Uma sociedade não se constrói, ao menos conscientemente. Uma sociedade
perfeita, então, é impossível. E corrigir os erros dos homens por
mudanças sociais, no mais das vezes, só tem como dar errado. Coluna de
Carlos Ramalhete, publicada semanalmente na Gazeta do Povo:
A cultura que criou a nossa sociedade, contrariamente às ideias da
moda, não acreditou jamais em “construir um futuro melhor”. Ao
contrário, até: o futuro melhor que viria um dia sempre foi percebido
como ao mesmo tempo algo vindo “de fora”, por intervenção divina direta,
e uma espécie de tragédia, em que muita gente (aparentemente) boa iria
de ponta-cabeça para as ardenas infernais. O nome do evento, até, já
deixa bem claro do que se trata: Juízo Final. Para qualquer um de nossos
antepassados civilizacionais nos últimos 2 mil anos, o Juízo Final –
precedido individualmente pelo Juízo Particular de cada um ao morrer –
era ao mesmo tempo uma esperança (daí a jaculatória “Maran Atha”,
“Vinde, Senhor!”) e um tremendo temor. Ele virá à noite, como um ladrão.
Ninguém o pode prever, que dirá preparar ou, menos ainda, construir. A
única maneira de estar mais ou menos tranquilo quanto ao próprio destino
na hora dele, quando se há de ter novos Céus e nova Terra, é pela
santificação individual.
E este é o outro grande ponto da nossa sociedade: a santificação é
necessariamente individual, na medida em que toda imperfeição é
necessariamente individual. As imperfeições sociais são sempre o
resultado de imperfeições individuais multiplicadas pelo coletivo. Uma
sociedade de anjos não teria defeitos, mas a nossa, composta por pessoas
para quem é tantas vezes mais fácil fazer o mal que o bem, forçosamente
sempre haverá de ter defeitos.
É por isso, inclusive, que as ideologias que tantos assassinaram no
século passado tinham sempre, escondido em algum momento de sua
fantástica conquista de um futuro utópico, o momento em que a própria
natureza humana seria modificada. O “novo homem socialista”, a “pura
raça ariana” e outros delírios nada mais eram que uma resposta nonsense à
necessidade de lidar com o fato simples e fácil de observar de que,
como diria a avó do Manuel, “o mundo é fabuloso; o ser humano é que não é
legal”. Chesterton dizia (cito de memória) que todo pensamento
ideológico baseia-se, de uma maneira ou de outra, na ideia de tirar
leite de pedras. Partindo-se deste pressuposto, constroem-se enormes
divagações acerca de como melhor distribuir o leite. Quando, todavia,
alguém lhes pergunta como farão para arrancar leite de pedras, ignoram a
questão, para eles irrelevante, e voltam a falar de seus planos de
enormes frotas de caminhões-pipa levando o leite tirado das pedras a
toda parte.
E as pedras somos nós, ou melhor, nossos corações. O ser humano
carrega em si uma tremenda facilidade para enfiar o pé na jaca. Chamamos
a isso de “pecado original”, e todos os nossos antepassados
concordariam que isso é decorrente de sermos descendentes de Adão e Eva.
Ora, as pessoas mais moderninhas riem da história da Queda, e têm mais
facilidade em acreditar em qualquer besteira com ares de cientificidade
que em Adão e Eva. Mas o fato de que carregamos em nós essa facilidade
para fazer o mal, o fato de nosso orgulho, de nossas concupiscências, de
nosso amor-próprio desmedido, tudo isso está aí, é inegável e não
depende da crença em sua origem adâmica.
