Atentem aos nossos “putinistas” caseiros de esquerda e de direita e verificarão que, com toda a probabilidade, são os mesmos que militam, com graus de radicalidade variável, pela extinção de Israel. Artigo do professor Paulo Tunhas para o Observador:
A
11 de Março, Charles Moore publicou um artigo no Daily Telegraph onde
se referia ao facto de a simpatia por Putin não ser o exclusivo, em
Inglaterra, da gente que, na linhagem de Jeremy Corbyn, representa a
esquerda radical. Com efeito, explicava ele, muita gente de direita diz
aqui e ali coisas como “Pelo menos Putin defende o seu próprio povo”,
“Putin é um cristão a sério” ou ainda “A culpa é nossa por humilharmos a
Rússia”. Opiniões destas, aos olhos de Charles Moore, testemunham uma
incompreensão não só de Putin como, talvez com mais gravidade, dos
sucessos e dos méritos das democracias ocidentais. Como tantas vezes,
apanhei-me a concordar em pleno com o que ele diz.
É
que em Portugal observo exactamente a mesma coisa. O que não falta por
aí é gente, desarticulada dos partidos, mas aparentemente de “direita”,
que não cala admirações surtidas por Putin ou ostenta, mais geralmente,
uma indiferença soberana pela invasão da Ucrânia. Esse tipo de atitude é
sem dúvida ditada por vários factores: a pura e simples fascinação pela
“virilidade” do poder bruto, a persistência de um anti-americanismo
primário que está longe de ser património exclusivo da esquerda, a
reacção contra a wokeness generalizada que permeia as nossas sociedades,
a insensibilidade ao idealismo que é estruturante das causas
democráticas e, mais genericamente, a tendência para pensar que devemos é
preocupar-nos connosco e com o preço das botijas de gás e não nos
metermos em aventuras que não nos dizem em nada respeito.
Este
tipo de admiração, por mais que exiba uma colossal abdicação do juízo
político, tem, à sua maneira, uma razão de ser, e uma razão de ser que
tem origem no próprio Putin. Como muita gente, pus-me em tempos recentes
a ler livros sobre o homem. Li o “Dentro da cabeça de Putin” (2015), de
Michel Eltchaninoff, e o “Precisamos de falar sobre Putin” (2019), de
Mark Galeotti, e tentei ler também “A gente de Putin”, de Catherine
Belton (2020), mas abandonei-o depressa porque não tenho miolos para
seguir a complexidade das teias de influência que habitam o poder do
Kremlin. Em todo o caso, se há coisa que Eltchaninoff e Galeotti nos
mostram indisputavelmente é que as mais de duas décadas de poder de
Putin reproduzem em poucos anos todos os movimentos seculares da
história russa, oscilando entre a aproximação ao Ocidente e o
afastamento deste, uma oscilação na qual uma única coisa subsiste como
comum fio condutor: a ideia da grandeza imperial da Rússia, seja ela a
Rússia czarista, a soviética ou a contemporânea. Isso permite a Putin
tanto celebrar Kant – e o Tratado da paz perpétua! – como património
comum da Alemanha e da Rússia (por Königsberg ser hoje Kaliningrado),
como defender a irredutibilidade da maneira de pensar russa à maneira de
pensar ocidental.
Hannah
Arendt escreveu celebremente uma vez que personagens como Hitler ou
Estaline não tinham biografia. Num sentido banal, a proposição é
inteiramente falsa, e a prova empírica disso é que há muitas e boas
biografias deles. Mas suponho que o que ela verdadeiramente queria dizer
é que eles não tinham, de facto, biografias intelectuais. A relações de
ambos com as suas ideias eram de tipo puramente alucinatório ou de
natureza completamente instrumental. Não havia neles aquele
comprometimento com as ideias que convive com uma distância para com
elas que impede a sua confusão com a realidade que caracteriza uma
cabeça humana normal, seja a do homem comum, do político ou do filósofo.
É nesse sentido que Arendt podia dizer que eles não tinham biografia.
O
mesmo vale para Putin. E inútil procurar dentro daquela cabeça uma
forma mental mais ou menos claramente definida, quanto mais uma
“filosofia”. Há ali de tudo, num magma informe apenas unificado pelo
desejo do poder. Ora, será que isso o torna verdadeiramente
incompreensível, uma mente insondável, um mistério irresolúvel? Não, de
forma alguma. Há uma maneira de, na medida do possível, o conseguirmos
entender: através dos efeitos que ele produz na cabeça dos seus
admiradores, tanto de esquerda como de direita. Os efeitos são confusos,
é verdade, mas essa mesma confusão é elucidativa. O seu denominador
comum é o desprezo e o ódio pela democracia, que se manifesta de formas
diferentes e distinta retórica consoante os indivíduos. Perceber essa
gente toda, nos acordos dos seus pontos de vista – eles
entre-exprimem-se, como diria um filósofo, espelham-se uns aos outros -,
é perceber o universo de Putin.
Há,
de resto, um outro caso, muito conhecido, em que os mesmos espíritos
estão de acordo: Israel. Atentem aos nossos “putinistas” caseiros de
esquerda e de direita e verificarão que, com toda a probabilidade, são
os mesmos que militam, com graus de radicalidade variável, pela extinção
de Israel. E o motivo é exactamente o mesmo: o desprezo e o ódio pela
democracia. Com efeito, se há coisa de que estou convencido desde há
muito, muito tempo, é que Israel precipita o ódio à democracia que
habita muitas franjas da nossa sociedade. É, por assim dizer, um
laboratório onde esse ódio se exercita. Os actuais enlevos por Putin são
uma outra manifestação da mesma paixão.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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