Putin acredita que os Estados ocidentais não intervirão militarmente na Ucrânia devido ao receio de uma escalada para um confronto nuclear. Talvez esteja na altura de o Ocidente surpreender Putin. Samuel de Paiva Pires para o Observador:
Nos
últimos dias, não têm faltado comentadores, inclusive militares, a
asseverar a vitória rápida e esmagadora da Rússia sobre a Ucrânia.
Trata-se de uma ilação amparada na mera comparação aritmética entre os
dispositivos militares dos dois países, mas uma análise com recurso à
teoria realista das Relações Internacionais permite compreender por que a
Ucrânia está a resistir com algum sucesso à invasão russa. É que,
afinal, a guerra não é um exercício de matemática.
Segundo
John Mearsheimer, o realismo assenta nas seguintes assunções: i) o
sistema internacional é anárquico; ii) todos os Estados têm alguma
capacidade militar ofensiva; iii) os Estados não têm certezas sobre as
intenções dos outros; iv) o principal objectivo de qualquer Estado é a
sobrevivência; e v) os Estados são actores racionais, ou seja, pensam de
forma estratégica para maximizar as suas possibilidades de
sobrevivência. Este conjunto de características explica a contínua
procura, pelas grandes potências, de oportunidades para ganhar poder à
custa de outros Estados. Porém, à luz do neo-realismo defensivo, é
imprudente procurar maximizar o poder, porque o sistema acabará por
punir os Estados que envidem esforços nesse sentido. Já os neo-realistas
ofensivos consideram que faz sentido alcançar o máximo poder possível
e, se as circunstâncias o permitirem, tentar atingir a hegemonia.
Para
os realistas defensivos, como Kenneth Waltz, a tentativa de conquista
de hegemonia (regional ou global) é imprudente, podendo levar a uma
expansão exagerada (overexpansion). Esta, ancorada num aumento de poder,
influencia a balança de poder, levando a uma reacção por parte de
outros Estados – o balancing para repor o equilíbrio. Ademais, em
situações de conflito militar, existe um equilíbrio entre a defesa e o
ataque, habitualmente muito favorável à defesa. Por tudo isto, assumir
uma postura ofensiva precipita guerras em que o atacante sairá,
provavelmente, derrotado, mas mesmo quando a conquista é possível, tende
a ter mais custos que ganhos.
Os
neo-realistas ofensivos, naturalmente, discordam da abordagem
defensiva, considerando que nem sempre o balancing é eficiente para um
Estado ameaçado, uma vez que outros Estados podem preferir o
buck-passing a uma aliança defensiva, que o equilíbrio entre defesa e
ataque não favorece sempre a primeira, e que por vezes a conquista
compensa e pode nem ser necessário ocupar integralmente o opositor,
bastando anexar partes do seu território, dividi-lo ou desarmá-lo.
Importa
ainda salientar que os realistas defensivos e ofensivos estão de acordo
no que concerne às armas nucleares: só são úteis para efeitos ofensivos
se apenas um dos lados num conflito as tiver. Se integrarem o arsenal
de ambos, nenhum tem vantagem em atacar primeiro. Por isto, é improvável
a ocorrência de conflitos convencionais entre potências nucleares,
devido ao perigo de escalada para uma guerra nuclear.
Ora,
existem três razões fundamentais para o equilíbrio entre a defesa e o
ataque ser favorável à primeira. Primeiro, quem defende conhece melhor o
seu território. Segundo, o espírito de combate é animado pelo
patriotismo e nacionalismo característicos de quem está a defender o seu
próprio país – algo que contribuiu de forma determinante para a derrota
dos EUA no Vietname e a da União Soviética no Afeganistão e de onde
decorre que as grandes potências não são invencíveis, podendo ser
vergadas por pequenas e médias potências, frequentemente, com o apoio de
outras. A terceira razão diz respeito aos problemas logísticos que um
exército invasor enfrenta quanto mais penetra no território do
adversário, com as linhas de abastecimento a tornarem-se longas e
vulneráveis.
Estas
condições têm sido activos estratégicos fulcrais para a Ucrânia. Os
militares ucranianos conhecem melhor o terreno, e se a invasão passar a
uma fase de guerrilha urbana o peso deste activo tenderá a aumentar em
favor da resistência ucraniana. A infantaria russa parece ter avançado
mais rapidamente que as respectivas linhas de abastecimento,
contribuindo para algumas vitórias ucranianas e justificando
parcialmente os relatos de rendição e deserção de soldados russos.
