É inacreditável que um projeto de lei discutido por muitos anos, de forma responsável e técnica com a sociedade, por profissionais, entidades, técnicos, deputados e senadores e, posteriormente, aprovado de forma inquestionável seja alvo desse veto com argumentos simplórios. Artigo do oncologista André Deeke Sasse para a Gazeta do Povo:
O
presidente Jair Bolsonaro vetou recentemente projeto de lei que
facilitava o acesso a medicamentos orais contra o câncer. O Projeto de
Lei 6.330/2019 foi amplamente discutido e tinha sido aprovado com
maioria esmagadora de votos de deputados e senadores no início de julho.
Tínhamos comemorado como vitória de pacientes e médicos comprometidos
com o melhor cuidado.
O
texto em discussão alteraria a Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/1998)
e tornaria obrigatória a cobertura para os antineoplásicos de uso oral –
como já é obrigatória a cobertura para medicamentos injetáveis. A
proposta dispensaria a exigência atual de que esses medicamentos sejam
individualmente avaliados pela ANS, com a produção de um dossiê para
cada indicação, num processo lento, burocrático, pouco transparente e
sem critérios econômicos definidos.
Os
argumentos usados para o veto foram de que a nova lei contrariaria o
interesse público por deixar de levar em conta aspectos como
previsibilidade, transparência e segurança jurídica aos atores do
mercado e toda a sociedade civil. A resistência ao projeto de lei vinha
de pessoas ligadas às operadoras de planos de saúde, que alegavam que a
proposta teria como consequência o “inevitável repasse” de custos
adicionais aos consumidores. O lobby feito por pessoas e entidades
ligadas às grandes operadoras funcionou. Posteriormente, o presidente
ainda justificou que foi obrigado a vetar o projeto de lei porque o
autor do projeto de lei, o senador Antônio Reguffe, “não teria
apresentado fonte de custeio” e, caso o sancionasse, alegou que
“incorreria em crime de responsabilidade”.
É
inacreditável que um projeto de lei discutido por muitos anos, de forma
responsável e técnica com a sociedade, por profissionais, entidades,
técnicos, deputados e senadores e, posteriormente, aprovado de forma
inquestionável seja alvo desse veto com argumentos simplórios.
A
obrigatoriedade da avaliação periódica de cada indicação de cada novo
medicamento oral para a ANS cria uma insegurança jurídica tremenda. E
uma insegurança aos pacientes e familiares pior ainda. Por lei, a ANS
define uma lista de consultas, exames e tratamentos, denominada Rol de
Procedimentos e Eventos em Saúde, que os planos de saúde são obrigados a
oferecer. Uma das obrigatoriedades, por exemplo, é a quimioterapia
sistêmica. Essa lista é revista a cada dois anos. Por exemplo, se um
novo equipamento de exames de imagem é lançado no mercado, a ANS tem
dois anos para avaliar se os planos de saúde deverão ou não cobrir os
exames, após consulta à sociedade médica, aos pacientes e aos próprios
planos de saúde. Essa metodologia é adequada, e funciona bem para
inovações tecnológicas disruptivas, como por exemplo cirurgias
robóticas, novas técnicas de radioterapia, ou terapias focais ablativas
por radiofrequência.
Ao
igualar a obrigatoriedade de cobertura de medicamentos contra o câncer
independentemente da forma de administração (injetável ou por
comprimidos), o ganho em transparência e segurança jurídica seria
evidente. Um paciente com câncer avançado, que tem tratamento disponível
no mercado definido como eficaz e seguro pela agência responsável por
isso (a Anvisa) e que tem por lei garantia de cobertura pelo seu seguro
de saúde, deveria ter acesso rápido a essa terapia. A definição de
cobertura não pode ficar na dependência da via de administração do
medicamento.
Os
custos em oncologia têm aumentado significativamente, em grande parte
devido ao advento da imunoterapia (que é injetável, e de cobertura
obrigatória após aprovação pela Anvisa, por sinal). Novas terapias orais
também têm custo relativamente alto, e não são medicamentos disponíveis
para compra em farmácias convencionais. Assim, do ponto de vista
prático, um medicamento contra o câncer sem a inclusão pela ANS no seu
rol acaba não podendo ser utilizado hoje – a não ser que o paciente
tenha condições financeiras de bancar ou que o plano de saúde faça uma
cobertura “extra-rol”, espontaneamente ou forçado judicialmente. Por
outro lado, o impacto orçamentário de todos os medicamentos orais
antineoplásicos para os planos de saúde é incrivelmente menor que o dos
medicamentos endovenosos novos e atuais.
Risível
e ignorante é o argumento presidencial de que o senador proponente não
teria apresentado fonte de custeio. Como se houvesse verbas públicas
envolvidas. Dá a impressão de que o presidente nem leu o projeto de lei.
O custeio viria dos próprios planos de saúde, entidades privadas e
bancadas pelos próprios usuários, que em 2020, aliás, tiveram diminuição
global de custos devido à redução no uso de serviços médicos gerais,
como cirurgia e exames, em razão da pandemia.
Ainda
há tempo para derrubar o veto presidencial. A sociedade, representada
pelos congressistas, precisa demonstrar inteligência e discernimento
para deixar de lado interesses e lobbies de grandes operadoras, e buscar
o interesse pelo melhor cuidado aos pacientes com câncer, que não podem
esperar. Porque a doença não espera.
André
Deeke Sasse é oncologista, fundador e CEO do Grupo SOnHe – Oncologia e
Hematologia, professor de pós-graduação na FCM-Unicamp, coordenador do
Departamento de Cancerologia da Sociedade de Medicina e Cirurgia de
Campinas (SMCC), membro titular da Sociedade Brasileira de Oncologia
Clínica (SBOC), da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO), da
Sociedade Europeia de Oncologia (ESMO) e do Grupo Cooperativo
Latino-Americano de Pesquisa (Lacog).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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