Nos tempos que correm, é importante lembrar a História, e particularmente a História da Rússia, em que pesa e pesará a herança de Stálin e do bolchevismo. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
No
próximo dia 3 de Abril faz um século que Estaline foi designado
Secretário-Geral do Partido Comunista da Rússia. É uma data decisiva
para a história política da Rússia e do mundo, num tempo em que a Rússia
volta a estar no centro da nossa História.
O
mundo contemporâneo nasceu da Grande Guerra de 1914-1918 e da “paz
punitiva” de Versalhes. Em 1917, as derrotas das tropas russas na frente
oriental arrastaram a queda da monarquia dos Romanoff e trouxeram a
revolução de Fevereiro e a revolução de Outubro, com o triunfo dos
bolcheviques.
Os
bolcheviques eram a ala esquerda do Partido Social-Democrata Operário
da Rússia que, em 1905, sob a chefia de Lenine, triunfara no congresso. O
“Outubro Vermelho” levaria ao poder estes revolucionários determinados,
imbuídos do messianismo utópico dos justos e iluminados, que não
concebem limites éticos ou morais na acção contra os inimigos do Bem, do
Progresso, do Povo e da inexorável marcha da História.
A
partir do Verão de 1918, as forças anticomunistas, os “exércitos
brancos”, com apoio de contingentes militares estrangeiros ocidentais e
japoneses, iniciaram a resistência e a guerra civil que os bolcheviques
iriam vencer.
Para
a vencer, os bolcheviques – que eram uma minoria não só na Rússia, mas
até entre a oposição ao czarismo – seguiram a estratégia dos jacobinos,
de quem Lenine era admirador e com quem aprendera a manipular princípios
democráticos para estabelecer a ditadura e o Terror. Do mesmo modo que
os jacobinos tinham dividido os inimigos em categorias sociais rígidas –
aristocratas, padres, camponeses da Vendeia –, assim também os
bolcheviques identificavam “inimigos de classe” e “inimigos do povo”, a
quem retiravam qualquer vestígio de razão ou de humanidade, recorrendo
ao terror em grande escala, como uma forma de “higiene social”.
A
História contemporânea tem mostrado que, para levar a opinião pública,
as “massas”, o povo a aceitar e a legitimar a guerra sem tréguas, o
genocídio ou o Terror, é preciso, primeiro, definir o grupo político ou
social ou étnico ou nacional a eliminar como “não-humano”, como inimigo
da Humanidade, da Nação, do Povo ou do que for. Foi o que os jacobinos
fizeram, primeiro com os monárquicos e católicos, depois com os
“moderados” girondinos e, finalmente, entre eles. Foi também o que os
bolcheviques fizeram com os russos-brancos e com os mencheviques, antes
de se começarem a sanear ou a eliminar entre si. Foi o que Hitler fez
com os judeus e os comunistas e depois com os seus partidários menos
seguros, na noite das Facas Longas. Foi o que, no Ruanda, fizeram os
hútus com os tutsis e depois com os hútus moderados. É o que, nas
sociedades actuais, recorrendo às técnicas possíveis, das fake news e
dos fact checks às deturpações de declarações e à ocultação de
realidades, pretende fazer-se com toda a dissidência ou problematização
do “pensamento único” – silenciando-as e cancelando-as socialmente. À
falta de eliminação física, que ainda não é permitida e pode dar cadeia,
recorre-se ao assassinato moral.
A ascensão
Com
“a revolução em perigo”, a Tcheka – a polícia secreta bolchevique que
sucedeu à Okranaczarista e que, em poucos meses, fez mais vítimas do que
a Okrana em várias décadas – exterminou russos-brancos,
sociais-revolucionários, mencheviques, socialistas e anarquistas aos
milhares, em represálias permanentes.
É
neste contexto histórico e político que Estaline se vai afirmar.
Nascido em 1878, em Gori, na Geórgia, filho de um pai sapateiro, que
detestava, e de uma mãe que adorava, Estaline foi educado no seminário
ortodoxo de Tiflis. Iossif Vissarionovitch Dgongachivili teve uma
juventude de leituras “revolucionárias”, de Victor Hugo a Karl Marx, e
iria ser sempre um devorador de livros e de filmes. O futuro Czar
Vermelho não se integrou na disciplina do seminário. Adolescente,
começou a escrever em publicações nacionalistas georgianas e, a partir
de 1903, como militante socialista clandestino, conheceu as primeiras
prisões. Em 1906 encontrou-se com Lenine em Estocolmo e em 1907 estava
já em Londres no Congresso do Partido.
Durante
anos, até à revolução de 1917, Estaline está na linha da frente da luta
revolucionária no Cáucaso, no exílio, nas prisões e na deportação
siberiana. É membro do Comité Central do Partido a partir de 1912,
quando escreve um ensaio sobre “O Marxismo e a Questão Nacional”. Talvez
porque se tenha especializado no tema, Estaline vai ser nomeado
Comissário do Partido para as Nacionalidades e com Lenine, Zinoviev,
Trotsky, Kamenev, Bukarine e Sverdlov vai fazer parte do Executivo do
Comité Central. Nas discussões internas da cúpula do Partido, Estaline
quase sempre apoia Lenine que, às vezes, está em minoria. Tem também,
durante a guerra civil, responsabilidades no abastecimento de Moscovo.
Na frente, combate contra Denikine e em Outubro-Novembro de 1919 está na
invasão da Polónia, invasão que terminará com uma grande derrota para
os bolcheviques, confirmada pelo Tratado de Riga de Outubro de 1920.
