Xi Jinping busca a supremacia e quer impor “um novo modelo de governança global”. Artigo de Telma Santa Cruz, via Oeste:
Semidestruída, a Estátua da Liberdade aparece transformada
parcialmente num policial, tendo ao fundo a Casa Branca e as chamas de
um incêndio. A charge, publicada dias atrás pelo Diário do Povo, jornal
do Partido Comunista Chinês, o PCC, como crítica aos Estados Unidos
pelos protestos e riots das últimas semanas, pode ser emblemática do
estado das relações entre os dois países. Alvo constante de denúncias de
Washington por sua violação contumaz dos direitos humanos, o governo
chinês resolveu elevar o tom para denegrir a imagem do rival.
O episódio mostra quanto o contencioso entre as duas potências, cuja
guerra comercial já teria causado prejuízos bilaterais da ordem de US$
600 bilhões desde 2018, vem se acirrando sob o pano de fundo da pandemia
da covid-19 e da campanha eleitoral norte-americana. A ponto de alguns
especialistas como Wang Huiyao, presidente do Center for China and
Globalization, um centro de estudos baseado em Pequim, sugerirem que ele
se encontra em seu ponto mais crítico desde o estabelecimento de
relações diplomáticas, em 1979. Por envolver também a Europa, o
confronto já está sendo caracterizado como um novo tipo de Guerra Fria. E
é considerado determinante para a nova ordem geopolítica que surgirá do
colapso provocado pela covid-19. Com desdobramentos inclusive no
Brasil, cada vez mais dependente das relações comerciais com a nação
asiática.
Essa exacerbação ficou evidente também em declarações feitas na
semana passada pelo secretário-geral da Organização do Tratado do
Atlântico Norte, a Otan, Jens Stoltenberg, ao convocar os 30
países-membros da aliança militar do Ocidente a reagir contra o que
qualificou como “seguidas provocações e ameaças feitas pela China”. “A
ascensão da China”, alertou, “está alterando fundamentalmente o
equilíbrio global de poder, acelerando a corrida pela supremacia
econômica e tecnológica e multiplicando as ameaças às sociedades
democráticas e às liberdades individuais.”
Cabe levar em conta que esse tipo de retórica nem sempre reflete a
real situação das relações internacionais, pautadas pelo pragmatismo na
defesa de interesses nacionais e jogos de poder disputados nos
bastidores. Mas chamam atenção a contundência da reação e a ofensiva
cada vez mais intensa da China para se projetar como liderança global.
Ela também lança luz sobre uma das frentes críticas do conflito em
curso: a da guerra de propaganda. Pois, para além das disputas nas áreas
comercial, tecnológica e militar, trata-se sobretudo de um embate
ideológico, no campo da opinião pública, entre duas visões de mundo. A
das democracias herdeiras do liberalismo político e econômico do
Ocidente, representado pelos Estados Unidos e pela Europa, e a dos
sistemas totalitários construídos pelos regimes comunistas da antiga
União Soviética e da China.
O foco imediato da queda de braço tem sido o empenho da China para
dominar a narrativa referente à pandemia. Para combater a percepção do
país como o vilão da história, o PCC montou uma alentada campanha
destinada a projetar uma imagem exatamente inversa: a da China como
exemplo no controle do flagelo, uma nação magnânima que socorreu outros
países com a doação de equipamentos e o envio de equipes médicas.
Mas essa estratégia de propaganda, iniciada a partir de 2013 com a
ascensão do presidente Xi Jinping, tem um alcance muito mais ambicioso.
Ela dá sustentação a seu projeto de buscar a supremacia chinesa em todas
as áreas, o que inclui a Iniciativa do Cinturão e da Rota, BRI na sigla
em inglês, programa de infraestrutura destinado a abrir novas rotas
comerciais com o financiamento de obras na Ásia, na África e na Europa.
Outra vertente do plano é o programa Made in China 2025, que prevê
investimentos de vulto em inovação e tecnologia. E com o qual a China,
que já domina alguns dos principais mercados nessa área, pretende
garantir a dianteira em relação ao Ocidente em recursos digitais de
conhecimento e produtividade decisivos para a Quarta Revolução
Industrial.
