Por muito tempo, considerei a fotografia acima como um monumento ao nosso atraso. Uma peça do museu de tragédias latino-americanas. Mas estava enganado. É um instantâneo do presente. Luciano Coutinho para a Gazeta do Povo:
Para
a maioria dos brasileiros, a América Latina é um lugar tão distante
quanto a Indonésia, no lado oposto do planeta. A Nicarágua é um desses
países da nossa região que quase ninguém presta atenção. Na realidade
nem liga. Nesta semana, o ditador Daniel Ortega, que está no poder desde
2007, resolveu fazer um ajuste fino no processo eleitoral marcado para
novembro. Ele mandou para cadeia uma série de pré-candidatos que
planejavam desafiá-lo em uma eleição, que convenhamos, ninguém razoável
acredita na legitimidade. Mesmo assim, Ortega entrou em modo de combate
e, além de prender opositores, também encarcerou seus amigos. Gente que
lutou com ele nos tempos de guerrilha e que, passadas mais de quatro
décadas de colaboração, resolveu criticar o ditador.
Para
quem não faz ideia de quem é Ortega, o sujeito aparece na fotografia
que ilustra esta coluna entre os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da
Silva e Dilma Rousseff, ambos do PT. Atrás dele está Guilherme Boulos, a
estrela do PSOL e da resistência acampada nas trincheiras do Leblon e
dos Jardins. A mesma imagem reúne o que há de mais despótico,
autoritário e sombrio na esquerda latino-americana. Na linha de frente
estão ainda o então presidente de Cuba Raúl Castro – atualmente
aposentado –, o venezuelano Nicolás Maduro e o cocaleiro Evo Morales,
que presidiu a Bolívia entre 2006 e 2019. O carequinha ao lado de Lula é
Vagner Freitas, presidente da CUT. Todos foram a Cuba para assistir o
sepultamento de Fidel Castro, em dezembro de 2016.
Poucos
meses depois deste registro, a tragédia venezuelana, aquela que é mais
familiar para os brasileiros, ganharia contornos ainda mais dramáticos.
Maduro fez uso da violência desmedida para matar 163 pessoas em ações de
repressão aos venezuelanos que foram às ruas, naquele ano de 2017,
pedindo mais de que o direito a eleições justas e limpas. Eles queriam
coisas absolutamente básicas, entre as quais comida. Mas, na campanha
presidencial de 2018, Boulos não se avexou em dizer que a Venezuela é
uma democracia.
Em
2018, seria a vez de Ortega mostrar que sempre pode piorar. Ele ordenou
uma repressão aos protestos contra o seu governo que resultou em um
saldo de 328 mortos, em um intervalo de apenas três meses de distúrbios.
As cifras falam por si, mas apenas para fins de comparação, em 21 anos
de governos militares no Brasil foram oficialmente reconhecidos 434
mortes e desaparecimentos. Uma conta que inclui os dois lados da
contenda.
No
Brasil se vulgarizou a comparação de Jair Bolsonaro com Hugo Chávez.
Todos os dias surge um ingrediente novo para dizer que há semelhanças
entre ambos. Um esforço contínuo para tentar evocar a imagem de um
ditador notório como exemplo do que seria ou pode vir a ser o
brasileiro. A comparação ficou ainda mais atraente quando surgiu uma
entrevista de 1999 na qual Bolsonaro, movido pela ignorância endêmica em
assuntos latino-americanos, saudou a ascensão de Chávez ao poder, pelo
simples fato de o venezuelano ser um militar.
Posso
estar enganado, mas não me lembro de ter visto, lido ou escutado alguém
que aparece nesta foto chamando o governo atual de bolsochavista. E
suspeito por quê. Eles não o fazem porque para eles chavismo não é
ofensa. Tampouco castrismo ou “orteguismo”, caso o termo existisse.
A confraternização com essas ditaduras não causa constrangimento. Aliás, é movida pela admiração.
Conjecturando,
apenas conjecturando, não deveria, então, soar ofensivo usar termos
como bouloschavista, lulorteguismo, boulorteguista ou lulochavismo. Não
faltariam combinações possíveis para definir as afinidades.
Mas
é claro que seria uma grande forçação de barra. A mesma que é recorrer à
saída fácil de ver Hugo Chávez espelhado nas ações do governo
brasileiro sem perguntar para quem de fato viveu a destruição de um país
inteiro bem ao lado do Brasil o que é o chavismo para valer.
Nesta
semana, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou uma
resolução condenando os atos recentes de Ortega. Os únicos votos
contrários foram os da própria Nicarágua, da Bolívia e San Vicente e
Granadinas. México e Argentina se abstiveram. Uma forma menos feia de
dizer a Ortega. “Tamo junto!”. A Venezuela só não votou pela ditadura,
porque na OEA quem tem poder de voto é o governo paralelo de Juan
Guaidó. Se Maduro apitasse por lá, Ortega teria mais um aliado para seus
crimes.
Por
muito tempo, considerei a fotografia acima como um monumento ao nosso
atraso. Uma peça do museu de tragédias latino-americanas. Mas estava
enganado. É um instantâneo do presente. Lá no fundo, o grandão de
cabelos brancos, está Miguel Díaz-Canel, que substituiu Raúl Castro na
presidência. Na frente dele está David Choquehuanca, atual
vice-presidente da Bolívia, a mesma que não vê problema algum no que
Ortega faz na Nicarágua.
Mais
do que o passado e o presente, esta pode ser uma imagem do futuro. Esta
é a América Latina. Muitos brasileiros se esquecem, mas também fazem
parte dela.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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