E é isso o que me apavora, e deveria apavorar qualquer pessoa com um
módico de capacidade de raciocínio, quando nos surgem pela frente os
ideólogos e suas ideias do que fazer com o leite: a natureza humana é
imutável. Não adianta construir uma sociedade angelical e povoá-la com
seres humanos; só o que isso há de fazer será negar a humanidade de
todos os que não forem suficientemente “angelicais”, e condená-los não
ao fogo do inferno, mas – na melhor das hipóteses – ao exílio. É daí,
dessa necessidade de arrancar primeiro os mais diferentes, que vieram as
bruxas de Salém, o Gulag, Auschwitz, as cadeias americanas lotadas de
pretos, os cubanos refugiados em Miami, os venezuelanos jorrando aos
borbotões no nosso Norte. E depois deles virão outros, e outros, e
outros. No fim das contas, seria necessário matar a todos, ou pelo menos
livrar-se deles, na medida em que – por óbvio – não há anjos.
Uma sociedade não se constrói, ao menos conscientemente. Uma
sociedade perfeita, então, é impossível. E corrigir os erros dos homens
por mudanças sociais, no mais das vezes, só tem como dar errado. Afinal,
as mudanças sociais serão dirigidas por outros homens, tão errados
quanto os que seriam corrigidos! Só o que se faz, nesses casos, é
multiplicar as tiranias, aumentar o número de vítimas, e, no atacado,
formar uma sociedade bem pior do que a porcaria que lhe era anterior.
Estão aí os venezuelanos que não nos deixam mentir. Ou os sobreviventes
do Estado Islâmico. Ou os norte-coreanos. E por aí vai: a natureza
humana, repito, não se coaduna a esse tipo de experiência social.
As sociedades humanas, por isso, são sempre fruto de longuíssimos
prazos, de ideias que vão aos poucos, muito aos poucos, aos
pouquíssimos, tomando força de baixo para cima e modificando lentamente,
ao longo de dezenas de gerações (logo, de vários séculos), as
instituições que lhes eram anteriores. Foi o que ocorreu, por exemplo,
com a percepção da dignidade humana intrínseca que a Igreja deu a Roma:
não foi nem da noite para o dia nem, muito menos, de cima para baixo que
toda uma sociedade passou a perceber que é perfeitamente possível que
um mendigo seja, aos olhos de Deus, maior e melhor que o imperador.
Pode-se até notar que o imperador acabou caindo quando isso foi mais
perfeitamente introjetado pela massa da população. Daí veio o fim da
escravidão, pela primeira vez na história. A Europa cristã foi a
primeira cultura a abolir a escravidão.
Mas as más ideias voltam rapidamente, e com força, por uma razão
simples: elas apelam aos nossos piores instintos. Uso novamente o mesmo
exemplo: quando aumentou o contato entre a Europa cristã e o Islã
norte-africano, a escravidão voltou. Ela não voltou como se jamais
houvesse desaparecido, sendo principalmente confinada aos novos
territórios descobertos pelas Grandes Navegações (Brasil inclusive, para
nossa tristeza). Mas ela voltou. Bastou ter contato maior com uma
cultura onde ela não havia sido eliminada para tal chaga ganhar
novamente força e tração no meio da nossa.
E é isso o que acaba sendo a ideia de “progresso” pregada pelos
ideólogos: ideias de jerico d’antanho, espanadas pra tirar a poeira e
com um banho de loja, que ressurgem onde houve um labor de séculos para
afastá-las. Os romanos praticavam sem pejo o aborto, o infanticídio e
basicamente qualquer forma de assassinato de pessoas consideradas
domesticamente dependentes. Um pater familias romano, um patriarca,
podia mandar jogar um bebê recém-nascido ao esgoto, bem como matar os
filhos, a esposa, quem ele bem entendesse, independentemente da situação
social da vítima: quem fazia parte da “casa” dele, de seu domus, estava
em suas mãos. Assim, mesmo que o filho fosse um general ou senador, seu
pai poderia sem medo algum mandar matá-lo, estando plenamente dentro de
seus direitos. Ora, e o que é a pregação pró-aborto feita pelos
“progressistas”, se não isso? No caso, a mãe se coloca exatamente como o
patriarca romano, como detentora do direito de vida e de morte sobre
quem está em “seu território”, que ela define como seu corpo. A
dignidade humana do filho que ela carrega em seu ventre não vale
rigorosamente nada para ela; a questão é apenas seus supostos direitos
sobre seu próprio corpo, como o patriarca romano tinha sobre seu próprio
domus. O fato de a pobre criança estar presa à mãe pela placenta é
percebido como sendo ainda um fator agravante e prova de que a mãe pode
matá-la por parasitismo, exatamente como o patriarca poderia fazer com
qualquer “boca inútil” dentro de casa.
