A narrativa do “abuso” e do “excesso” é apenas uma outra vertente da
estratégia que pretende destruir a Lava Jato, alerta editorial da Gazeta:
“Sempre apontei os excessos, mas sempre defendi a Lava Jato”, afirmou
o agora procurador-geral da República, Augusto Aras, durante a sabatina
a que foi submetido no Senado no fim de setembro. Na mesma ocasião,
disse que “talvez tenha faltado nessa Lava Jato a cabeça branca, para
dizer que tem certas coisas que podem ser feitas, mas tem outras coisas
que não podemos fazer”. Quando até o chefe do Ministério Público
Federal, o responsável por supervisionar a Operação Lava Jato, adota
esse tipo de discurso com tanta facilidade, podemos perceber que está
começando a prevalecer uma narrativa equivocada e extremamente perigosa
para o combate à corrupção no país: o de que a Lava Jato vem cometendo
“abusos” ou “excessos” que mancham ou até invalidam seus bons
resultados.
Não estamos, aqui, nos referindo ao discurso da esquerda, para quem a
Lava Jato em si é um abuso, especialmente quando derrubou o seu maior
ídolo, o ex-presidente Lula, condenado em três instâncias da Justiça por
corrupção e lavagem de dinheiro. Também não nos referimos às
reclamações de uma série de outros políticos, especialmente os de
partidos do Centrão, investigados, denunciados e condenados no âmbito do
petrolão. O jus sperneandi, nesses casos, era mais que esperado e não
surpreende em absolutamente nada.
Da mesma forma, não vem ao caso o destempero do ministro do STF
Gilmar Mendes, que não perde uma chance de atacar a força-tarefa,
chegando ao ponto de chamar procuradores de “gângsters”. O preocupante é
ver com que facilidade o discurso do “abuso” ou do “excesso” da Lava
Jato anda na boca de pessoas que se dizem defensoras da operação, ou até
mesmo na de chefes de poderes da República, como ocorreu com Dias
Toffoli, presidente do Supremo, que nesta quarta-feira afirmou, durante o
julgamento que anulou uma sentença da Lava Jato, que “esta corte
defende o combate à corrupção, mas repudia os abusos e excessos”.
A Lava Jato realmente trouxe uma grande novidade. Nunca antes na
história deste país, para usar uma expressão tão ao gosto do condenado
mais ilustre da operação, uma investigação conseguiu jogar tanta luz
sobre um megaesquema de corrupção. E não se tratava de uma roubalheira
qualquer, mas de uma tentativa de fraudar a democracia por meio da
pilhagem sistemática contra empresas estatais para a manutenção de um
projeto de poder. Nunca tantos políticos, miúdos e graúdos, tiveram de
responder por seus crimes. E o fato de os investigados terem lançado
todo o peso de seu poder ou influência para tentar escapar da Justiça
pode até fazer pensar que, para prevalecer, a Lava Jato – compreendendo,
aqui, tanto a força-tarefa quanto o então juiz federal Sergio Moro –
tenha precisado atravessar um pouco a linha da legalidade, entrando em
zonas cinzentas, ainda que com as melhores intenções, para que o
desfecho não fosse a impunidade.
Mas eis o ponto mais importante do debate: se em algum momento essa
linha foi cruzada pelos procuradores ou por Moro – o que por si só é
bastante discutível –, estamos falando de episódios pontuais, em temas
passíveis de interpretação, e jamais de comportamentos recorrentes que
justificassem a narrativa do “abuso”. E por isso temos de perguntar aos
que falam em “excessos”: que atitudes sistemáticas dos investigadores e
julgadores teriam violado a lei? O que a Lava Jato fez que não deveria
ter feito, para usar as palavras de Augusto Aras? De que “abusos” ou
“excessos” estaríamos falando?
Seria a condução coercitiva de Lula, em março de 2016? Ela foi
realizada em total consonância com a legislação, e Moro tomou todas as
providências tanto para garantir a segurança de Lula quanto para evitar
uma confusão que, em outras circunstâncias, seria quase certa. Seria o
fato, agora julgado pelo STF, de delatores e delatados terem tido o
mesmo prazo para entregar alegações finais? Aqui, Moro seguiu exatamente
o que determinava o Código de Processo Penal – e, no caso analisado
pelo plenário do STF, o juiz até mesmo abriu novo prazo adicional para o
acusado, evitando prejuízo.
E as entrevistas coletivas da força-tarefa em determinadas fases da
operação, com destaque nacional? Ainda que desagradassem os
investigados, não tinham nada de ilegal e eram uma forma de a
força-tarefa prestar contas à sociedade. Seria a ação “política” dos
procuradores, com o projeto de lei das Dez Medidas Contra a Corrupção e
as críticas a Renan Calheiros nas mídias sociais, quando o alagoano
esteve prestes a retomar o comando do Senado? Ora, a proposição de
projetos ao Legislativo nada tem de excessiva ou abusiva e, ainda que se
possamos discutir os limites da liberdade de expressão de membros do
MP, as observações sobre Renan não tinham ligação alguma com questões
processuais da Lava Jato, até porque o senador, tendo foro privilegiado,
não estava sendo investigado pela força-tarefa de Curitiba.
E, por fim, o que dizer das supostas conversas divulgadas pelo site
The Intercept Brasil e publicações parceiras? O que elas revelam – se
forem autênticas – é uma interlocução entre juiz e membros do MP
considerada habitual, sem que haja ali irregularidade alguma, percepção
reforçada por vários juristas e até pelo corregedor nacional do
Ministério Público. E, mesmo que algum comportamento demonstrado nos
diálogos seja passível de repreensão, para que pudéssemos falar de
“excessos” ou “abusos” seria preciso encontrar um padrão recorrente de
atitudes, que não aparecem no material até agora divulgado.
É verdade que, na sabatina, Aras citou um caso em que houve “281 dias
de prisão provisória”. Mas, sem dar detalhes, é impossível saber se um
tempo tão extenso de prisão preventiva estaria justificado,
especialmente quando sabemos que alguns mentores do petrolão continuaram
delinquindo mesmo durante as investigações ou enquanto cumpriam prisão
domiciliar por outros crimes.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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