Acima, à esquerda, e no topo, montagens fake que, a partir da China, têm sido disseminadas nas redes sociais e em grupos de WhatsApp. Acima, à direita, uma foto real. |
As ambições de Xi Jinping, contudo, vão além. Seu objetivo é impor
“um novo modelo de governança global”, mais aos moldes da ditadura
chinesa do que o patrocinado até agora pelas democracias do Ocidente,
que a propaganda do PCC caracteriza como decadentes e incapazes de fazer
face às demandas do século 21. Um sistema que ele defendeu, há cerca de
um mês, durante a Assembleia Anual do Congresso Nacional do Povo, como
“a mais completa, autêntica e eficaz forma de democracia para
salvaguardar os interesses fundamentais do povo”.
Para tracionar essa ofensiva, Pequim implementa uma diplomacia
assertiva com o propósito de ocupar postos-chave em instituições
multilaterais. E aposta num poderoso aparato de lobby para promover seus
interesses em escala global por meio de relacionamento estreito com
políticos, jornalistas e lideranças locais — como é o caso, no Brasil,
do governador de São Paulo, João Doria, e do presidente da Câmara dos
Deputados, Rodrigo Maia.
Mas as táticas e o estilo confrontativo dessas investidas — que
renderam à diplomacia chinesa o apelido de Wolf Warrior Diplomacy
(Diplomacia do Lobo Guerreiro), em alusão a um popular filme chinês
sobre um herói local em luta contra estrangeiros — correm o risco de se
tornar contraproducentes. Na Europa, multiplicam-se as denúncias de que
muitas das doações de equipamentos médicos para combater a pandemia
envolveriam, na verdade, contrapartidas comerciais. Questionam-se também
a eficácia e o sobrepreço dos produtos chineses importados. E vários
países têm se mobilizado para exigir uma investigação independente sobre
a origem da pandemia.
Tentativas de censurar críticos no exterior e intimidar autoridades
não alinhadas com as posições chinesas também têm gerado protestos. O
principal representante da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell,
por exemplo, acusou recentemente a China de recorrer a uma suposta
“política de generosidade”, para minar a solidariedade entre os países
do bloco. E o Reino Unido ameaçou represálias comerciais, como o
cancelamento de sua opção pelo sistema chinês para o 5G, parte da
plataforma da internet de última geração — um mercado bilionário que a
China disputa com os norte-americanos. Em outra frente, vários países
envolvidos na Iniciativa do Cinturão e da Rota estão tentando abandonar
sua participação, suspendendo o pagamento das dívidas contraídas e
denunciando os contratos como lesivos.
O que se pergunta é até que ponto uma eventual onda de “sinofobia”
poderia abalar de fato as posições da China no comércio global. A
opinião majoritária descarta impactos significativos, dado o pragmatismo
que rege relações comerciais. Mas o mero risco gera preocupação em
países dependentes desses vínculos. No Brasil, por exemplo, o principal
fornecedor de produtos agroalimentares para o mercado chinês, teme-se
que a retórica ideológica prejudique a parceria, benéfica para ambos os
lados, dado o potencial de nosso agronegócio e a crescente demanda
chinesa. “Trata-se de um casamento inevitável”, ponderou recentemente um
dos grandes conhecedores do tema, o professor de agronegócio global do
Insper Marcos Jank. “Ao atacar os chineses com falácias e teorias
conspiratórias, o país pode alvejar um dos setores centrais para a saída
da recessão que se apresenta.”
Para complicar, vale lembrar que qualquer dado ou análise sobre a
China deve ser recebido com ressalvas. Mesmo os sinólogos mais renomados
admitem a dificuldade de traduzir com segurança o que se passa no
antigo Império do Meio. O desafio se explica em parte pelas
peculiaridades da história, da cultura e da mentalidade chinesas. Mas se
agrava pela falta de transparência e confiabilidade das informações do
regime comunista. É o que ilustra um hábito relatado por alguns
diplomatas estrangeiros em Pequim: quando querem saber como anda a
poluição na cidade, eles comparam a previsão oficial com a da embaixada
norte-americana, geralmente mais fiel à realidade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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