Palestra do filósofo britânico John Gray para o Fronteiras do Pensamento, ministrada em 2019:
A
mais forte tendência no pensamento humano é a de acreditar que nossa
espécie pode viver sob um sistema único de ideias. A conclusão foi
apresentada no palco do Fronteiras do Pensamento, pelo filósofo
britânico John Gray.
Gray
busca responder uma pergunta latente na sociedade contemporânea: para
onde o incessante conflito de opiniões vai nos levar? Até onde iremos
tentando convencer (ou até forçar) o outro a aderir às nossas opiniões e
visões de mundo?
É
fato que a hiperconexão digital rompeu as esferas de silêncio que
ofereciam relativa estabilidade para nossas relações. Neste saudável
distanciamento, éramos capazes de criar um universo impessoal, em que
grupos e comunidades muito diferentes podiam subsistir sem maiores
problemas.
Porém, a internet nos convocou a vivermos juntos. O tempo todo.
Onde
seria desejável apenas respeito e alguma distância, acabamos apostando
em uma guerra de surdos, com resultados que vão do isolamento à
violência. O que o futuro nos reserva?
Do
nazismo ao extremismo islâmico, passando pelo comunismo e pela chamada
Revolução Democrática, John Gray esmiuça a história e aponta como mitos
aparentemente opostos partem de uma mesma crença fundamental: a
imposição de um sistema universal.
Confira abaixo a fala do filósofo.
"Não
apresentarei doutrinas ou filosofias, porque uma das minhas crenças
mais fortes é que a verdade a respeito do mundo não pode ser contida
numa filosofia única ou num sistema único de ideias.
Temo
e suspeito de qualquer projeto, intelectual ou político, que queira
unificar e harmonizar o pensamento humano, a vida humana.
Um dos autores do século XX que mais aprecio é o escritor português Fernando Pessoa.
Diferentemente de Pessoa, não posso dizer que tenho múltiplas identidades ou heterônimos.
Mas,
como ele, resisto a qualquer ideia ou crença de que nosso objetivo deva
ser uma identidade única e uniforme, um tipo único de sociedade que
prevaleça no mundo todo.
Nossa meta deve ser um fim aos conflitos e isso se encaixa com o tema do Fronteiras do Pensamento, Como viver juntos.
Podemos
sim viver juntos, porque o mundo futuro, assim como o atual, consistirá
não apenas de um tipo de sociedade ou visão de mundo, ele consistirá de
diversos regimes, assim como no passado.
Haverá democracias liberais e não liberais, monarquias, repúblicas, impérios, áreas de anarquia.
Qualquer sonho de um sistema universal, seja ele comunista, anarquista, neoliberal ou positivista, é uma ilusão.
Nos
séculos XIX e XX, e nas primeiras décadas do século XXI, nenhum desses
sonhos demonstrou qualquer sinal de estar se tornando mais próximo da
realidade, mas, mesmo assim, estes sonhos são constantemente renovados
e, muitas vezes, são renovados de forma violenta.
A
violência desse sonho da unidade, da harmonia, da civilização única,
teve diversas formas no século XX: tivemos formas violentas no
leninismo, bolchevismo, stalinismo, no trotskismo e no maoísmo.
Todos
eram formas de violência organizada. Também tivemos o nazismo, o
fascismo e mais recentemente, projetos neoconservadores de mudanças de
regime.
Eu
fui um dos que atacou o projeto da Guerra do Iraque desde o início.
Aliás, antes do início, em 2002, e não fui o único a dizer isso.
Quando
ficou claro que algo como a Guerra do Iraque aconteceria, eu fui
totalmente contra e disse que o resultado seria a destruição do Estado
do Iraque seguido de um governo fraco onde haveria uma enorme quantidade
de conflitos sectários.
Seria fácil destruir o Estado do Iraque, o impossível seria reconstruí-lo e isso foi de fato o que aconteceu.
É
claro que houve aspectos geopolíticos na Guerra do Iraque, que tinham a
ver com o petróleo no Irã, mas, para muitas pessoas que eram a favor,
criar uma democracia no Iraque seria algo realizável.
