Relatórios bianuais do EIU divulgados desde 2006 mostram uma acentuada redução na qualidade de nossa democracia. Artigo do professor Bolívar Lamounier para o Estadão:
O
leitor certamente conhece o instituto de pesquisas inglês Economist
Intelligence Unit (EIU), ligado à revista The Economist, que compila
anualmente um “índice de democracia” para mais de 60 países. Baseando-se
em diversos indicadores, o EIU classifica tais países com base em
diversos indicadores e situação conjuntural de cada um.
Em
seu relatório de 2020 – o mais recente divulgado –, a instituição
traçou um quadro sombrio, indicando um enorme retrocesso em todos os
continentes. O título do relatório, In sickness and in health? (Na
doença e na saúde?), já sugere o fator posto em relevo: a pandemia de
covid-19, que forçou a maioria dos governos a tomar medidas que
provavelmente seriam rejeitadas pelos cidadãos caso fossem submetidas a
algum tipo de plebiscito. Esse trágico painel reforça numerosas análises
que vêm há anos prognosticando o iminente fim da democracia
liberal-representativa.
O
EIU classifica os países estudados em quatro categorias. A “nata” da
democracia, designada como “democracias plenas”, compreende apenas 23
países, nos quais vivem 8,4% da população mundial. Os países nórdicos da
Europa e o Canadá ocupam as posições mais altas. Na América Latina, só
três países – Uruguai, Chile e Costa Rica – podem gabar-se de ser
“plenamente” democráticos.
O
grupo seguinte, denominado “democracias defeituosas”, compreende 52
países e 41% da população mundial. Esses países podem orgulhar-se de
alguns traços democráticos importantes, desde logo o fato de que o
acesso ao poder se dá mediante eleições periódicas, limpas e livres, mas
não conseguem manter um padrão elevado em outros aspectos, como a
liberdade de imprensa e a proteção dos direitos humanos. Uma parte
expressiva dos cidadãos se opõe aos valores básicos da democracia. Para
ter uma ideia da qualidade exigida para um país ser considerado
“plenamente” democrático, basta lembrar que França, Portugal e Estados
Unidos foram recentemente rebaixados para o grupo “defeituoso”, fato
perceptível no caso norte-americano, tendo em vista a virulenta
polarização iniciada na eleição presidencial de 2016, que deu a vitória a
Donald Trump, e a recidiva racista, grotescamente ilustrada pelo
assassinato de um negro quando um policial o manteve sufocado sob sua
bota durante 8 minutos.
O
terceiro grupo, designado como “regimes híbridos”, é uma mistura
desconexa, na qual alguns países até mantêm uma contrafação de processo
eleitoral, mas que, a meu ver, não passam de ditaduras, abertas ou
veladas.
Abaixo
dos “regimes híbridos” temos os países inequivocamente ditatoriais,
como a China, o Irã e a Coreia do Norte. Alguns desses países
exemplificam bem o que acima designei como contrafação de processo
eleitoral. Na Bielorrússia, por exemplo, o presidente Alexander
Lukashenko, possuidor de sólidas credenciais fascistas, pleiteou em 2020
o seu sétimo mandato. Ao se dar conta de que seu adversário, Siarhei
Tsikhanouski, poderia dar-lhe algumas dores de cabeça, mandou-o para a
cadeia. Não se importou com a mulher dele, Sviatlana Tsikhanouskaya, uma
simples dona de casa que se ocupava tão somente de cuidar de seus dois
filhos, um deles nascido surdo. Mas o implausível aconteceu. Ela se
candidatou à presidência, o inconformismo latente veio à tona e ele,
Lukashenko, achou melhor mandá-la para o exílio na Lituânia.
O
caso da Bielorrússia contém uma lição importante: o fascinante painel
que a pesquisa do EIU nos proporciona requer certos cuidados na
interpretação. O sucesso eleitoral da sra. Sviatlana e a evidência de
que a Bielorrússia não passa de uma ditadura nada tiveram que ver com a
conduta do governo em relação à pandemia. No sentido oposto, a estrela
do relatório de 2020 é Taiwan, que subiu 11 posições, alçando-se ao
seleto grupo das democracias plenas.
O
Brasil é outro caso que precisa ser interpretado com cautela. Ocupando a
49.ª posição, estamos um pouco acima da Índia e um pouco abaixo da
África do Sul. Os relatórios bianuais divulgados desde 2006 mostram uma
acentuada redução na qualidade de nossa democracia (que nunca foi grande
coisa). Importa ressaltar que estou me referindo à série iniciada em
2006, portanto a pandemia, por maior que venha a ser seu efeito, não é a
explicação. Se queremos de fato entender o que vem acontecendo, melhor
será começarmos pela ressurreição do populismo a partir de 2002; o
conluio entre a deslavada corrupção implantada na Petrobras com a malta
dos empreiteiros; a liquefação da estrutura partidária; a recessão
engendrada pelos desatinos econômicos da sra. Dilma Rousseff; a estúpida
polarização política entre Bolsonaro e o PT, iniciada na eleição de
2018; a liturgia presidencial, espezinhada pelo sr. Jair Bolsonaro, tudo
isso servindo como pano de fundo para o fato de nos havermos igualado
aos Estados Unidos numa grotesca manifestação de racismo, o assassinato
do congolês Moïse no Rio de Janeiro. Haveria mais o que dizer, claro,
mas, a oito meses da eleição, basta lembrar que o farol baixo aponta
para a Bielorrússia, o alto, para Taiwan.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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