O Pretório Excelso aproveita o confinamento para perder tempo com miudezas e maluquices. Augusto Nunes para a Oeste:
Em 19 de novembro de 1945, duas semanas antes da escolha nas urnas do
novo presidente da República, o brigadeiro Eduardo Gomes estava tão
confiante na vitória sobre o general Eurico Dutra que resolveu dispensar
o voto de uma fatia da população. “Não preciso dessa malta de
desocupados que apoiam o ditador para eleger-me”, disse o candidato da
UDN ao discursar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
O “ditador” era Getúlio Vargas, que chefiava o Estado Novo ao ser
deposto em 29 de outubro. E o orador provavelmente usou a palavra
“malta” como sinônimo de “bando, corja, súcia”. Mas o deputado Hugo
Borghi descobriu numa consulta ao dicionário que “malta” tem outros
significados, e que um deles é “turma de trabalhadores que se deslocam
comendo em marmitas”. Imediatamente, Borghi mobilizou a cadeia de
emissoras de rádio que controlava para convencer os ouvintes de que o
Brigadeiro desprezava o voto dos pobres em geral — e dos “marmiteiros”
em particular. Em 2 de dezembro, Dutra foi eleito com 3,2 milhões de
votos, quase 1,2 milhão à frente de Eduardo Gomes.
Se naquele Brasil existisse um Supremo Tribunal Federal semelhante ao
atual Timão da Toga, o resultado da eleição presidencial que
ressuscitou a democracia ainda estaria sub judice, à espera da conclusão
de processos, inquéritos e CPIs concebidos para saber-se o que é
exatamente uma fake news — codinome inglês adotado pela velha mentira
para circular mais à vontade na internet — e o que deve ser feito para
neutralizar invencionices que deformam disputas nas urnas, tiram o sono
de ministros do STF ou prejudicam a imagem dos políticos.
Um Dias Toffoli modelo 1945, por exemplo, estaria fazendo o centésimo
pedido de vista, desta vez para descobrir se, ao traduzir livremente o
que Eduardo Gomes tinha na cabeça ao pronunciar a palavra “malta”,
Borghi mentiu deliberadamente ou apenas cometeu um erro de
interpretação. Uma versão anos 40 de Alexandre de Moraes continuaria
promovendo dúzias de batidas policiais para decifrar dois mistérios.
Primeiro: quantos eleitores mudaram de ideia para solidarizar-se com os
marmiteiros insultados? Segundo: foi para desforrar-se da discurseira no
Teatro Municipal que Getúlio Vargas, deposto em 29 de outubro, anunciou
seu apoio a Dutra no finzinho de novembro? Para sorte dos nossos avós,
sobrou para os seus netos o papel de plateia do espetáculo da conversa
fiada encenado há quase um ano.
A história da mentira no Brasil começou com a chegada das primeiras
caravelas. O comandante fez de conta que topara por acaso com as terras
que fora incumbido de encontrar. Tripulantes tapearam nativos com
bugigangas sem valia, e foram tapeados ao trocá-las com aves que se
multiplicavam por todas as matas. Degredados descobriram que bastava o
acesso às vergonhas da filha do cacique para a consumação do golpe do
baú que, além de riqueza e poder, eternizaria o nome do sedutor em
placas colocadas nas esquinas do Brasil que existiria séculos mais
tarde. Morei algum tempo na Rua João Ramalho existente em São Paulo, sem
saber que esse foi o codinome do aventureiro português João Maldonado,
como informa a certidão de batismo. É provável que Bartira, a filha do
cacique Tibiriçá que se casou com João, tenha morrido sem saber o
verdadeiro sobrenome do marido.
Um dos primeiros chefes políticos do país ainda em gestação, João
Ramalho é o patriarca da linhagem que hoje povoa Brasília. Deputados e
senadores mentem mais do que respiram, mas instalaram uma Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito para saber quem andou espalhando fake
news na campanha eleitoral de 2018, se essas falsidades adulteraram o
resultado do pleito e o que fazer para surpreender o planeta com a
façanha assombrosa: erradicar a mentira num famoso viveiro de
mentirosos. A CPMI agrupa devotos da seita que enxerga em Lula um
ex-preso político, gente que jura que o Centrão só se angustia com os
problemas nacionais, democratas de nascença que morrem de amores por
ditadores caribenhos ou venezuelanos, pais da Pátria que veem em Sergio
Moro um agente da CIA e em Rodrigo Maia um estadista. Não é pouca coisa.
Mas não é tudo.
A suspensão temporária dos trabalhos da CPMI que dará em nada
concentrou os holofotes no Supremo, que nesta quinta-feira começou a
decidir se o inquérito irregular e inconstitucional sobre fake news
parido nas catacumbas do Pretório Excelso pode ser considerado regular e
constitucional. Até os bedéis das faculdades de Direito sabem que não. O
ministro Edson Fachin, relator do caso, achou que sim. Primeiro a
manifestar-se, ele não viu nada de mais no aleijão concebido no dia em
que Dias Toffoli acordou invocado com críticas à instituição que
preside, resolveu identificar e punir os autores das inverdades
insultuosas e chamou para ajudá-lo o colega Alexandre de Moraes.
Ex-secretário de Segurança do governo paulista, Moraes gostou da ideia
de acumular as atribuições de detetive, delegado, promotor e juiz num
inquérito que avança em segredo, não revela quais são os crimes que
apura nem divulga os nomes dos suspeitos. Que Kafka, que nada. Se fosse
confrontado com a inventividade dos juízes do STF, o ficcionista tcheco
descobriria que seus personagens foram atormentados por amadores.
Em juridiquês arcaico, Fachin propôs que só fake news que agridem a
imagem do Supremo sejam incluídas no inquérito que vem ganhando
abrangência e ameaça transformar qualquer tipo de mentira em crime
capitulado no Código Penal. Falta explicar como deve ser tratado quem
divulga verdades que deixam mal no retrato as onze excelências. Será
permitido, por exemplo, espalhar pelas redes sociais que os ministros
não investiram um único tostão dos seus obesos salários no combate à
pandemia de coronavírus? Ou lembrar que, embora estejam em confinamento,
os ministros mantiveram intacta a verba desperdiçada num menu de
gastrônomo perdulário? Ou, ainda, constatar que o tempo desperdiçado com
miudezas deveria ser usado para acelerar o julgamento e a condenação
dos quadrilheiros desmascarados pela Operação Lava Jato?
Aqui entre nós: se um ministro diz que a divulgação de inverdades
pela internet é o principal problema da nação, das duas, uma. Ou está
mentindo ou é demente. Mas não espalhe: para os superjuízes brasileiros,
merece cadeia quem vê as coisas como as coisas são e conta o caso como o
caso foi.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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