Recordar a tragédia do Holodomor implica recordar as trágicas consequências do totalitarismo soviético. Por contraste, implica também celebrar a democracia liberal — assente na recusa do estado total. Texto do professor João Carlos Espada para o Observador:
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Realizou-se na passada quarta-feira, 24 de Novembro, na Universidade
Católica Portuguesa, um debate sobre a tragédia do Holodomor, a fome
premeditadamente produzida em 1932-33 na Ucrânia pelo regime comunista
soviético que gerou milhões de mortes. A iniciativa contou com a
colaboração do Instituto + Liberdade, dirigido por Carlos Guimarães
Pinto, que trouxe à Universidade Católica a exposição itinerante
internacional “Totalitarismo na Europa” — inaugurada em Portugal no
Palácio da Bolsa, no Porto, em Agosto, depois na Universidade de
Coimbra, agora aberta ao público na Católica de Lisboa, graças ao
generoso Anfitrião, Paulo Pinto, professor da Faculdade de Ciências
Humanas da Universidade Católica e director do Cultura at Católica.
O
debate, num vasto auditório totalmente preenchido, contou com
eloquentes intervenções de Carlos Guimarães Pinto, Aline Beuvink, Rita
Seabra Brito, João Pereira Coutinho e José Miguel Sardica. Não seria
possível resumir aqui a riqueza e profundidade das intervenções então
apresentadas.
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Mas talvez seja possível recordar aqui que esta evocação da tragédia do
Holodomor foi inserida numa Aula Aberta da cadeira de Mestrado e
Doutoramento do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica
intitulada “Tradition of Liberty” (que tenho o prazer e privilégio de
leccionar). Trata-se de uma cadeira sobre ideias políticas — história
das ideias políticas, sobretudo, embora não exclusivamente, no século
XX. Não se trata, por isso, de uma cadeira de História dos
acontecimentos políticos do século XX.
No
entanto, no centro da cadeira “Tradition of Liberty” sobre as ideias
políticas está a premissa fundamental de que as ideias têm
consequências. E as ideias políticas têm e tiveram retumbantes
consequências políticas — algumas delas simplesmente trágicas.
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Não é por isso por acaso que a cadeira “Tradition of Liberty” começa
com um primeiro capítulo, designado “The Total State vs. Liberal
Democracy”, dedicado ao “Manifesto Comunista” de Marx e Engels publicado
em 1848; em seguida ao artigo de Benito Mussolini na Enciclopédia
Italiana, em 1932, sobre “A doutrina do fascismo”; e, finalmente, à
conferência de Carl Schmitt, de 1931, sobre “Quando o Parlamento não
pode ser soberano”.
Estes
três textos, que são apresentados na íntegra aos alunos e não através
de interpretações pessoais do docente, convergem na defesa do que os
próprios autores designaram como “Estado Total”: a ditadura do
proletariado, na expressão de Marx e Engels; o ‘estado totalitário’, na
designação de Mussolini; o ‘estado total’, na designação de Schmitt.
Todos estes autores escreveram contra a democracia liberal, que
apelidaram de “burguesa, oligárquica e capitalista”. E todos eles
defenderam como alternativa um ‘estado total’.
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Esta ideia do ‘estado total’ traz-nos de volta à tragédia do Holodomor.
Trata-se de uma das mais chocantes expressões de como as ideias têm
consequências. A fome na Ucrânia nos anos 1932-33 não foi resultado de
causas naturais. Ela foi inteiramente provocada pela vontade política em
nome de uma ideia — a ideia de destruição da propriedade privada, em
nome da imposição de um novo modo de produção colectivista, alegadamente
ditado pelo rumo inexorável da história e cientificamente interpretado
pelo novo estado total, a ditadura do proletariado, liderada pela sua
vanguarda, o partido comunista.
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É incontornável recordar aqui o filósofo austro-britânico Karl Popper
(1902-1994), um dos mais devastadores críticos dos totalitarismos, da
chamada esquerda e da chamada direita, (também ele incluído na cadeira
“Tradition of Liberty”). Disse Popper sobre Karl Marx que o dogmatismo
ideológico marxista assentava na teoria alegadamente científica de que a
história tinha um sentido pré-determinado — o comunismo — que Marx
teria decifrado. Popper mostrou que essa teoria não podia ser
científica, uma vez que, não possuindo horizonte temporal definido, não
admitia a possibilidade de ser refutada pelos factos.
Popper
alertou em seguida para as devastadoras consequências (a)morais do
historicismo marxista, alegadamente científico. Marx desprezara o papel
das escolhas morais das pessoas, considerando-as uma ‘ilusão moralista e
burguesa’. Os valores morais seriam meros produtos da época histórica e
serviam apenas para justificar os interesses materiais das classes
sociais.
