seu modo de tratamento da pandemia
corresponde a essa orientação, jogando com o medo da doença e da morte,
declarando procurar minimizá-las. O Brasil chega às 210 mil mortes, no
entanto, é como se fosse “da vida” a morte causada por descaso, incúria
e, em certo sentido, intencionalmente, visto que vem a fazer parte desse
jogo macabro da política.
Ausência do princípio da não contradição –
O princípio da não contradição, formulado por Aristóteles, que veio a
fazer parte do exercício da razão e da política, não opera numa
concepção de extrema direita. O líder diz uma coisa num dia e o seu
contraditório no dia seguinte, e assim indefinidamente. Seu traço
característico é que sempre tem razão, por mais irracional que seja a
sua posição. Um dia declara o presidente que jamais comprará uma vacina
chinesa, em outro a compra; um dia a covid-19 é uma mera “gripezinha”,
em outro, uma doença mortal; um dia, ao arrepio de qualquer verdade,
considera que apenas seus medicamentos mágicos são eficazes e em outro,
que o Brasil é o país que tem o melhor desempenho mundial no combate a
essa pandemia. Um dia é contra a corrupção na política, em outro protege
os seus que estão nela envolvidos.
Distinção amigo e inimigo
– A política de extrema direita está baseada na distinção
amigo/inimigo, formulada pelo teórico nazista Carl Schmitt. Todo aquele
que não se alinha ao líder em suas mutáveis posições, uma vez que ele
detém a razão e a verdade, é tido por inimigo. Não há possibilidade de
diálogo e conciliação, salvo sob a forma enganosa produzida por alguma
oportunidade do momento. Ela está centrada na destruição do outro, na
não aceitação da crítica e na tentativa de impor diretamente uma relação
hierárquica de comando: sou “eu” quem manda! Quem não estiver comigo
deve ser abatido, o que vale para “amigos” que, por discordância,
deixaram de sê-lo. Veja-se o caso de agora “ex-amigos” do presidente que
ousaram discordar de suas opiniões. Observe-se que tal tipo de política
cria a desordem institucional, sanitária, econômica e social, embora a
sua justificativa seja a de que o “salvador” é o fiador da ordem.
Milícias digitais
– As milícias do líder apresentam-se sob a forma contemporânea de
milícias digitais. De um lado, não há nada de novo, uma vez que tanto o
nazismo quanto o fascismo fizeram uso intensivo dos meios de comunicação
vigentes na época, muito particularmente do rádio; de outro lado, as
novas redes digitais são muito mais abrangentes, alcançando diretamente
as pessoas, prescindem dos meios de comunicação tradicionais e também
dos seus meios de controle. Mentiras e o que se denomina fake news têm
livre trânsito, como se um mundo paralelo por meio delas se criasse,
pretendendo alguns ser o verdadeiro. Mais particularmente, os meios
digitais, por seu modo de transmissão e mensagem, são particularmente
adequados para a distinção amigo/inimigo, tratando o “discordante”, o
“opositor”, com desprezo e escárnio, como inimigo a ser abatido.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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