Mas o tal “progresso” é sempre isso mesmo: a volta à baila dos
horrores que jazem em nosso inconsciente marcado pela Queda. Outros
exemplos claros nós vemos por toda parte, desde o surgimento de um
tribalismo urbano delirante, em que “tribos” cujos membros se percebem
identitariamente como membros dela primeiro e qualquer outra coisa
depois (sejam elas LGBT, punk, funk, skinhead, o que for) e se digladiam
pelas ruas (ou saem, com grande fanfarra, expondo o seu “orgulho”
identitário pelas avenidas), seja na falência quase completa das
instituições judiciárias, tão afastadas da realidade que acabam se
tornando uma ilha da fantasia com regras próprias. Isto é o progresso. E
o retrocesso aos abismos que nos encaram de dentro mesmo de nós.
Na verdade, “progresso” é impossível. O paraíso não pode ser
alcançado pelos nossos próprios esforços. Só o que podemos fazer é
tentar conservar a sociedade ao máximo, mesmo porque as mudanças que a
aprimorem irão acabar ganhando no longuíssimo prazo, em séculos, mas
sempre de baixo para cima. Toda mudança social real ocorre de baixo para
cima. Marx achava que havia conseguido prevê-las; Lênin provou-o
errado. A “vanguarda do proletariado” não é nem jamais foi idêntica ao
“proletariado”. Este é, com razão, conservador. Sua suposta vanguarda,
composta na verdade por burgueses condoídos, é que era progressista. E o
mesmo ocorre hoje. As “vítimas da sociedade” que os progressistas creem
exaltar na verdade, no mais das vezes, ou bem detestam ser “exaltados”
ou bem apenas tardiamente, percebendo na “exaltação” uma fonte de
facilidades (cotas etc.), acabam por unir-se aos vanguardistas por
interesse próprio, jamais social.
Mas, como sempre, não se trata de progresso real, sim de desmanche do
que levou um enorme tempo para surgir. E, mais ainda, na medida em que o
suposto progresso vem de cima para baixo, inevitavelmente o que se tem é
a criminalização do que sempre foi a regra. A reviravolta social, que
no mais das vezes consiste em piorar o que já era bem ruinzinho. Quando o
Estado se arvora origem da instituição matrimonial, e primeiro a
decreta dissolúvel, e depois a abre tanto, mas tanto, que ela deixa de
ter qualquer relação com o matrimônio natural (que seria do interesse da
sociedade, logo do Estado que a guarda, por ser o local da geração e
educação primeira das novas gerações), o que se tem é a simples
dissolução social. A queda numa situação tão péssima, que é questão de
tempo até que o que já está ocorrendo em pequena escala (haréns e afins,
poliamorosamente registrados em cartório como equivalentes ao
matrimônio) se torne algo socialmente comum, exatamente como a
escravidão voltou a ser comum.
É a natureza humana, repito. O matrimônio serve fundamentalmente para
a proteção da mulher e das crianças da bestialidade de todos nós.
Quando a sociedade deixa de reconhecê-lo, ou, pior ainda, equipara a ele
qualquer coisa que as pessoas de sexualidade hiperativa consigam bolar,
quem sofre é, evidentemente, a mulher e seus filhos. É a volta aos
tempos de Abraão, com Agar sendo expulsa com o filho no colo porque a
preferida miraculosamente concebeu. Ou, pior, ao que se vê ainda hoje em
muitas culturas polígamas, em que cada nova esposa se torna escrava das
anteriores. É esta a natureza humana; retirando-se as proteções
sociais, os mais fracos sempre sofrerão.
É por isso, senhores, que quando alguém vem me falar de “progresso” eu tenho calafrios. Isso não existe.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

Nenhum comentário:
Postar um comentário