BLOG ORLANDO TAMBOSI
Assumir que uma nação ou um Estado não existe é reivindicar o direito de destruí-lo. Timothy Snyder para o Estadão:
Uma
década atrás, ele propôs que a política nasce de antagonismos entre
amigos e inimigos, seguindo o jurista nazista Carl Schmitt e o filósofo
fascista Ivan Iliin, que Vladimir Putin considera professores. A Ucrânia
era uma amiga forçosa: quem não compreendia que os ucranianos são parte
da civilização russa é inimigo. Para Putin, a “unidade nas almas” de
russos e ucranianos é a vontade de Deus, defendida por uma violência
depurativa.
Em
um extenso ensaio, publicado em julho, Putin argumentou que a nação
ucraniana não existe. Complementando alegações anteriores com outras que
qualificou como históricas, Putin escreveu a respeito da “unidade”
entre russos e ucranianos. O Ocidente confundiu os ucranianos fazendo-os
acreditar que eles possuem uma identidade distinta, mas isso poderia
ser corrigido.
Essa narrativa ecoa a visão de Hitler.
O führer também considerava os ucranianos um povo de natureza
colonizável, que, uma vez libertado da liderança supostamente judaica da
União Soviética, serviria gentilmente a novos mestres. Dimitri Medvedev
juntou essas duas posições deixando claro que o elemento que
desqualifica o governo ucraniano é seu presidente judeu. Nas semanas que
antecederam a invasão, a Rússia se recusou a negociar com a Ucrânia,
qualificando-a como vassala.
Putin
deu continuidade ao seu argumento em 21 de fevereiro, anunciando que
tropas russas atravessariam a fronteira para a Ucrânia porque o Estado
ucraniano é artificial. Já que a Ucrânia foi “criada inteiramente pela
Rússia”, a Rússia tinha direito a corrigir esse erro.
Assumir
que uma nação ou um Estado não existe é reivindicar o direito de
destruí-lo. “Desnazificação” e “desmilitarização”, os dois objetivos de
guerra que Putin anunciou em 24 de fevereiro, dia em que sua invasão
começou, significam exatamente isso.
“Desnazificar”
significa eliminar as pessoas que não entendem que a Ucrânia é parte de
uma Rússia maior. É fácil ser distraído pela perversidade da referência
nazista, já que a Ucrânia é uma democracia governada por um presidente
judeu, e as bombas russas mataram até mesmo um sobrevivente de campos de
concentração.
Mas
subliminarmente existe a política: “Desnazificar” para Putin significa
simplesmente uma licença para matar ou deportar pessoas. Já que o termo
“nazista” não se refere a ninguém em particular, ele vira uma
justificativa para guerra sem fim e depuração. Então, enquanto houver
ucranianos resistindo, haverá nazistas para punir.
“Desmilitarizar”
significa destruir um Estado soberano pela força, o que incluiria a
eliminação de qualquer um capaz de preservar as formas elementares da
soberania. O objetivo inicial da guerra foi capturar (e presumivelmente
matar) a liderança ucraniana, que Putin caracterizou em 24 de fevereiro
como uma “junta antipopular” e no dia seguinte como “viciados em drogas e
neonazistas”.
Em
16 de março, durante um discurso empolgado atacando seus críticos
internos, qualificando-os como “traidores” e “escória”, Putin referiu-se
aos russos que mantêm laços com o Ocidente como “moscas”. Em sua mente,
ucranianos são o mesmo que russos que gostam de ocidentais. Eles devem
ser corrigidos à força — “purificados” ou “cuspidos para longe”, segundo
colocou naquele discurso.
Putin
previu que a Ucrânia cairia em dois dias. Isso não aconteceu, mas a
propaganda dessa narrativa já estava pronta. Uma declaração de vitória
foi publicada acidentalmente pela agência de notícias oficial do governo
russo RIA Novosti em 26 de fevereiro. Ela reprisou todos os temas
genocidas de Putin como parte de “uma nova era”. O Estado ucraniano não
existia mais e a população de seu território tinha aceitado alegremente a
dominação russa. A “unidade” havia sido atingida por meio da “resolução
da questão ucraniana”. Um Estado ucraniano “jamais voltará a existir”, e
as massas estavam felizes em viver como “pequenos russos”.
Atrocidades
A
discrepância entre essas fantasias e a realidade produz as atuais
atrocidades. Putin não pode admitir que errou e é obrigado a fazer o
mundo se curvar à sua fantasia. A vitória só pode representar um país
tão destruído que os remanescentes da população sem-Estado não tenham
escolha a não ser aceitar que pertencem à nação estrangeira, submetidos a
controle policial russo e reeducação pelo resto de suas vidas — e
aceitando que seus filhos sejam criados como russos, sem nenhuma das
liberdades que eles conheceram enquanto ucranianos.
Esta
ambição é visível na maneira que a guerra é travada: equipes de
assassinos não param de chegar, e elites locais seguem desaparecendo.
Milhares de ucranianos foram deportados para a Rússia contra sua
vontade. Hospitais, escolas e abrigos antibomba para civis são atacados
incessantemente. Um quarto da população de 44 milhões de pessoas foi
deslocado pela guerra.
As
palavras de Putin refletem claramente as ações de seu país na Ucrânia. O
Artigo 2.º da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de
Genocídio das Nações Unidas especifica cinco atos que cumprem sua
definição de “genocídio”; todos foram cometidos pelas forças russas na
Ucrânia. Como evidência de dolo: Putin os vem confessando desde o
início.
Os
ucranianos entendem isso tudo; e por causa disso estão lutando.
Testemunhar a aspiração genocida de Putin pode ajudar o restante de nós a
entender de onde vem esta guerra, para onde vai e por que ela não pode
ser perdida.
*Timothy
Snyder é professor de história na Universidade Yale e autor de ‘O
caminho para o fim da liberdade’ e ‘Terras de sangue’. Ele gravou uma
nova edição em áudio de ‘Sobre a tirania’, com 20 aulas novas a respeito
da Ucrânia
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