A cruzada de um ministro e um procurador contra Sergio Moro é uma amostra dd garantismo e do Estado de Direito, pelos detratores da Lava Jato, só vale quando lhes convém. Fabio Leite para a Crusoé:
Renan
Calheiros presidia o Senado quando decidiu desengavetar um projeto que
estava parado na casa havia sete anos para aprovar uma nova lei de abuso
de autoridade. Era 2016 e a iniciativa causou enorme repercussão ao
escancarar a contraofensiva da classe política às prisões e condenações
realizadas pela Operação Lava Jato. No fim daquele ano, uma sessão
comandada pelo senador no plenário marcou o primeiro embate público
entre duas figuras centrais na discussão: Gilmar Mendes e Sergio Moro.
Enquanto o ministro do Supremo Tribunal Federal defendeu que era preciso
aprovar a lei para impor “limites” às operações de combate à corrupção,
postura que ele adotou depois que Michel Temer assumiu o Palácio do
Planalto, meses antes, o então juiz federal via na proposta uma clara
tentativa de “criminalizar” as investigações.
Quando
a lei patrocinada por Renan e Gilmar foi aprovada e sancionada, em
2019, o contexto político do país já era outro. A Lava Jato sofria uma
série de ataques, abastecidos pelas mensagens hackeadas dos procuradores
da extinta força-tarefa de Curitiba, e a agenda anticorrupção defendida
por Sergio Moro no Ministério da Justiça enfrentava sucessivos boicotes
do presidente Jair Bolsonaro e de seus neoaliados no Congresso. Para
camuflar as ações que resgatavam a impunidade nos crimes de colarinho
branco, os detratores da Lava Jato se apropriaram de um polido discurso
de defesa do estado de direito e das garantias fundamentais dos
acusados. A recente cruzada no Tribunal de Contas da União contra o
ex-juiz, agora pré-candidato à Presidência, mostra que no Brasil até o
garantismo é de ocasião. Ou seja, a depender do alvo, vale a conduta que
os garantistas tanto condenam.
Sergio
Moro virou alvo de uma investigação no TCU por suposto conflito de
interesse em sua atuação como consultor da empresa Alvarez & Marsal
por um ano, depois que ele pediu demissão do governo em 2020 e cumpriu
seis meses de quarentena. A suspeita foi levantada por Lucas Furtado,
subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU, porque a firma
de consultoria americana foi indicada pela Justiça de São Paulo como
administradora do processo de recuperação judicial da Odebrecht,
financeiramente abalada pelas condenações aplicadas por Moro enquanto
juiz da Lava Jato no Paraná. O procedimento na corte de contas ficou sob
relatoria do ministro Bruno Dantas, que chegou ao posto em 2014 pelas
mãos de Renan Calheiros.
A
pedido do subprocurador, Dantas determinou uma série de diligências
para fechar o cerco sobre Moro e a empresa americana, incluindo o
compartilhamento das mensagens hackeadas, dados sobre todas as atuações
da Alvarez & Marsal na administração de processos de recuperação
judicial de empresas privadas desde 2013 e cópia do contrato celebrado
em novembro de 2020 com o ex-juiz. Diante da exploração política do
caso, tanto por petistas quanto por bolsonaristas, Moro divulgou nas
redes sociais o montante que recebeu pelos serviços prestados à
consultoria durante um ano. Foram 3,5 milhões de reais, somando os
honorários mensais e um bônus de contratação. Na sequência, ele provocou
seus principais adversários na disputa. “Vai abrir as contas dos
gabinetes e da rachadinha, Bolsonaro? E você, Lula? Vai abrir as contas
das suas palestras e do sítio de Atibaia?”, escreveu nas redes.
Lucas
Furtado, que nem sequer era o procurador natural do caso, chegou a
pedir o arquivamento do procedimento no fim de janeiro, admitindo que o
TCU não tinha competência para investigar um contrato que não guardava
nenhuma relação com o poder público. Mas, diante da pressão dos
opositores de Moro, que viram no caso uma grande oportunidade para
fustigar a imagem do rival de Lula e Bolsonaro na corrida ao Planalto, o
subprocurador voltou à carga cinco dias depois. Desistiu do
arquivamento, solicitou que a Receita Federal apure se Moro deixou de
recolher impostos no Brasil e pediu que o ministro Bruno Dantas bloqueie
os bens do ex-juiz até a conclusão da investigação. Senadores do
Podemos, partido de Moro, pediram para que a Procuradoria-Geral da
República investigue Furtado pelo crime de abuso de autoridade. O
presidenciável também disse que processará o subprocurador.