Acresce que a demonstração de coragem pelo Presidente ucraniano,
Volodymyr Zelensky, cuja liderança tem sido exemplar, é crucial para
manter os soldados ucranianos e os próprios civis determinados na sua
resistência aos invasores.
Não
quer isto dizer que a Rússia não venha a conquistar Kiev e a Ucrânia.
Mas se tal acontecer, os custos serão elevadíssimos. O tempo corre
contra o Kremlin, que se vê cada vez mais isolado no panorama
internacional. As sanções económicas dirigidas à Rússia, pese embora o
tempo que demoram a fazerem-se sentir, contribuirão para asfixiar a sua
economia, o que aumentará o descontentamento interno e, no limite,
poderá levar à queda de Vladimir Putin. Aliás, um resultado frequente da
derrota em conflagrações militares, ou, pelo menos, do sofrimento de um
povo devido ao esforço de guerra, é precisamente a queda de líderes e
regimes políticos. Putin, mesmo com uma visão distorcida da história,
certamente não ignora o sucedido a Nicolau II e ao Império Russo, bem
como aos Impérios Alemão, Austro-Húngaro e Otomano com o término da I
Guerra Mundial. Zelensky, por seu lado, vai emergindo desta guerra com
uma aura de líder carismático capaz de resistir a uma invasão de um
regime autoritário e recolhendo cada vez mais apoios diplomáticos e
assistência militar. Ou seja, o balancing anti-hegemónico vai
funcionando.
Importa
ainda salientar que, desde o início do conflito, subsiste aparentemente
um motivo para as potências ocidentais não intervirem directamente com
forças militares convencionais no teatro de guerra: a posse de armas
nucleares por parte da Rússia. É o receio de uma escalada conducente a
uma guerra nuclear que está nas mentes dos decisores políticos, bem como
nas de muitos comentadores, especialmente após a ameaça, por Putin, de
consequências nunca vistas na nossa história. Ora, a ameaça implícita de
utilização de armas nucleares por Moscovo não é credível. Primeiro,
porque, como mencionado acima, os Estados são actores racionais e
estratégicos que têm como objectivo primário a sua própria sobrevivência
e as armas nucleares só são úteis para efeitos ofensivos se apenas um
dos lados num conflito as detiver. Segundo, porque retém validade a
brilhante análise de George Kennan no seu Long Telegram (1946) e em The Sources of Soviet Conduct
(1947), que esteve na génese da doutrina da contenção do expansionismo
soviético. Conforme salientou o eminente sovietólogo, o Kremlin é
“Impermeável à lógica da razão e altamente sensível à lógica da força.
Por esta razão, pode-se retirar facilmente – e geralmente fá-lo quando
encontra uma forte resistência em qualquer ponto.” Assim foi aquando das
crises dos Estreitos Turcos e do Irão, logo em 1946, mas também no
restante período da Guerra Fria, quando os EUA já não detinham o
monopólio das armas nucleares.
Isto
significa que o cálculo da utilização de armas nucleares não é tão
linear e automático como muitos comentadores e políticos pensam, talvez
influenciados pelo clássico de Stanley Kubrick Dr. Strangelove. Trata-se
de uma tecnologia eminentemente defensiva e quando dois lados em
confronto a detêm, ao invés de poder contribuir para uma escalada, pode
precisamente levar ao término das hostilidades. Quando a sobrevivência
de um dos lados é colocada em causa pelo recurso a esta tecnologia,
devido à garantia de retaliação, deixa de fazer sentido utilizá-la – era
nisto que assentava a doutrina da Mutual Assured Destruction (MAD).
Putin
está ciente disto e acredita que os Estados ocidentais não intervirão
militarmente na Ucrânia devido ao receio de uma escalada para um
confronto nuclear. Talvez esteja na altura de o Ocidente ser
imprevisível e surpreender Putin com o que para este é improvável,
revelando o seu bluff. Seria um golpe de mestre que rapidamente o
obrigaria a suspender as hostilidades e a sentar-se à mesa das
negociações antes que o seu regime colapse.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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