Karl
Popper argumentou em seguida que este alegadamente científico
relativismo historicista abria caminho à tirania do capricho, ou da
vontade liberta de qualquer escrúpulo moral, ou do estado total.
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A tragédia do Holodomor foi uma terrível expressão de como as ideias
têm consequências — e de como o chamado “socialismo científico” de Marx,
Engels, Lenine e Staline destruiu todas as fronteiras morais.
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Vale a pena recordar que, no dia seguinte ao evento sobre o Holodomor
na Universidade Católica, ocorreu o 25 de Novembro — aniversário da
restauração da democracia entre nós, em 1975, e, por coincidência este
ano, também Thanksgiving Day na América — “Land of the Free, Home of the
Brave”. As duas datas celebram a democracia liberal, assente na
limitação do poder e na rivalidade civilizada entre pelo menos dois
partidos rivais, um ao centro-direita outro ao centro-esquerda, sob o
primado da lei.
Sintomaticamente,
o Thanksgiving Day é agora contestado pela esquerda radical americana,
que o acusa de “burguês, oligárquico e capitalista”. Entre nós, o 25 de
Novembro é usualmente esquecido pela esquerda radical — que o acusa de
“burguês, oligárquico e capitalista”. Mas há também agora entre nós
cronistas auto-designados de “direita” (qual delas? seria útil
perguntar), que acusam o 25 de Novembro de ter sido “burguês,
oligárquico e capitalista” — e, ainda por cima, “de esquerda”.
Tal
como os da extrema-esquerda, estes autores de uma auto-designada
“direita” (qual delas?, volto a perguntar) argumentam que teria sido
preferível ter havido em Portugal, em Novembro de 1975, um confronto
entre extrema-esquerda e extrema-direita. Mário Soares, Sá Carneiro,
Adelino Amaro da Costa, Ramalho Eanes, Ernâni Lopes e Aníbal Cavaco
Silva felizmente salvaram-nos desses tribalismos terceiro-mundistas
rivais.
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E é de terceiro-mundismo que se trata, quando assistimos hoje à
identificação do chamado “centro” como lugar de cobardia, ou como recusa
da rivalidade entre partidos de centro-esquerda e de centro-direita.
Nas democracias liberais ocidentais (por contraste com as
pseudo-democracias do terceiro-mundo lideradas por “Generais Tapioca”), o
“centro” não designa um partido nem uma coligação de partidos. Apenas
designa um chão comum de acordo constitucional, sobre o qual
necessariamente devem concorrer partidos rivais, um ao centro-direita,
outro ao centro-esquerda.
Winston
Churchill — um orgulhoso “burguês, capitalista e parlamentar” —
explicou isso muito bem em Outubro de 1943 no discurso sobre a
reconstrução do Parlamento britânico, entretanto destruído pelos
bombardeamentos aéreos do ardentemente anti-burguês “nacional-socialismo
dos trabalhadores alemães” (liderado pelo Cabo Hitler). O Parlamento
britânico, disse Churchill, devia ser reconstruído na sua tradicional
disposição rectangular, de forma a manter clara a sua função moderadora,
pluralista, liberal e democrática: de um lado está o partido do
Governo, do outro está o partido da Oposição — cuja principal missão
consiste em controlar o Governo no Parlamento e em preparar-se para
destituir o Governo vigente nas próximas eleições.
Por
outras palavras, ambos rivalizam entre si e simultaneamente subscrevem
entre si as ancestrais regras civilizadas da soberania do Parlamento.
Por este duplo motivo — de rivalidade política e de convergência
constitucional (dificilmente entendível pelos tribalismos do terceiro
mundo dos Generais Tapioca) — o líder do Governo e o líder da Oposição
lideram lado a lado a procissão dos deputados da (eleita) Câmara dos
Comuns em direcção à (não eleita) Câmara dos Lordes, para assistirem ao
Discurso da Rainha.
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Para concluir, tenho o prazer de enfrentar a pergunta que Karl Marx,
Benito Mussolini e Carl Schmitt (podíamos acrescentar Friedrich
Nietzsche, para não ter de mencionar os menores Cabo Hitler ou os
camaradas Lenine e Staline) dirigiram às democracias “burguesas,
oligárquicas e capitalistas”: “Quem e em nome de quê definiu as regras
das democracias burguesas, oligárquicas e capitalistas?”
A
resposta do Ocidente — liberal, democrático, anti-autoritário — é
basicamente pluralista. As nossas regras constitucionais não foram
inventadas por ninguém, por nenhuma revolução nem mesmo por nenhum
déspota esclarecido do chamado Iluminismo continental. Elas simplesmente
emergiram gradualmente, através de reformas e não de revoluções,
fundadas nos preceitos morais herdados de Atenas, Roma e Jerusalém.
blog orlando tambosi
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