A censura da liberdade científica é um padrão que vemos ocorrer com frequência, agora que as redes sociais permitem a qualquer sujeito com dois polegares licitar na hasta pública de juízos científicos. Maria Teresa Parreira para o Observador:
No
que se apelida de assoberbante “esquerda ideológica” da internet,
canta-se a igualdade de género e orientação sexual, celebração de
culturas individuais, liberdade de identidade, e um conjunto de outras
posições adotadas quase universalmente. Estes ideais liberalistas são o
produto de uma geração que cresceu com melhores condições básicas de
vida e, portanto, pôde ocupar-se de fraturantes temas sociais. O que é
excelente, não nos iludamos: tratam-se de aspetos profundamente
enraizados na experiência humana e a necessidade de abordar estas
temáticas e criar aceitação é gritante.
É
curioso, porém, notar a crescente onda de intolerância perante quem se
atreve a questionar algumas destas ideias. Repare-se que qualquer
indivíduo racional que pondere sobre ética e moral humana deverá, sem
dúvida, chegar aos valores enumerados acima. Contudo, atualmente, o
próprio processo de refletir sobre o sentido destas proposições é visto
como sinal de mau caráter – devemos aceitar cegamente estes ideais, sob
pena de sermos isolados como párias ideológicos. Um paradoxo de
inaceitação radical de quem se atreve a refletir sobre a aceitação.
Os
efeitos sociológicos desta tendência poderiam ser extensamente
apresentados por alguém com melhores habilitações que eu, que apenas
refleti sobre estas questões num acesso espontâneo de existencialismo.
Foquemo-nos, portanto, numa dimensão apenas, mas cujas implicações
merecem ponderação: a Ciência.
A
Ciência é, por natureza, apolítica. A procura pela Verdade deveria
viver um vácuo ideológico, aplicando métodos objetivos para investigar
todas as hipóteses que se aparentem promissoras. Infelizmente, esta é
uma perspetiva utópica do mundo científico: quem aplica a Ciência são os
humanos; os humanos são falíveis; logo, a Ciência é falível. Outros
interesses acabam por se entrelaçar com a motivação para chegar a novo
conhecimento, necessidades financeiras, contextualização histórica e
cultural, o próprio instinto de auto-preservação de um cientista que não
deseja desaparecer misteriosamente porque as suas conclusões questionam
o regime político em vigor. Portanto, a Ciência é apolítica, mas não se
pratica apoliticamente.
Nos
dias de hoje, inundados de correção política sob pena de exclusão
social, a Ciência verga-se mais e mais a ideias que o público geral
denomina “confortáveis”. Não faltam relatos
de investigadores que foram afastados dos holofotes da divulgação
científica devido a ideias que contrariam a perceção pública do que deve
ser explorado. A censura da liberdade científica não é um padrão novo,
mas é um padrão que vemos ocorrer com crescente frequência, agora que as
redes sociais permitem a qualquer sujeito com dois polegares (ou menos
que isso) licitar na hasta pública de juízos científicos.
Numa
primeira vista parecerá arrogância, presunção destes indivíduos, desde o
Zé da Esquina até ao mais proeminente intelectual da Academia, por se
considerarem aptos para assumir a posição de guardiões dos portões da
Ciência. Porém, a verdade é que este efeito social está embebido numa
fragilidade sistémica: o facto de existirem assuntos tabu na Ciência,
hipóteses cuja exploração – cuja própria formulação – é proibida para
qualquer investigador que deseje manter a sua carreira, revela nada mais
que uma profunda falta de fé na robustez do nosso método científico; e
uma curiosa mas talvez fundamentada desconfiança na maturidade
intelectual das massas.
O
método científico que aplicamos atualmente está nos alicerces de todo o
nosso conhecimento e tecnologia. Rege a evolução do saber humano
segundo princípios que, a seu tempo, tratam de descartar todas as
teorias falsas, falácias e vieses. Neste processo de poda das conjeturas
mais frágeis, a árvore da Ciência só poderá crescer na vertical, no
caminho para a Verdade científica. Cremos nisso, porque também o método
científico sofreu uma evolução até produzir resultados confiáveis –
outrora, a Ciência era baseada na descoberta de correlações aleatórias e
uma dose substancial de imaginação (frequentemente atribuindo a deuses
tudo aquilo que não era imediatamente explicável).
A
robustez tantas vezes comprovada do nosso método de chegar a novo
conhecimento deveria ser a motivação primária para não fechar portas a
quem pretende explorar ideias pouco ortodoxas, ou politicamente
incorretas. A nossa realidade é altamente susceptível à
contemporaneidade dos conceitos, é certo: basta-nos recordar a eugenia nazista
que marcou a ação política de Hitler. Mas o simples facto de, hoje em
dia, podermos olhar para estas conclusões e determiná-las
infundamentadas e declaradamente falsas significa, exatamente, que os
filtros da boa Ciência continuam a funcionar a todo o gás; apenas levam o
seu tempo.
Se
esta premissa apoia o argumento de que a Ciência não devia, sob nenhuma
circunstância, ver-se subordinada a crenças contemporâneas, o argumento
contrário jaz, exatamente, no tempo que os filtros levam a atuar. Esse
intervalo entre uma conclusão errónea de um estudo e o desacreditar da
mesma pode ter consequências devastadoras. Como exemplo,
um artigo de Andrew Wakefield que ligava vacina tripla contra o
sarampo, a papeira e rubéola a casos de autismo em crianças foi
publicado em 1998 mas retirado pela revista em 2004, quando foi
comprovada a sua falsidade. Apesar disso, em pleno 2021, grupos
antivacina continuam a sustentar essa crença.
A própria menção do nome de Hitler neste texto evoca de forma adequada a
magnitude dos danos que podem provir das ações humanas motivadas por
crenças falsas, mas convenientemente adquiridas.
E
não só – informações transmitidas a um grande público, especialmente se
forem de alguma forma disruptoras, serão processadas sob o que em
Sociologia se denomina o efeito de contágio, ou psicologia das
multidões, particularmente agravado na era das redes sociais em que o
mundo desenvolvido se comporta como uma só colossal entidade de ideias e
valores. Esta “consciência global” adota facilmente ideias
indevidamente justificadas, e é altamente susceptível a comportamentos
irracionais motivados por uma espiral de pânico (não preciso de recordar
o lendário açambarcar de papel higiénico que marcou o início da
pandemia no Ocidente). É por essa razão que a gestão de uma crise de
grandes dimensões está sempre intrinsecamente ligada à comunicação dessa
crise à população geral, com potenciais consequências que podem
invalidar por completo os esforços de resolução da mesma.
Assim,
porque a Ciência se faz, ou deveria fazer, no espaço público (uma
consequência da transparência exigida para a possibilidade de
verificação das conclusões), entramos numa área cinzenta – não devem
existir ideias inexploráveis, mas existem certamente ideias muito
perigosas.
Onde
é que isto nos deixa? No mesmo limbo onde começámos. Se é certo que
existem temas cuja exploração pode implicar graves consequências
sociais, também o efeito de castração da curiosidade científica pode
desviar-nos do caminho da boa Ciência. Mas se, por outro lado, criarmos
uma partição entre “ideias indicadas” e “ideias desaconselhadas”, uma
nova questão trata de se impôr: quem ficará responsável por traçar a
linha moral que distingue ambas?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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