Ao
longo da semana, vários juristas se manifestaram publicamente ou em
conversas reservadas sobre a atuação do TCU. “É um abuso de autoridade
absoluto praticado por esse subprocurador sob o manto do ministro Bruno
Dantas, que também está cometendo crime de responsabilidade ao dar
guarida para essa ação. Não é da competência do tribunal de contas
fiscalizar contas privadas. É um absurdo que o TCU se envolva nisso”,
afirmou o jurista Modesto Carvalhosa. “Eles querem transformar essa
questão do contrato do Moro, que é puramente política, em uma discussão
técnica no tribunal. Não tem o menor cabimento. É só para tentar
desgastar a imagem do Moro por causa da eleição”, disse um professor de
Direito Constitucional que falou sob reserva.
Na
visão de juristas ouvidos por Crusoé, a atuação flagrantemente fora da
competência do tribunal de Dantas e Furtado pode ser enquadrada no
artigo 30 da Lei de Abuso de Autoridade, que estabelece como crime, com
pena de um a quatro anos de detenção, “dar início ou proceder à
persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada
ou contra quem sabe inocente”. A legislação prevê ainda pagamento de
indenização pelo dano causado à vítima e inabilitação para o exercício
da função por até cinco anos ou perda do cargo público.
Líder
da ala garantista no STF e um dos responsáveis pela série de anulações
de sentenças da Lava Jato com o argumento da incompetência da Justiça
Federal do Paraná para julgar diversos casos envolvendo as empreiteiras
apanhadas no petrolão, o ministro Gilmar Mendes – que, assim como Renan
Calheiros, tem um ótimo relacionamento com Bruno Dantas – deixou o
assunto de fora dos seus comentários sobre quase tudo que é polêmico na
atuação de Sergio Moro. Há cinco anos, quando se contrapôs ao ex-juiz da
Lava Jato no debate promovido por Renan, Gilmar defendeu a inclusão de
integrantes do tribunal de contas no rol de autoridades passíveis de
punição na nova lei do abuso, o que acabou incorporado ao texto que
virou lei. “Acho bem-vinda a sugestão de trazer o Tribunal de Contas
porque ele hoje exerce um poder significativo e, muitas vezes, é capaz
de perpetrar abuso de autoridade”, discursou Gilmar na ocasião.
O
viés político do cerco a Moro no TCU ficou nítido com a reação daqueles
que se diziam vítimas de abuso de autoridade por parte da Lava Jato, em
especial do próprio Renan Calheiros, que desengavetou o projeto em 2016
e é o padrinho político de Bruno Dantas – ambos estiveram juntos no
famoso jantar de homenagem a Lula realizado em dezembro por advogados
anti-Lava Jato que se dizem defensores das prerrogativas dos réus e
investigados. “O TCU deve aprofundar as investigações do “marsalão”,
escritório onde Sergio Moro embolsou R$ 3,5 milhões. Descobrir os
serviços, os clientes… já que o conflito de interesse é flagrante.
Saquearam a democracia”, afirmou o ex-presidente do Senado, que sonha em
voltar a comandar o Congresso em caso de vitória do chefe petista nas
urnas.
Já
Bruno Dantas, que mira a primeira vaga que surgir no Supremo em um
eventual governo Lula, usou as redes para provocar Moro. Um dos três
ministros do TCU delatados pelo ex-governador Sergio Cabral por suposta
venda de decisões favoráveis à Fecomércio do Rio de Janeiro – a delação
foi anulada pelo STF no ano passado –, Dantas afirmou que “o Direito é
produto da cultura e da história” e que a “sua régua, assim como a das
garantias fundamentais, não muda de uma hora para a outra”. Pelo visto, o
ministro estava se referindo àquele velho hábito brasileiro em que a
régua varia não conforme o tempo, mas de acordo com o alvo levado ao
tribunal.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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