Em “Lula, volume 1”, o biografado é um herói abnegado, um ungido vítima de uma injustiça e investido da missão de provar sua inocência e, mais uma vez, salvar o país do jugo das elites. Paulo Polzonoff para a Gazeta do Povo:
Terminei
de ler “Lula, volume 1”, de Fernando Morais, há uma semana. Abandonei o
Kindle sobre o criado-mudo e, sei lá, fui viver a vida. Não fiz
anotações, não dei estrelinhas no Goodreads. Sabendo que teria de
escrever sobre o assunto, o máximo que consegui concatenar ao virar a
última frase foi o título que encima esta coluna. E que, por puro
milagre, não esqueci.
Foi
necessária uma bronca do meu editor para que eu me lembrasse da leitura
do calhamaço inútil. “Quero o texto sobre a biografia do Lula sobre a
minha mesa até as 17h!”, exigiu ele. Me prontifiquei a fazer o que fosse
possível. E, assim, os dias foram passando sem que eu fosse capaz de
escrever sobre um livro que nada mais é do que um razoável fenômeno
editorial oportunista de uma época corrompida pela estupidez ideológica.
Meu
trabalho de Hércules tinha um complicador: o fato de eu escrever, em
tese, para uma maioria de leitores que não nutre exatamente admiração
pelo biografado. Nem pelo biógrafo. Ora, eu mesmo não nutro admiração ou
simpatia por eles. Se Lula desperta em mim alguma coisa além de asco é
só porque se trata de uma figura de inegável importância histórica.
Quanto a Fernando Morais, eu agradeço pelo prazer que senti ao ler
"Chatô" na adolescência. Fora isso, que pena, Fernandinho. Que pena!...
Aí
se impõe o primeiro desafio ao leitor: como consumir com
“neutralidade”, ou melhor, com honestidade intelectual um produto que se
sabe de antemão contaminado por desonestidades político-intelectuais de
toda sorte? A meu ver, é impossível. E olha que eu tentei, hein? Ah, se
tentei. Linha por linha dos primeiros capítulos eu li dando todos os
tipos de descontos para o autor e o objeto de sua obra. Mas o que fazer
se, também linha por linha, me deparava com adjetivos e advérbios
malandramente planejamentos para compor uma peça de propaganda muito
distante de se passar por documento histórico?
É
isso o que “Lula, volume 1” faz: torna o leitor cúmplice de uma farsa
político-intelectual. Político-editorial? Político-historiográfica?
Enfim, uma farsa. Como se o simples ato de ler 600 páginas chancelasse a
falsa narrativa épica do herói descalço que virou imperador dos pobres,
foi preso injustamente por um juiz malvado e ressurgiu das cinzas nos
braços do povo, em meio a um regime fascista. Olha só esse trecho aqui
(um dos poucos que anotei) em que Fernando Moraes fala da violência das
delações premiadas que culminaram com a prisão de corruptos e
corruptores: “Nem todos, porém, se deixaram vergar à violência. Isso não
ocorreu apenas entre militantes do PT, como o bancário João Vaccari
Neto...”
Em
resumo, se eu lesse “Lula, volume 1” no ônibus, teria que ficar
balançando negativamente a cabeça, só para mostrar aos outros
passageiros que não concordo com nada daquilo. O que, por lógica, me faz
crer que a biografia tenha sido escrita justamente para que os
militantes exibam a sua fidelidade ao líder petista, numa triste (mas
provável) sinalização de desvirtude. Curiosamente, só senti uma espécie
de prazer intelectual ao ler “Lula, volume 1” depois que comecei a
imaginar como um militante petista estava lendo aquele troço. Digo, tudo
o que eu lia levemente indignado o petista deveria estar lendo com um
prazer escandaloso.
A
começar pela opção do autor de contar a vida de Lula partindo de sua
prisão. Veja só. O homem governou o país por 8 anos; durante esse tempo,
falou e fez o que quis; se deixou de fazer alguma coisa, não foi por
falta de oportunidade; teve o apoio (comprado) do Congresso, do
Judiciário, da maioria da população; deixou o cargo com recordes
estratosféricos de aprovação. E ainda assim o biógrafo tem a pachorra de
me dizer que Lula estava sendo preso para impedir a salvação do Brasil?
Sem
falar nos muitos momentos, uns mais explícitos, outros até que sutis,
de idolatria. “Lula aparentava tranquilidade” é uma descrição que, não
por acaso, aparece trocentas vezes ao longo da narrativa da prisão. Que,
por sinal, Fernando Morais introduz como um momento de ruptura na
normalidade democrática. “A atmosfera era a de um modorrento fim de
expediente como qualquer outro”, escreve Morais. Na primeira frase do
livro!
Em
“Lula, volume 1”, o biografado é sempre racional. Sempre carinhoso.
Sempre compreensivo. Se Lula se zanga, sua ira é justificável. Afinal,
ele é um herói abnegado, um ungido vítima de uma injustiça e investido
da missão de provar sua inocência e, mais uma vez, salvar o país do jugo
das elites. Não que eu, conhecendo o trabalho de Fernando Morais como
conheço, esperasse dele uma “análise crítica” de Lula. Mas seria demais
pedir um pouco de parcimônia? Um pouco de humanidade – no sentido até de
se querer entender as motivações erradas de um personagem que é
imperfeito por ser humano, e não só por ser petista, esquerdista,
comunista, adorador de ditadores, mitômano, narcisista, messiânico,
hipócrita, etc.
Felizmente
para Morais, consta que o livro está vendendo bem, obrigado. Cinquenta
mil cópias teriam sido vendidas na primeira semana. O que só prova que,
entre os raros leitores deste país, Lula ainda é uma sereia de canto
mortalmente sedutor. Isso sem falar nos que compraram o livro apenas
para expô-lo na mesinha de centro, a fim de que ele sirva de tema de
conversa. Ou provocação.
Infelizmente
para Morais, e felizmente para quem resiste a se deixar seduzir pela
sereia rouca, acintosos esforços de propaganda como “Lula, volume 1”
tendem a perder força com o tempo, sobretudo depois que o biografado
morre, o mito se decompõe e a verdade prevalece, senão nas estantes dos
quartos-e-salas fedorentos da intelligentsia, nesse éter justo que
chamamos de imortalidade.
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