“Não é justo julgar um personagem descolando-o de seu contexto histórico”, diz o historiador Andrew Roberts em entrevista à Oeste:
Winston Churchill entrou para a história como um dos heróis da 2ª
Guerra Mundial. Sua liderança durante aqueles tempos de crise foi
decisiva para combater o mal absoluto, representado pela figura de Adolf
Hitler à frente da Alemanha nazista. Só que, exatamente 75 anos depois
do fim de um dos conflitos mais sangrentos do século 20, a reputação de
Churchill corre perigo. Na esteira dos protestos antirracistas que
irromperam no mundo a partir do assassinato de George Floyd em
Minneapolis, nos Estados Unidos, a estátua de Churchill, localizada na
Praça do Parlamento, em Londres, foi vandalizada. A pichação anunciava:
“Era um racista”.
Esse ataque tem a ver, principalmente, com algumas declarações de
Churchill e também com a postura do então primeiro-ministro em defesa do
Império Britânico. Como é sabido, o império mantinha o domínio de
colônias para além do território inglês, assegurando, assim, a posição
de potência mundial.
Mas, afinal, será que é justo qualificar Churchill de racista? Não é o
que pensa Andrew Roberts, o historiador e escritor responsável pela
biografia mais recente do notável ex-primeiro-ministro inglês,
Churchill, Walking with Destiny (Viking, 2018). De acordo com Roberts,
“para que se possa conhecer uma figura histórica, é preciso vê-la em seu
contexto histórico”.
Eis a entrevista:
A polêmica relacionada a Winston Churchill tem a ver com uma espécie de guerra cultural?
Sim, acredito nisso. Existe uma profunda guerra cultural acontecendo
na Inglaterra neste momento. De fora, parece que Winston Churchill
estava do lado errado porque, ao longo de sua vida, fez piadas e
comentários que, atualmente, são racistas. Mas é preciso lembrar de
algumas coisas. Em primeiro lugar, ele fez piadas e comentários
ofensivos acerca de todo tipo de pessoa, e não apenas sobre negros.
Churchill fez piadas com europeus e com seus colegas de trabalho, por
exemplo — com esses últimos, aliás, ele podia ser bastante rude. Então,
ele foi alguém que, sim, usava palavras duras para ridicularizar. Mas
acho injusto simplesmente concentrar as atenções nos comentários que ele
fez sobre pessoas que não eram brancas. Em segundo lugar, é preciso
avaliar o contexto histórico. Churchill nasceu quando Charles Darwin
ainda era vivo. E, por mais absurdo e vergonhoso que seja hoje em dia,
havia uma crença naquela época de que uma hierarquia de raças era um
fato científico. Sabemos quanto isso é obsceno atualmente. Mas, naqueles
tempos, era ciência. Acredito que seja errado julgar uma pessoa de
acordo com as opiniões dos dias de hoje, considerando que ela não sabia
que não existe tal hierarquia de raças.
A sociedade britânica tem debatido essas questões?
Há um debate sério acerca de Winston Churchill neste país, e isso
está nos jornais o tempo todo. A ideia de que avançamos nesse debate ao
pichar e ao desfigurar o rodapé de uma estátua na Praça do Parlamento me
parece um escândalo. Na verdade, vimos cada vez mais a violência ocupar
o lugar do debate racional na Inglaterra. E considero isso uma
vergonha. Então, sinto-me na defensiva, creio que é justo dizer, pela
reputação de Winston Churchill.
E qual é sua avaliação quanto às acusações contra Churchill em
função do papel que desempenhou no Afeganistão ou na Grécia ao longo do
século passado?
No Afeganistão, ele estava defendendo os punjabis (muçulmanos sikhs) e
também os hindus, das tribos do norte, incluindo aqui o Talibã. Então,
na verdade, ele estava desempenhando um ótimo papel para os
agricultores. Mostrou, como fez em diversas ocasiões, que estava
disposto a arriscar a vida para proteger pessoas que não eram brancas.
Então, tenho muito orgulho do que ele fez no Afeganistão e acredito que
os ingleses deveriam sentir o mesmo. Um racista não quer que o povo a
quem ele destina seu preconceito se dê bem, seja feliz, prospere e se
multiplique. Uma das coisas de que Winston Churchill mais se orgulhava
foi a forma como o Império Britânico dobrou a expectativa de vida na
Índia — quando os britânicos estiveram por lá, a população aumentou na
casa dos milhões.
E quanto à Grécia?
De igual modo, ao salvar a Grécia do comunismo, no final de 1944, ele
fez um grande trabalho em favor do povo daquele país. Quando se nota o
que aconteceu com os países que ficaram para trás da Cortina de Ferro a
partir de 1945 até a queda do Muro de Berlim, em 1989, alguém poderia
dizer que os gregos deveriam ser muito gratos — como de fato são — a
Winston Churchill por tê-los poupado daquele destino.
O que dizer das alegações de que, mesmo sendo um grande estadista, ele era um supremacista branco?
Ele acreditava que a população branca do mundo estava numa posição
superior para comandar o Império Britânico quando comparada à população
não branca. Então, nesse sentido, ele acreditava numa raça superior.