Elas
acreditavam que a democracia se espalharia pelo Oriente Médio. Fazia
parte do que algumas pessoas chamavam de Revolução Democrática Global.
Ainda há pessoas que defendem isso.
A maioria das pessoas acredita que há um tipo de regime que é o melhor para o mundo.
A maior parte das pessoas acredita que a história humana se encaminha a um tipo único de regime.
Se
esse desenvolvimento for lento ou se houver resistência de algumas
partes do mundo, esse desenvolvimento pode ser acelerado por meio de
guerras, de invasões, de mudanças de regime.
Os
resultados dessa crença são quase sempre os mesmos: o experimento mais
recente disso foi aquele que a França e a Grã-Bretanha, mais do que os
EUA tentaram fazer na Líbia, derrubando o Kadafi e o resultado foi uma
condição de caos total na Líbia, com militantes islâmicos que cada vez
têm mais poder, uma excesso de refugiados econômicos que têm ido cada
vez mais para a Europa.
Enfim,
os resultados foram ainda mais rapidamente desastrosos do que os que
vimos no Iraque. Então, não existe nenhum exemplo de mudança de regime
desse tipo que tenha obtido os resultados daqueles que a apoiam.
Não
estou nem dizendo que tais resultados eram desejáveis, estou apenas
dizendo que, em provavelmente todos os casos, os resultados foram
diferentes ou até mesmo opostos aos imaginados por aqueles que apoiavam
as mudanças de regime.
Mesmo
assim, os governos ocidentais e os pensadores ocidentais ainda apoiam
isso. É uma tendência incurável no pensamento ocidental. Imaginar que as
nossas instituições sejam um sistema global.
Na
década de 1980, eu participava de muitos debates sobre se a União
Soviética entraria em colapso e eu acreditava que sim. Quando isso
começou, no outono de 1989, eu critiquei fortemente Francis Fukuyama que, então, havia publicado seu primeiro artigo sobre o fim da história, em agosto de 1989.
Em
outubro daquele ano, publiquei uma crítica ao artigo de Fukuyama,
publicado no meu livro Anatomia de Gray, em que falei que não estamos
observando o fim da história.
Pelo
contrário, na verdade, a história está continuando no seu curso normal.
O curso normal da história não é uma divisão ideológica, mas sim o
conflito por recursos, por religiões, por nacionalidades, grupos sociais
concorrentes, isso sim é normal. Me chamaram de pessimista, de negativo
e até de apocalíptico. Achei engraçado, pois apocalíptica é a visão de
que a história acabou.
Me
perguntaram: como poderemos viver no mundo descrito por Gray e eu
respondi como puderam viver nele até agora? Me perguntaram, no início da
década de 1990,o que você acha que vai acontecer após a nova direita?
Eles
estavam falando da direita liberal. Eu respondi que era óbvio o que
aconteceria, a antiga direita voltaria. Os racistas, os nacionalistas,
os machistas, os antissemitas, anticiganos, antigays, anti-imigrantes,
tudo isso voltaria.
Isso
está acontecendo agora na Hungria, na Grécia, em todos os lugares. Na
Espanha e na Itália com os partidos da esquerda, na França, a Frente
Nacional está mais forte do que nunca, e é isso que vai acontecer.
Por
que esse tipo de sonho de sistema único é tão forte, sendo que ele já
foi falsificado tantas vezes? Não existe nenhum tipo de tendência que
aponte realidade nesse direcionamento a um sistema único.
Algumas
pessoas me dizem que estou atacando os mitos, falsificá-los. Não. Mitos
não podem ser vistos como ideias falsas, porque não são teorias
científicas. Mitos são as únicas coisas que as pessoas têm de fato.
Então, eles vão continuar a existir.
Devemos
refletir sobre se queremos fortalecer estes mitos, se ficamos
apreensivos quando nossos mitos são questionados, se ficamos nervosos ou
deprimidos.
Se
é isso que procuram, sugiro que não leiam meus livros e procurem
Malcolm Gladwell ou livros de autoajuda. A minha proposta é pensar em
uma forma alternativa para viver bem, que é a forma como quase todos
pensavam até 200 anos atrás".
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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