Acabada
a guerra civil com a retirada pelo Mar Negro das forças de Wrangel da
Crimeia, o ano de 1921 anuncia-se com forte contestação interna, desde a
revolta camponesa de Tambov à dos marinheiros de Kronstadt. O Exército
Vermelho conseguirá dominar estas rebeliões “reaccionárias” com a
habitual repressão e terror, mas uma fome tremenda mata milhões de
camponeses.
Em
Março de 1921, perante uma gravíssima situação económica, Lenine
substitui as directivas do “comunismo de guerra” pela chamada Nova
Economia Política, que reintroduz factores de mercado. Os bolcheviques
consideravam a liberdade de expressão, de imprensa e de reunião, bem
como o sufrágio universal e as eleições livres, “direitos
democrático-burgueses”, que convinha usar e explorar quando na oposição,
mas que urgia eliminar quando se tornavam “instrumentos
anti-socialistas”, passíveis de serem utilizados pela “Burguesia” e pela
“Contra-Revolução”. Os seus actuais sucessores da esquerda radical
parecem seguir o mesmo caminho quando contestam os direitos de livre
expressão dos seus adversários ou denunciam triunfos eleitorais como
triunfos do “populismo” e da “extrema-direita”.
Estratégia de controle
São
conhecidas as críticas de Trotsky e da esquerda bolchevique a Estaline,
que acusam de ser um revisionista da ortodoxia leninista. Estaline
tinha poder dentro do Partido e do Governo e como Comissário das
Nacionalidades do SovNarkom (abreviatura russa para o Conselho dos
Comissários do Povo). Percebeu cedo que a passagem de um partido
bolchevique que, em 1917, tinha 20 mil membros, para o partido vitorioso
da guerra civil, com centenas de milhares de militantes, significava a
transição de uma elite de “mentes brilhantes”, como Trotsky e Bukarine,
que aceitavam a liderança de Lenine mas que discutiam entre si, para um
colectivo muito maior com uma rede burocrática de suporte.
Manteve-se
no Conselho Militar Revolucionário da República, que se ocupava das
operações militares, e no Conselho do Trabalho e da Defesa, que tratava
da logística económica do Exército Vermelho. Lenine encarregara-o,
especificamente, de liquidar os mencheviques sobreviventes nas
estruturas do Partido e do Estado.
Tal
como no processo revolucionário de Paris, no período mais radical da
Revolução Francesa, o poder passara, em modo ditatorial, para o Comité
de Salvação Pública de Robespierre e de um punhado de incondicionais,
assim também a urgência revolucionária, a guerra civil e o combate à
reacção levaram os bolcheviques a entregar o poder a um Comité Central
de 19 membros. Destes, sairia o Politburo, para se ocupar da política e
da estratégia política, e o Orgburo, para se ocupar da administração do
Estado. E a “República dos Sovietes” logo inverteria a relação, passando
o Partido Comunista a controlar os seus órgãos superiores e a dominar
os Sovietes e a Administração do Estado.
A
regra era a concentração do poder nesse colectivo de meia dúzia de
“intérpretes do proletariado”. Disse-se que a razão pela qual Estaline
ficou com o Secretariado no Partido foi a preferência dos restantes
comissários por pelouros mais nobres, como os Estrangeiros ou a Guerra.
Mas seria precisamente a partir do Secretariado que Estaline firmaria o
seu domínio. Aí, ia ter, não só o poder de nomear, mexer e manobrar o
pessoal partidário, mas também a oportunidade de centralizar uma
importante rede de informações.
Depois
da doença e da morte de Lenine, Estaline consolidou o seu mando em meia
dúzia de anos através de uma série de alianças e da progressiva
eliminação de rivais. O primeiro foi Trotsky, cuja “revolução mundial
permanente” sofrera severas derrotas em Itália, na Alemanha e na Polónia
– com a vitória do fascismo, o esmagamento da revolta comunista dos
spartakistas em Berlim e dos comunistas na Baviera e a derrota militar
na Polónia, às mãos de Pilsudsky –, o que contribuiu para o triunfo da
tese estalinista do “Socialismo num só país”.
Ideias que matam
Estaline
derrotou a esquerda do partido, encabeçada por Trotsky, com o concurso
de Kamenev, Zinoviev e Bukarine. Depois, aliou-se a Bukarine e à
oposição “de direita” para neutralizar Zinoviev e Kamenev. Seguindo uma
linha “centrista” e com o apoio dos quadros médios do Partido e o
controlo da GPU (Directoria Política do Estado), que sucedera à Tcheca,
Estaline neutralizou primeiro os esquerdistas e depois o direitista
Bukarine. Em 1936-38, liquidá-los-ia a todos nos Processos de Moscovo.
Os
comunistas, de boa ou má fé, impressionados pelos crimes e horrores do
comunismo soviético no quarto de século do poder absoluto de Estaline
(1928-1953), procuraram construir a narrativa de que os princípios
generosos e humanitários do marxismo-leninismo tinham sido atraiçoados
pelo Czar Vermelho, que os sacrificara a um projecto de tirania pessoal.
Mas ao contrário das justificações de conveniência e das explicações
manipulatórias, Estaline só podia ter existido, e ter sido seguido e
obedecido, no quadro de uma ideologia salvífica, totalitária, que
legitimava em nome dos novos deuses da Modernidade ateia (e da História,
da Ciência, do Futuro, da Utopia) o que noutros tempos e noutros
quadrantes seriam atrocidades inqualificáveis, injustificáveis e
imperdoáveis.
Como
escreveu Soljenitsin no Arquipélago de Gulag: “É a ideologia que dá ao
Mal as suas tão almejadas justificações e dá aos que praticam o mal a
necessária firmeza e determinação. É a teoria social que ajuda a fazer
com que os seus actos apareçam como bons em vez de maus”
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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