O interesse pelo combo pornografia + luta de classes no caso do mendigo conquistador ressalta a devassidão real que sustenta a devassidão das ideias. Paulo Polzonoff para a Gazeta do Povo:
São
muito os aspectos imorais da história que, sem trocadilho ou com
trocadilho, seduziu o Brasil nesta semana: a do mendigo flagrado em ato
libidinoso com uma mulher de classe média dentro de um carro. Para
piorar, quem surpreendeu os dois amantes foi o marido que, à moda
antiga, deu uns tabefes no Don Juan socialmente desprovido. Como sói
acontecer em tempos de Grande Irmão, tudo foi devidamente filmado e
expostos nas redes sociais.
O mundo cão, acho que já disse por aqui,
não me interessa. Quando me vejo obrigado, por dever profissional, a
prestar um pouco de atenção a ele, tento guardar uma distância
intelectual, moral e olfativamente segura. O mundo cão, para mim, é como
aquele vira-lata caramelo de olhos tristonhos que você acaricia apenas
na imaginação, com medo de pegar pulga, sarna ou, pior ainda, raiva.
Minha colega Madeleine Lacsko já explorou bem
os aspectos absolutamente repreensíveis da exploração jornalística do
caso. Por um lado, trata-se a tentativa desesperada de conquistar a
atenção dispersíssima dos usuários de redes sociais. Por outro, é a
irresistível tentação do combo pornografia + luta de classes que mexe
com o imaginário de um público acostumado a consumir o miojo-com-vina do
noticiário.
Numa
semana marcada pela violência pornográfica da guerra, por ministro do
STF traindo desavergonhadamente princípios jurídicos e por Geraldo
Alckmin expondo a impudicícia de sua ambição e a indecência de seu
oportunismo político, o caso do mendigo conquistador me chamou a atenção
por trazer a discussão sobre esse Zeitgeist de devassidão para o mundo
muito real. (Tem muito eco nessa frase, né? Vou fingir que é intencional
e dizer que é estilo).
O
adultério envolvendo duas pessoas de classes sociais distintas ajudou,
inclusive, a atiçar deliciosos e inócuos preconceitos que a sacanagem
jurídica tenta eliminar por meio da canetada. A própria palavra
“mendigo”, obrigada a pedir esmola para aparecer em textos de uns poucos
cronistas politicamente incorretos, voltou à boca do povo em toda a sua
glória, legando ao limbo dos ofícios, memorandos, pareceres e portarias
os detestáveis “morador de rua” ou “pessoa em situação de rua”.
Da
imoralidade em si também dá para se tirar alguma lição útil a uma
geração acostumada à amoralidade ou, na melhor das hipóteses, ao
relativismo. Era justamente isso o que Nelson Rodrigues
fazia com seus contos e peças de teatro. Talvez seja o otimismo de
outono (sou desses), mas vejo com bons olhos o fato de o adultério estar
sendo visto pelo ridículo que é. Um ridículo que causa sofrimento e que
jamais deveria ser visto como “normal” ou um vício “inerente à natureza
humana”.
Isto
é, apesar das décadas de romantização do personagem, Don Juan não tem
nada de admirável. É um mendigo moral que pode até ser esperto e muito
eficiente em seus esforços de sedução. Mas o objetivo final de um Don
Juan é a satisfação de um prazer fugaz que não compensa o sofrimento
causado. Ele vai dizer que "foi por amor" ou "foi pelo bem comum" ou
ainda que "foi em defesa da democracia". Mas só acredita quem já está
predisposto a se deixar seduzir por explicações fáceis e doces.
Nelson
Rodrigues sabia muito bem que a devassidão pequena do sexo casual feito
dentro de um carro e com um mendigo é o que explica e inconscientemente
sustenta a devassidão maior, a devassidão das ideias, a devassidão das
corriqueiras traições políticas – e jurídicas, convém agora acrescentar.
Porque no fundo as duas devassidões têm uma origem em comum: o desejo
de saciar rapidamente vontades que uma consultinha rápida ao bom senso seria capaz de reprimir.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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