Há ainda quem acredite no erro bizarro de não querer compará-las, o que é uma infinita capacidade para o autoengano. João Pereira Coutinho via FSP:
Mas
persiste ainda em alguns crentes a ideia bizarra de que o comunismo não
pode ser comparado ao nazismo. Existe um ideal qualquer, alegadamente
superior, que não se confunde com as vulgaridades de Hitler e seus
gângsteres.
Sou
insuspeito de simpatias marxistas-leninistas. Mas, por incrível que
pareça, os crentes têm uma certa razão, embora não pelos motivos que
imaginam. Em termos práticos, e sobretudo da perspetiva das vítimas, o
sofrimento e a morte serão sempre o sofrimento e a morte. A beleza do
ideal é uma fraca consolação no momento do último suspiro.
Mas
ajuda, sobretudo no marketing posterior a 1945. Há quem diga que a
alegada superioridade do comunismo sobre o nazismo está no fato,
comprovadamente histórico, de o comunismo ter ajudado a derrotar Hitler.
Seria
uma explicação perfeitamente válida se, em 1939, Stálin e Hitler não
tivessem assinado um pacto de não agressão (na verdade, foi um pacto
para partilhar a Polônia e estabelecer “esferas de influência” no leste
da Europa).
Além disso, convém não esquecer que Stálin abasteceu a Wehrmacht durante todo o front ocidental, praticamente até as vésperas da invasão nazista da União Soviética.
Um
livro recente, do historiador Ian Johnson, explica os detalhes.
Intitula-se, sugestivamente, “Faustian Bargain: The Soviet-German
Partnership and the Origins of the Second World War” (Oxford, 368 págs)
—em português, “Barganha Faustiana: A Parceria Germano-Soviética e as
Origens da Segunda Guerra Mundial”.
Mas
regresso à beleza do ideal. Será isso que salva o comunismo na
comparação com o nazismo? É provável. Não serei original a sublinhar a
diferença retórica entre os dois totalitarismos (Kolakowski chegou lá
primeiro).
Mas
enquanto o comunismo, no uso e abuso de termos como “igualdade” e
“justiça”, ainda se inscreve numa linguagem reconhecidamente
judaico-cristã, o nazismo e a sua exaltação neopagã da força e da
brutalidade representa um corte com essa melodia —uma “transmutação de
valores”, como diria o filósofo.
Essa
é a razão pela qual a linguagem do nazismo é repulsiva e indefensável
—e a linguagem comunista, independentemente das consequências, é tão
suave aos nossos ouvidos.
Se
dúvidas houvesse sobre essa suavidade, bastaria olhar para Lyuda, a
personagem central de “Caros Camaradas – Trabalhadores em Luta”, o
grande filme que eu nunca pensei que Andrei Konchalovsky seria capaz de
fazer.
Mas fez. Superficialmente, “Caros Camaradas” retoma um dos tabus que a União Soviética de Nikita Khrushchev tentou esconder: o massacre de dezenas de trabalhadores que se revoltaram em Novocherkassk, corria 1962.
E
revoltaram-se por quê? Pelos motivos mais compreensíveis: comida. O
preço da comida. Como exigir mais trabalho na fábrica quando os salários
risíveis não permitiam comprar os bens mais básicos? Eis a prova de que
o comunismo não precisa de embargos americanos para gerar a miséria do
costume.
Lyuda
não sofre com esse mal. Ela, funcionária do partido, tem certos
privilégios. Como, por exemplo, não agonizar nas filas para comprar a
janta.
Perante
esse estatuto, não admira que Lyuda seja uma implacável defensora do
regime. Pelo menos, até o momento em que as autoridades soviéticas
começam a disparar sobre os manifestantes que exigem melhores condições
de vida e a fazê-los desaparecer.
Entre
os desaparecidos, está a sua filha, Svetka. Lyuda tentará procurá-la
nos hospitais, depois na morgue, e finalmente nas sepulturas anônimas
dos cemitérios. O filme de Konchalovsky é admirável na recriação dessa
cultura de violência e mendacidade que levava um regime a matar o seu
povo.
Mas
o interesse maior está em Lyuda: uma crente que vira descrente, sem
renegar ao ideal. Pelo contrário: o problema da União Soviética, segundo
Lyuda, é já não ter Stálin ao leme. É uma conclusão duplamente irônica
—e trágica. Primeiro, porque foi Khrushchev quem, em célebre discurso de
1956, denunciou os crimes de Stálin.
Mas
sobretudo porque Lyuda, na sua fantasia reacionária, encarna o que
existe de inesgotável na alma do crente: uma infinita capacidade para o
autoengano, desde que a retórica do ideal nunca seja contaminada pela
evidência da realidade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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