O Supremo abriu uma caixa de Pandora e não tem a menor ideia de como fechá-la. Editorial da Gazeta do Povo:
Nesta quinta-feira, o Supremo Tribunal Federal deveria ter definido
qual seria o procedimento a adotar como padrão quando tiver de analisar
casos semelhantes aos julgamentos que a corte acabou de anular – o do
ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine e o do ex-gerente da estatal
Márcio de Almeida Ferreira. Os dois executivos foram condenados em
julgamentos diferentes, mas tinham em comum o fato de dividirem o banco
dos réus com acusados que fizeram delação premiada e terem solicitado
prazos diferenciados para oferecer suas alegações finais, o que não era
previsto pelo Código de Processo Penal. No entanto, a quinta-feira
passou sem decisão alguma, pois alguns dos ministros se ausentariam, e o
presidente da corte, Dias Toffoli, quer a presença de todos eles para
decidir algo tão importante.
Faz sentido que Toffoli deseje quórum máximo, dada a relevância do
que será decidido. Mas, se o único argumento para adiar a votação era a
ausência de alguns dos membros da corte na sessão deste dia 3, bastaria
incluir o julgamento na pauta da próxima semana. Não foi isso o que
ocorreu, no entanto. Ainda não há data para a continuação da votação, e
informações de bastidores dão conta de que há impasse dentro da corte a
respeito do caminho que se deve seguir.
O que se conclui disso é que o Supremo abriu uma caixa de Pandora e
não tem a menor ideia de como fechá-la. É razoável que a corte queira
fixar um procedimento a seguir nos julgamentos em curso e futuros.
Determinar que, a partir de agora, delatados entreguem suas alegações
finais apenas depois de tomar conhecimento das peças enviadas pela
defesa dos delatores é um passo adicional para garantir o devido
processo legal e o direito ao contraditório. É na análise de julgamentos
já concluídos que o estrago foi feito: quando a Segunda Turma adotou o
formalismo puro e simples para anular a condenação de Bendine pelo
simples fato de não ter havido prazos diferenciados (como, aliás, prevê o
Código de Processo Penal), sem nem analisar se houve prejuízo real ao
réu, instalou a insegurança jurídica completa.
Na data ainda indefinida, os ministros votarão duas propostas de
Toffoli quanto aos julgamentos passados: na primeira, só serão passíveis
de anulação os julgamentos em que a defesa de um delatado pediu para
falar por último; na segunda, é preciso que fique comprovado o prejuízo
concreto ao réu para que se possa anular um julgamento. Da combinação
dos resultados dessas duas votações surgirá a regra a ser aplicada pelo
Supremo quando analisar novos recursos.
E as consequências podem ser catastróficas. Se o plenário rejeitar
ambas as propostas, aderindo ao formalismo segundo o qual o prejuízo é
dado como certo e decorre da simples ausência de prazos diferenciados,
todo julgamento em que o magistrado não concedeu tempo adicional para as
alegações finais do réu delatado será anulado, ainda que esse
procedimento estivesse de acordo com o Código de Processo Penal. Isso
beneficia não apenas corruptos condenados da Lava Jato, mas até mesmo
membros de milícias, chefes de facções criminosas e quaisquer
integrantes do crime organizado que tenham dividido o banco dos réus com
delatores que os incriminaram.
Na ponta oposta, se as duas teses vencerem e a comprovação do
prejuízo for condição necessária para a anulação, o Supremo estará
implicitamente admitindo que errou nos dois casos que deram origem a
todo o imbróglio – principalmente em relação a Márcio Ferreira, pois,
como lembrou Luís Roberto Barroso, o então juiz Sergio Moro efetivamente
deu prazo adicional à defesa quando percebeu que as alegações finais de
outros réus tinham informações novas. O ministro ainda acrescentou que
“o réu paciente [Ferreira] entendeu que não tinha mais nada a dizer”.
Entre esses dois extremos há, ainda, um universo de possibilidades,
se considerarmos o que já disseram alguns ministros durante o
julgamento. Ricardo Lewandowski, por exemplo, perguntou o que ocorreria
em um caso no qual um corréu delatado recorreu pedindo prazo adicional,
mas outro corréu delatado não o fez, talvez por já saber que seu pedido
não teria amparo no CPP. Luiz Fux já tinha questionado a diferenciação
de prazos lembrando que a situação poderia se inverter: um réu delatado
poderia, em suas alegações finais, trazer novidades contra o réu
delator. Até mesmo a definição de “prejuízo” está em aberto. Se um réu
delatado pede prazo adicional e o juiz nega, por concluir que nas
alegações finais dos delatores não há nenhuma informação nova, haveria
prejuízo? Por fim, há quem defenda que não é obrigação da defesa
comprovar o prejuízo ao réu, e sim que cabe ao Ministério Público
demonstrar a ausência de dano.
Enquanto essas perguntas não forem respondidas, dezenas de
julgamentos ficarão sob a espada de Dâmocles. E, ao postergar uma
definição tão importante para o país, o Supremo comprova a afirmação
atribuída ao ex-ministro Pedro Malan, segundo a qual “no Brasil, até o
passado é imprevisível”.
E, já que os ministros resolveram revirar o passado, a única solução
aceitável, que minimizará o estrago, é anular apenas os julgamentos em
que se comprovar prejuízo real. Se na fase de alegações finais um
delator trouxe informações novas e o réu delatado não teve a
oportunidade de se defender dessas acusações, estamos diante de um caso
evidente de violação do direito de defesa. Do contrário – se não houve
elementos novos nas alegações finais, ou se o réu delatado teve prazo
adicional concedido pelo juiz –, não há por que falar em anulação.
Infelizmente, a julgar pelo que a maioria dos ministros já afirmou ou
decidiu, é bem possível que repitam a lenda grega, fechando a caixa, mas
deixando dentro dela a esperança – no caso, a esperança dos brasileiros
de que a impunidade finalmente tenha um fim no país.

Nenhum comentário:
Postar um comentário