A ‘hora mais negra’ regressou à Europa com a infame invasão da Ucrânia pelo banditismo político-militar do czar soviético Vladimir Putin. É altura de evocar Winston Churchill. Artigo do professor João Carlos Espada para o Observador:
1
Surpreendentemente, ou talvez não, várias vozes no Ocidente continuam a
dizer que a culpa da invasão russa da Ucrânia foi do Ocidente.
Surpreendentemente, ou talvez não, essas vozes já não partem só da
extrema-esquerda (aliás em declínio bem vindo, ainda que tardio).
Surpreendentemente, ou talvez não, parece ser agora em sectores
anti-liberais do populismo de direita que têm crescido nos últimos anos
as vozes de conciliação — por vezes mesmo de elogio aberto — ao ditador
Putin. Isto está a acontecer pelo menos em França, em Itália, no Brasil e
até nos EUA, não sei se também em Portugal.
Uns
argumentam que o Ocidente ameaçou a Rússia com a entrada da Ucrânia na
NATO; outros dizem que a União Europeia e o Ocidente vêm ameaçando a
Rússia com a “exportação da ditadura do politicamente correcto”; outros
ainda, em delírio total, chegam ao ponto de dizer que a Rússia de Putin é
hoje a derradeira defensora da cultura europeia “não-politicamente
correcta”. E muitos ainda ganharam o hábito de dizer que o Ocidente já
não é verdadeiramente democrático e que se tornou uma “ditadura das
elites oligárquicas e politicamente correctas” — um “argumento”, aliás,
que era comum aos comunistas e aos nacionais-socialistas nazis dos anos
1920-40.
2
Os factos mostram sem margem para dúvida que a responsabilidade — e a
culpa — da invasão da Ucrânia cabe inteiramente ao banditismo
político-militar do czar soviético Vladimir Putin. Os factos têm sido
exemplarmente divulgados pela comunicação social nacional e
internacional e têm sido livre e civilizadamente escrutinados. Não
preciso de voltar a eles.
O
ponto que aqui me parece crucial é a emergência de vozes significativas
no interior das democracias liberais dizendo que a democracia liberal
já não é democrática — teria passado a ser uma “ditadura das elites
oligárquicas” Por esse motivo, alegam, pode ser justificável e até
aconselhável apoiar a ditadura russa (por enquanto, que eu saiba, ainda
não a ditadura chinesa).
É a este propósito que gostaria de evocar Winston Churchill.
3
Quando as democracias ocidentais estavam dilaceradas por uma aliança
nazi-comuinsta contra as chamadas ‘democracias parlamentares
capitalistas’ —. que conduziu ao infame Pacto Germano-Sovético,
(Ribbentrop-Molotov) de 23 de Agosto de 1939 que acordou a dupla invasão
da Polónia — Churchill avisou antes disso:
“Não
temos nós uma ideologia — se tivermos de usar essa palavra horrível —
não temos nós uma ideologia própria na liberdade, numa Constituição
liberal, no Governo democrático e parlamentar, na Magna Carta e na
Petição de Direitos?” (Discurso em Paris, 24 de Setembro de 1938).
Dois anos antes, também em Paris, Churchill denunciara igualmente a coligação entre as tiranias nazi e bolchevique:
“Entre
as doutrinas do camarada Trotsky e as do Dr. Goebels, deve haver espaço
para cada um de nós, e mais umas quantas pessoas, cultivarmos as nossas
próprias opiniões. […] Como poderemos nós, criados como fomos num clima
de liberdade, tolerar ser amordaçados e silenciados; ter espiões,
bisbilhoteiros e delatores a cada esquina; deixar que até as nossas
conversas privadas sejam escutadas e usadas contra nós pela polícia
secreta e todos os seus agentes e sequazes; ser detidos e levados para a
prisão sem julgamento; ou ser julgados por tribunais políticos ou
partidários por crimes até então desconhecidos do direito civil?”
4
Por outras palavras, Winston Churchill sabia com clareza distinguir as
ditaduras nazi e comunista das democracias liberais. Nunca as confundiu e
nunca aceitou que as ditaduras fossem justificadas pelas imperfeições
da democracia liberal — “o pior regime, com excepção de todos os
outros”. Foi por isso que soube liderar a condenação e a resistência
contra o bolchevismo e o nazismo desde a primeira hora.
Churchill
certamente acreditava que os povos de língua inglesa tinham um apego
particularmente forte à tradição da liberdade. Foi também por isso que
Churchill assinou com Roosevelt a Carta Atântica, logo em Agosto de
1941. E foi por isso que foi nos EUA, a 5 de Março de 1946, que ele
lançou a primeira denúncia pública da “Cortina de Ferro” e retomou o
apelo para a constituição da NATO.
Mas
Churchill também sabia que a tradição da liberdade pertencia à Europa
no seu conjunto e não apenas ao Reino Unido ou mesmo aos povos de língua
inglesa. No final da guerra, opôs-se aos que queriam punir a Alemanha e
os seus aliados e apelou abertamente a alguma forma de Clube Europeu. A
5 de Junho de 1946, três meses depois do discurso de denúncia da
Cortina de Ferro, disse Churchill em pleno Parlamento britânico:
“Devemos
proclamar sem medo: Deixemos a Alemanha viver. Deixemos a Áustria e a
Hungria serem livres. Deixemos a Itália retomar o seu lugar no sistema
europeu. Deixemos a Europa levantar-se de novo em glória e pela sua
força e unidade garantir a paz no mundo.”
A
19 de Setembro desse mesmo ano, no célebre discurso na Universidade de
Zurique (em cujo 50º aniversario tive o prazer e privilégio de
participar) Churchill foi ainda mais longe e argumentou que a
reconstrução da Europa deveria ser fundada na reconciliação entre a
França e a Alemanha: “Não poderá haver renascimento da Europa sem uma
França espiritualmente grande e uma Alemanha espiritualmente grande.“
5 Em suma, creio que é nosso dever defender a Ucrânia e o Mundo Livre. Como disse Churchill: “Nunca nos renderemos!”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário