Não canso de observar pessoas que durante muito tempo se bateram pela liberdade de expressão e hoje se calam. Um tema que parecia resolvido se tornou tóxico. Isso não deveria ser assim. Temos ainda um longo caminho pela frente, nessa direção. Fernando Schüler para a revista Veja:
A
decisão em que o ministro Alexandre de Moraes mandou bloquear o
Telegram continha dois aspectos essencialmente distintos. Um deles dizia
respeito a tema da mais alta gravidade, como indícios de pornografia
infantil e propaganda neonazista. São crimes tipificados na lei
brasileira e devem ser combatidos com rigor. Aspecto inteiramente
distinto dizia respeito, mais uma vez, ao ingresso do Estado na seara do
delito de opinião. Seis das dez exigências, atendidas pela rede,
bloqueavam e puniam qualquer coisa relativa a um blogueiro. Um outro
item mandava bloquear um jornalista. Então temos uma situação curiosa.
Algo na linha: “Estão vendo ali todos aqueles neonazistas e abusadores
de crianças? O.k., então prendam o blogueiro”.
Há
quem não veja nenhum problema nisso. Que é papel do Estado monitorar
opinião e que sem isso correríamos risco civilizatório. Há quem vá além,
dizendo que nada disso é opinião, mas coisas “muito mais graves”, como
escutei de um bom interlocutor. Quando perguntei a ele se essas
gravidades configuravam crimes, a conversa esfriou. Ele parecia não ter
resposta, mas gostava da ideia de que “aqueles malucos” fossem cuspidos
para fora do debate público. No Brasil de hoje fomos aceitando,
devagarinho, o Estado disciplinador. Vai se tornando aceitável que um
ministro do Supremo mande banir ou prender um jornalista porque ele
“passou do ponto”. Sem disfarçar as palavras: a censura prévia voltou a
correr à solta no país. Uma parte da sociedade, imersa na polarização,
acha bacana. Outra parte, um pouco cansada, ou assustada, silencia.
Por
vezes me surpreende que essas coisas estejam acontecendo no Brasil, 34
anos depois da promulgação da Constituição. Mas talvez não devesse. Não
temos uma Magna Carta, ou um Bill of Rights, em nossa formação
histórica. Getúlio Vargas aparece como herói, em filmes e livros
didáticos. Saudosistas de 1964 não nos faltam. Seria mesmo estranho que
alguém se importasse muito com a prisão de um ou outro blogueiro
boquirroto. E ainda mais “do lado errado” do jogo político.
Só
prenderam “gente irrelevante”, li de um professor. A frase é
reveladora. Sempre me interessei em acompanhar o destino dessa gente
irrelevante. O primeiro de que me lembro foi um sujeito apelidado de
“mito-show”. Negro, baiano, dançarino. Um dia fez uma vaquinha, se mudou
para Brasília e se meteu em manifestações contra o STF. Foi em cana.
Ninguém deu bola. Em um despacho, li que ele era suspeito de “crime
associativo”. Em outro, suspeito de “causar animosidade entre os
poderes”. Na imprensa, li ser um “extremista”, o que chega a ser
engraçado. Pergunta sobre o enquadramento de seus crimes, nenhuma.
Depois
veio uma penca de gente irrelevante. Um jornalista de Brasília, acusado
de envolvimento “na preparação dos atos do 7 de Setembro”, ficou preso
por dois meses e tanto e foi solto. Ninguém mais ouviu falar dele.
Depois tivemos a censura às contas de blogueiros favoráveis ao voto
impresso. “Mentirosos”, na visão do TSE. Aceitamos passivamente a tese
de que cabia ao tribunal dizer o que era ou não “a verdade”, e mandar
uma empresa cortar os pagamentos a esses brasileiros mentirosos. Depois
veio um outro cidadão e seus crimes feitos de frases sobre “ameaças à
democracia”, à parte o imperdoável dedo médio apontado para o prédio do
STF. A tudo isso, silenciamos. Afinal, eram apenas “blogueiros
bolsonaristas”, espécie de tipo penal oculto que parece justificar
qualquer coisa neste país dividido.
Foi
para evitar que essas coisas acontecessem que os fundadores da
República americana escreveram, na Primeira Emenda à Constituição, que
“o Congresso não fará leis restringindo a liberdade de expressão”. O
objetivo era impedir que um direito essencial à liberdade terminasse à
mercê do mundo volátil da política. Sujeito a eventuais maiorias, no
Legislativo, ou à interpretação subjetiva dos juízes, ao longo do tempo.
É
o que vemos no Brasil de hoje. Com o detalhe de que dispensamos a lei.
Fake news, por exemplo, não é crime no Brasil. Mesmo assim, pessoas são
punidas sob alegação de fake news. Há um problema nisso? Lamento dizer
que sim. As democracias constitucionais foram feitas precisamente para
que ninguém, nem mesmo o representante da minoria das minorias, tenha
seus direitos subordinados à vontade de quem detém o poder. Mesmo que
esse alguém seja a mais alta autoridade da Justiça e seja movido pela
melhor das intenções.
Boas
intenções e a devida base jurídica nunca faltaram em qualquer episódio
de censura, no curso da história. No caso brasileiro, boas razões
costumam se referir a variações da ideia de “defesa da democracia”. A
base jurídica vem da plasticidade do direito. As “dependências do
Supremo”, como reza o Artigo 43 de seu regimento, são todo e qualquer
lugar, não é mesmo? Quem dirá o contrário? Não se admite censura prévia.
Mas se admite, certo? É assim nas democracias iliberais. Nas
democracias que “morrem por dentro”, como tanto se escutou nos últimos
anos. Por dentro das leis infinitamente ajustadas para que os que detêm o
poder produzam as consequências que desejam produzir.
O
The New York Times escreveu um longo editorial, por estes dias, com um
título sugestivo: “Os Estados Unidos têm um problema de liberdade de
expressão”. Cresce a intolerância nos campi universitários, a cultura do
cancelamento corre à solta e diversos estados ensaiam legislações
restringindo o que pode ser dito nas salas de aula. Esquerda e direita
apelam à ideia de “dano”, para censurar um lado e outro. O discurso que
fere valores democráticos, minorias, visões religiosas. E é aí que mora o
problema. São temas sem acordo possível em uma sociedade aberta. “Não
havendo definição clara do que o dano significa”, diz o editorial, “as
restrições se tornam arbitrárias, com efeitos desproporcionais.”
A
partir daí vem o medo. Nada diferente do que se passa no Brasil agora.
As democracias liberais deveriam ser o lugar em que os cidadãos falam
sem medo. Dizem coisas por vezes insuportáveis, em um sistema que
garante seus direitos. Sistema que, por definição, reconhece a
existência de pessoas irrelevantes. Tudo isso se tornou um tanto nublado
nos dias que correm. Não canso de observar pessoas que durante muito
tempo se bateram pela liberdade de expressão e hoje se calam. Um tema
que parecia resolvido se tornou tóxico. Isso não deveria ser assim.
Democracias inclusivas demandam uma definição clara sobre direitos.
Temos ainda um longo caminho pela frente, nessa direção.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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