É um mundo fragmentado e desolador,
repleto de beatos e bufos. Uns são genuinamente tresloucados, os
pragmáticos fingem. Todos sonham construir carreiras assim, a denunciar,
a perseguir, a excomungar, a destruir quem calha e a propósito do que
calha. A crônica de Alberto Gonçalves, publicada nos finais de semana pelo Observador e surrupiada aqui em primeira mão:
There’ll be the breaking of the ancient Western code
Your private life will suddenly explode
There’ll be phantoms
There’ll be fires on the road
– L. Cohen, “The Future”
Vi “Leonard & Marianne: Words of Love”. O documentário trata da
história de amor entre Leonard Cohen e a norueguesa Marianne Ihlen,
durante a década de 1960. O encontro de ambos aconteceu em Hidra, a ilha
grega para onde Cohen se mudou após a morte do pai e a herança
subsequente. Marianne já lá estava, com o marido e o filho, parte da
boémia “exilada” de artistas e candidatos a artistas. Talvez tenha sido
paixão à primeira vista. À segunda, de qualquer modo, Marianne passou a
viver com o canadiano, à época um escritor com certos louros e pouco
dinheiro. Assim permaneceram meia dúzia de anos, entre o sol, o sexo, os
amigos, o vinho, a guitarra, as drogas e as depressões a que Cohen
periodicamente descia.
Quando a escassez material acabou de amarfanhar a doçura daquela
existência, e o tempo fez o mesmo com a volúpia, Cohen partiu sozinho
para a América em busca de uma carreira de “songwriter” e um meio de
subsistência. Marianne ficou em Hidra, e em Hidra continuou, à espera
dos regressos cada vez menos frequentes e menos demorados do amante.
Ocasionalmente, ela própria o acompanhou nos EUA e Canadá. Entre as
viagens, percebeu a fama crescente de Cohen, agora cantor, e as
distracções que a fama trazia. E percebeu, triste, que aquilo se
esgotara. A protagonista relutante da canção “So Long, Marianne” deixou o
idílio de Hidra, teve diversos homens, casou, envelheceu e, um dia,
soube que estava a morrer.
À distância de Los Angeles a Oslo, Cohen soube que ela estava a
morrer e enviou-lhe uma carta pequenina: “Bem, Marianne, chegamos ao
ponto em que estamos tão velhos que os nossos corpos caem aos bocados e
acho que te seguirei muito em breve. Fica a saber que me encontro tão
perto de ti que, se esticares a mão, alcanças a minha. E sabes que
sempre te amei pela beleza e pela sabedoria, mas não preciso de dizer
mais nada sobre isso porque sobre isso sabes tudo. Agora só te quero
desejar boa viagem. Adeus, velha amiga. Amor infinito, vejo-te pelo
caminho.”
O documentário mostra o momento em que, numa cama de hospital,
Marianne ouve alguém ler a carta. Por um instante, aquela mulher
moribunda murmura: “Que bonito! Tão bonito!”, e chega a sorrir. Dois
dias depois, morreu. Três meses depois, morreu ele.
“Leonard & Marianne”, o filme, terá eventuais falhas. Leonard
& Marianne, o romance, não tem nenhuma – ou tem todas, como todos os
romances e todas as pessoas que justificam o nome. É, desculpem a
repetição, uma história de amor, que marcou para o bem e para o mal os
envolvidos e que, dada a circunstância de um deles ser figura notável da
música popular, foi de alguma forma partilhada com milhares ou milhões
de criaturas. Umas tantas verão o filme, comovidas aqui, exultantes ali,
entretidas acolá. No máximo aliviam-se de um par de comentários
ligeiros. E a seguir retornam à vidinha. O normal, não é?
Não, senhor: o normal não é o que era. E os anormais ameaçam tomar
conta disto. Na revista britânica “New Statesman”, uma colunista, Ellen
Peirson-Hagger, decretou que o filme “glorifica o sexismo”.
Argumentação? A dona Ellen descobriu, e não gostou de descobrir, que o
papel de Marianne se limitava ao da musa do macho criativo – no filme e
na realidade. É a própria Marianne, aliás, que confirma quase por essas
palavras o dito papel, e uma situação que aceitou voluntariamente.
Porém, a dona Ellen não lida bem com as escolhas dos outros. A dona
Ellen incomoda-se com a tolerância de Marianne face às infidelidades de
Cohen. A dona Ellen incomoda-se com a referência de Cohen a uma
sanduíche que Marianne lhe preparou, “como se Ihlen fosse uma criada,
passiva a velar activamente por Cohen”. A dona Ellen chega a
incomodar-se com o encantamento dos espectadores da sessão de “Leonard
& Marianne” a que ela assistiu. A dona Ellen, que não é ninguém mas
simboliza a fúria de multidões, incomoda-se imenso.
E incomoda no processo gente que não lhe diz respeito. Nem valeria a
pena imaginar a sentença da dona Ellen perante qualquer biografia de
Joni Mitchell (para não mudar de assunto e citar uma das amantes
posteriores de Cohen), e do cortejo de homens passivos desejosos de a
inspirarem. Provavelmente, rabiscaria umas pantominices acerca da mulher
emancipada e tal. À semelhança dos demais cultos contemporâneos, o
feminismo não presta atenção à racionalidade. A ideia é estabelecer um
quadro das regras que devem regimentar a humanidade, e de seguida catar
exemplos de violação das regras. Por fim, convém punir os
prevaricadores. Não sei se há ironia no facto dos filhos e dos netos dos
campeões do “amor livre” lutarem por abolir os últimos vestígios de
liberdade do amor, e reduzi-lo a um reflexo contratual, um inventário de
critérios, uma caricatura repulsiva da coisa autêntica. Sei que os
novos puritanos fazem os antigos parecer tolerantes. E escassos: fica a
impressão de que, hoje, meio mundo vigia a metade restante.
É um mundo fragmentado e desolador, repleto de beatos e bufos. Uns
são genuinamente tresloucados, os pragmáticos fingem. Todos sonham
construir carreiras assim, a denunciar, a perseguir, a excomungar, a
destruir quem calha e a propósito do que calha. Começa-se pelos
negócios, pelo ambiente, pela comida e termina-se na cama. E não promete
terminar nunca. Embora metam dó, os novos puritanos metem
principalmente medo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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