Como afirmei anteriormente, da mesma forma como a maioria de seus
contemporâneos acreditava. Mas, diferentemente de supremacistas brancos
como Adolf Hitler ou os nazistas, Churchill queria o que era melhor para
as populações nativas que eram protegidas por eles. E esse não é o tipo
de racismo que precisa ser criticado 100 anos depois, vandalizando uma
estátua.
O senhor acredita que o episódio se relaciona a certo sentimento de culpa que os intelectuais têm em razão do colonialismo?
Sim. Desde os anos 1950 e anos 1960, época do fim do Império
Britânico, algumas pessoas na Inglaterra têm se sentido culpadas. Isso
está relacionado ao fato de que essas pessoas não foram educadas de
forma adequada. Existe pouquíssimo ensino de alta qualidade na área de
História acerca desses períodos. Nas nossas escolas, Winston Churchill
não é sequer abordado no currículo, ainda que ele seja o mais importante
inglês da História britânica. Se quatro ou cinco décadas se passaram
sem crianças em idade escolar aprenderem sobre Churchill, isso resulta
em adultos que não conhecem a verdade sobre ele. Serão incapazes de
olhar para essa questão complexa de maneira objetiva.
Para ficar claro, na Inglaterra, hoje em dia, não se fala a respeito de Winston Churchill nas escolas?
Exatamente. E não se tem ensinado sobre ele nas escolas nos últimos anos.
E qual foi sua percepção a respeito disso enquanto escrevia a biografia de Winston Churchill?
De um lado, tive sorte em não existir muito ensino sobre Churchill,
porque significa que eles comprariam meus livros para conhecer esse
personagem mais tarde. Mas, num sentido cultural mais amplo, é uma
grande tragédia que não façamos mais por nosso maior herói. Em outras
palavras, ele foi eliminado do currículo escolar. Uma criança em idade
escolar pode chegar aos 16 anos sem ter lido coisa alguma de Winston
Churchill, sem ter ouvido seus discursos. Um dado recente mostrava que o
currículo escolar dedicava mais tempo para o cantor Bob Geldof do que
para Winston Churchill.
E não parece ao senhor uma contradição o fato de recentemente
Winston Churchill ter sido escolhido como o inglês mais importante da
História?
É claro que a BBC constantemente vem diminuindo os méritos de Winston
Churchill. Na verdade, essa escolha aconteceu por causa dos votos de
400 mil pessoas, numa pesquisa organizada pela emissora. Foram pessoas
comuns na Inglaterra escolhendo quem foi o grande personagem histórico
do milênio. E ele ganhou por grande vantagem — teve mais votos do que
todos os demais juntos, incluindo personalidades como Charles Darwin,
Isaac Newton e até Lady Di. Acredito que exista um vestígio de memória
que é passado adiante pelas famílias em casa, o que explica por que há
mais gente do que nunca visitando a casa de Churchill, Chartwell, em
Kent. Assim como tem mais gente interessada em conhecer as salas de
guerra, em Londres, e até mesmo em comprar meu livro, que está nas
listas dos mais vendidos em oito países. Isso mostra que as pessoas
estão genuinamente interessadas em Churchill. Mas basta um ou dois
idiotas, durante um protesto, com algumas latas de spray, para que haja
esse suposto grande debate em torno dele.
Quando vivo, o jornalista e escritor Christopher Hitchens foi um
dos grandes críticos de Winston Churchill. O senhor acredita que a
mensagem de Hitchens sobre o ex-primeiro-ministro acabou por influenciar
a cobertura da imprensa hoje em dia?
Parece que sim. Christopher Hitchens teve um papel de grande
influência na imprensa britânica e mundial. Mas o artigo ao qual você se
refere, escrito por Hitchens há alguns anos, continha 34 erros
factuais. Erros significativos. É preciso lembrar também que Hitchens
tinha um prazer muito grande em ser perverso e dizer o contrário do que
todo mundo pensava. Então, na verdade, acredito que havia mais de
Hitchens do que do próprio Churchill no texto.
Há lugar para Churchill no século 21?
Claro que sim! Ele foi o maior dos antifascistas. E alguém tem sempre
de estar preparado para o populismo, para o fascismo e para os perigos
que essas coisas podem liberar num país. Então, os alertas dele a
respeito dessa questão são muito importantes. Ele também ensinou a uma
nação como ela deveria ser resiliente em tempos difíceis e sombrios,
como esses por que passamos no momento. E há numerosos elementos sobre
Winston Churchill, de sua vida e carreira, que são úteis para qualquer
país. E por isso é trágico que no próprio país ele não seja tão
apreciado como merece.
Quem seria a grande nêmesis de Churchill hoje em dia?
Provavelmente, Xi Jinping. Como grande rival do totalitarismo,
Churchill estaria prestando atenção no que acontece em Hong Kong — com
muito cuidado, eu acho. E, como ele gostava muito dos judeus — de sua
companhia, principalmente porque foi criado junto deles e sempre os
apoiou —, acredito que os fundamentalistas islâmicos totalitários seriam
a outra nêmesis.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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