A lógica da guerra cultural parece supor que a inclusão de uns exija a derrota do lado de lá. Ou ao menos o silêncio. Fernando Schüler para a revista Veja:
Em
1988, Peggy McIntosh escreveu um libelo identitário, denominado “White
Privilege and Male Privilege”, listando 46 situações nas quais ela
usufruía algum privilégio, por ser branca e heterossexual. A lista
incluía itens como “encontrar facilmente cursos acadêmicos que dão
atenção apenas a pessoas da minha raça”, “não ter dificuldades em
encontrar um bairro onde as pessoas aprovem nossa família” e poder
“fazer caminhadas em espaços públicos”.
Os
critérios de McIntosh foram se tornando, ao longo do tempo, um padrão
recorrente em nossa cultura. Nos “comitês de diversidade”, nas empresas e
universidades e na retórica pública. São critérios seletivos.
Circunscrevem a diversidade aos aspectos de gênero, cor da pele e
orientação sexual. Tempos atrás escutei uma referência curiosa às demais
identidades, na forma de uma pergunta: “E o resto?”. “Que resto?”,
retrucou o interlocutor, que parecia alinhado às categorias de McIntosh.
A discussão terminou por ali.
McIntosh
faz sua lista parecer “inclusiva”, mas é só ampliar um pouco nossa
capacidade de enxergar as pessoas para perceber que ela também se define
pelo esquecimento. Das pessoas com deficiências, por exemplo. São 14,5%
da população; 69% das pessoas dizem já ter presenciado algum tipo de
discriminação contra elas no trabalho. Ainda me lembro de um chefe
ralhando com o responsável pelo RH: “Não me venha com esses PPDs, pelo
amor de Deus”. A expressão era até pior, prefiro não reproduzir aqui.
E
os mais velhos? Uma ampla pesquisa publicada na The Gerontologist
mapeou os estereótipos a partir do Facebook: 74% dos grupos voltados aos
mais velhos tripudiavam os idosos (“cheiram mal”, “atrapalham o
trânsito”); 37% sugeriam que fossem excluídos de espaços públicos.
Alguém já escutou coisas do tipo “aquele velho inútil”? Pois é, é
preconceito. Ou o diretor da empresa dizendo precisar de “gente jovem,
mais antenada”. Também é. O ponto é que ninguém dá bola. Nossos comitês
estão preparados para reconhecer formas de machismo, mas não de
“ageísmo”, na expressão cunhada pelo médico americano Robert Butler.
Podemos fazer silêncio sobre muitas coisas, mas elas não desaparecem por
causa disso.
Nos
últimos tempos tenho lido sobre neurodiversidade. O Brasil tem perto de
2 milhões de pessoas no transtorno do espectro autista: 37%, mesmo
formados, nunca conseguiram um emprego. Neurodiversidade é um termo
cunhado pela socióloga Judy Singer, ela mesma com a síndrome de
Asperger. Neurodivergentes não são doentes, ela diz, apenas distintos.
São um tipo de identidade, e por isso ampliam o significado do que seja
um mundo diverso. Não se iludam de que haverá um texto sobre seu
privilégio de “não ser um neurodivergente”, como também de “não ser um
deficiente auditivo”. E, se houver, desconfio que será recebido com
alguma impaciência.
São
apenas exemplos. As exclusões são múltiplas, mas a ferida aberta se
mostra na invisibilidade. O lado escuro da lua da diversidade, em regra
fora do discurso. Kwame Appiah associa as identidades humanas a seis
grandes dimensões: gênero, religião, raça, nacionalidade, classe e
cultura. Poderiam ser oito ou doze. É bastante arbitrário tudo isso.
Pessoas não são como verduras na feira, que vêm em caixas separadas. As
coisas são mais complicadas. Appiah tem raízes em Gana, foi criado na
Inglaterra, leciona em Princeton e escreveu magnificamente sobre as
mulheres chinesas que amarravam os pés. Sua obra talvez mais conhecida é
uma apaixonada defesa do cosmopolitismo. Qual seria exatamente sua
identidade? Perguntado sobre isso, acho que responderia como Salman
Rushdie: “Por que precisamos nos definir como paquistanês, mulher ou
afro-americano e agir como um porta-voz ambulante?”.
Em
2014, um estudante recém-chegado em Princeton, Tal Fortgang, causou
barulho ao publicar um texto, de fato um relato de vida, reagindo à
febre dos câmpus universitários, exigindo que as pessoas checassem seus
privilégios. Ele buscou a imagem de drones guiados por seus “superiores
morais”, vigiando suas opiniões, sua identidade grupal, ligada a gênero e
cor da pele, e pronto a ser julgado por um tribunal coletivo.
Seu
texto é uma reação tardia à vitória intelectual da tese de McIntosh.
Ele basicamente diz que tem uma história. Sua avó judia sobreviveu ao
campo nazista de Bergen-Belsen e emigrou para os Estados Unidos, sem um
tostão no bolso. Diz que sua história não é mais nem menos valiosa do
que outras histórias e que vê sua identidade não tanto como um “ser”,
mas como um “vir a ser”. Amálgama do que aprendeu em casa, do encontro
com a América multifacetada e de suas próprias escolhas. Um tipo
singular, que não tem do que se desculpar, que deve aos demais o mesmo
respeito que exige para si mesmo.
É
bom que a diversidade esteja no centro do debate. Sua explosão é
resultado do thymos, o desejo de reconhecimento, como definiu Fukuyama,
fio condutor das sociedades de direitos. Esse mesmo desejo põe agora um
novo desafio: diversificar a própria diversidade. Não deixar que uma
ideia-força vital como essa seja capturada pela lógica excludente da
política, pelas escolhas seletivas, pela definição do que é visível ou
não, valioso ou não, merecedor de respeito ou passível de toda sorte de
ofensas, a partir do gosto ideológico, da capacidade de pressão ou de
“colocar medo”, como li tempos atrás, desse ou daquele grupo. Seja ele
qual for.
Confesso
não ser muito otimista sobre nossa capacidade de diversificar a
diversidade. A lógica da guerra cultural parece supor que a inclusão de
uns exija a derrota do lado de lá. Ou ao menos o silêncio. Seu
sentimento é o da tribo: “Nossas razões são sagradas, as de vocês, o
erro”, como diz Jonathan Haidt. Tudo levado à enésima potência, no mundo
digital, com sua baixa empatia, tão abundante de estereótipos quanto
escasso de pessoas de carne e osso.
Por
isso de vez em quando abro meu Walt Whitman e seu Canto de Mim Mesmo.
“De toda a cor e castas eu sou / de toda classe e religião.” / “Um
fazendeiro, mecânico, artista, cavalheiro, marinheiro, quacre /
Prisioneiro, gigolô, arruaceiro, advogado, médico, pastor”. No verso
profético, tornado pop na música de Bob Dylan, Whitman dá a senha: “Eu
me contradigo? / Tudo bem, então me contradigo, / (sou vasto, contenho
multidões.).
Whitman
captou algo essencial. Não somos perfeitamente enquadráveis. Nos
cruzamos. Teimamos em escapar das identidades abstratas, ainda que de
todo lado tentem nos agarrar. A multiplicidade humana é muito mais ampla
do que parecemos dispostos a reconhecer, e boa parte dela reside dentro
de nós. Por isso, somos multidões. Alguma humildade, nesse mundo
complicado, quem sabe não nos faria mal.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário