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Diversidade religiosa faz bem a um tribunal, mas Bolsonaro quer mesmo um vendilhão da Constituição – daí vem a força de André Mendonça para chegar ao Supremo. Rafael Mafei via revista Piaui:
No
começo da década de 1970, o ministro Aliomar Baleeiro, então na
presidência do Supremo Tribunal Federal, mandou retirar da parede o
crucifixo que adornava o plenário do tribunal. Baleeiro crescera como
homem público no conservadorismo da União Democrática Nacional (UDN),
apoiou o golpe que derrubou João Goulart e chegou ao tribunal por meio
de uma intervenção contra o Judiciário promovida por Castello Branco,
através do Ato Institucional 2 (1965). Com tudo isso, o jurista baiano
dizia-se agnóstico e não aceitava que o símbolo de uma crença religiosa
específica pairasse sobre as cabeças de juízes responsáveis por conduzir
julgamentos seculares. Apenas em 1978, três anos após a aposentadoria
de Baleeiro, uma imagem do Cristo voltou ao recinto.
Esculpida por Alfredo Ceschiatti, a peça ainda hoje figura no principal
espaço de julgamentos do Supremo, na mesma parede onde está afixado o
brasão da República – que fica abaixo do crucifixo e é menor do que ele.
Com
a iminente aposentadoria do ministro Marco Aurélio, que completará 75
anos em julho, a relação entre religião e STF voltará a ganhar primazia,
agora por outro motivo: a promessa, publicamente feita por Jair
Bolsonaro desde o primeiro ano de seu governo,
de nomear um ministro “terrivelmente evangélico” para o tribunal. Ao
indicar o ministro Nunes Marques para a vaga deixada por Celso de Mello,
Bolsonaro rolou essa dívida assumida com parlamentares da Bancada da
Bíblia e líderes de algumas igrejas que desfrutam de acesso privilegiado
a ele. Todos contam que a fatura finalmente será paga desta vez.
Há
uma crítica fácil ao plano de indicar um jurista de fé evangélica ao
STF: a Constituição elenca os requisitos para que alguém se torne
ministro do tribunal, e nenhum deles passa pelas convicções religiosas
do indicado. O artigo 101 da Constituição pede apenas que a escolha
recaia sobre cidadão que tenha entre 35 e 65 anos de idade, e que ostente “notável saber jurídico e reputação ilibada”.
Foi nesse sentido a reação de ministros do Supremo à promessa do
terrivelmente evangélico. À época, aqueles que se manifestaram sobre a
fala de Bolsonaro pontuaram que a religião é irrelevante para o desempenho de suas funções. Nesta semana, o próprio ministro Marco Aurélio ecoou esse pensamento: “requisitos a serem observados são os requisitos que estão na Constituição Federal. […] Nós não compomos uma corte religiosa.”
Essa
crítica fácil ignora que os critérios constitucionais de validade da
indicação, cujo controle é – ou deveria ser – feito por sabatina no
Senado Federal, não esgotam o debate sobre a legitimidade da composição
de um tribunal como o STF. Até certo ponto, o pleito por um ministro
evangélico pode ser contemplado pelas mesmas lentes do reclamo pela
presença de mulheres e negros na corte: todos são categorias
historicamente discriminadas e buscam se fazer representar em instâncias
de poder que decidem a sorte de seus direitos, e o Judiciário não foge a
essa regra. Ao mesmo tempo, a promessa de uma indicação “terrivelmente
evangélica” não deve ignorar aquilo que Bolsonaro realmente aspira para o
Supremo Tribunal Federal, uma instituição que tem sido, nos limites de
suas possibilidades, um tanto bem-sucedida em contrapor-se a alguns dos
grandes desatinos do governo federal – e que tem recebido, em resposta,
muitos ataques do presidente da República e de seus apoiadores.
O
STF, como qualquer tribunal constitucional no mundo, decide temas que
se apresentam como disputas sobre direitos, mas que embutem evidentes
conflitos políticos. Algumas delas envolverão direitos de minorias de
gênero, como ocorreu no caso da possibilidade a aborto de fetos
anencefálicos. Outras, os direitos de minorias raciais, como no debate
sobre a fronteira entre liberdade de expressão e racismo. Várias causas
tipicamente constitucionais opõem grupos com interesses opostos bem
delimitados: muitas disputas tributárias e financeiras antagonizam
estados de diferentes regiões do Brasil; contendas sobre nulidades
processuais costumam opor as ideologias de advogados, membros do
Ministério Público e delegados de polícia.
Em
qualquer desses casos, é compreensível que os titulares ou partes
interessadas na disputa não queiram ver suas causas decididas em um
tribunal composto apenas “pelos outros”, e que prefiram uma corte que
traga também a voz dos “seus”. Embora o Legislativo seja a instituição
principalmente encarregada de garantir representatividade política, um
painel de homens decidindo direitos das mulheres, ou de brancos
decidindo direitos de negros, ou de paulistas decidindo conflitos
federativos entre unidades da Federação, não apenas ilustra
desigualdades nas carreiras jurídicas de elite, como também afeta
negativamente a imagem pública da instituição. Um tribunal não precisa
espelhar fielmente a demografia de seu país, mas é recomendável que ele
não seja “o exato oposto da diversidade da população”, como escreveram Thomaz Pereira e Diego Werneck Arguelhes.
O
pleito da representatividade no Poder Judiciário é ainda mais esperado
quanto mais claros são os indícios de que, ao menos em alguns casos, a
ideologia dos ministros pode ter papel decisivo na decisão dos direitos
em disputa. Como não projetar essa dúvida sobre o STF, um tribunal em
que tantos ministros não se furtam a emitir opiniões públicas sobre as
miudezas políticas de cada semana? Uma corte cuja jurisprudência sobre
temas politicamente sensíveis sacode ao sabor dos ventos, como vemos nos
julgamentos sobre a Lava Jato, chama para si essa desconfiança.
Alguns
dos conflitos políticos sobre os quais tribunais como o STF têm de
deliberar possuem fundo religioso. Esta é a principal razão pela qual
pleitos de representatividade religiosa na composição de tribunais
constitucionais parecem justificados. Em casos assim, o Supremo é
instado a traçar os contornos finos das liberdades de crença, de
consciência e religiosa, protegidas pelo inciso VI do artigo 5º da
Constituição de 1988. O STF já decidiu
que a realização do Enem aos sábados não viola direitos fundamentais de
estudantes judeus, que têm o dever religioso de respeitar o shabat (à
época, não havia nenhum ministro judeu no tribunal). Em 2018, o tribunal permitiu o ensino religioso confessional em escolas públicas. Ano passado, dois julgamentos
fixaram os deveres da administração pública de compatibilizar provas e
períodos de trabalho às obrigações religiosas de concurseiros e
servidores sabatistas. Se descermos às instâncias inferiores, o cardápio de casos é ainda mais amplo:
do “Deus seja louvado” nas notas de real até os feriados sagrados,
passando pelo uso de recursos públicos no apoio a marchas organizadas
por igrejas, a quantidade de temas de fundo religioso levados ao
Judiciário e sobre os quais o STF pode vir a se manifestar é
significativa e tem importância constitucional.
Nos
Estados Unidos, um país fundado por protestantes que fugiam de
perseguições religiosas na Europa, a demografia religiosa da Suprema
Corte diversificou-se na esteira da ascensão de minorias políticas.
George W. Bush indicou ao tribunal Samuel Alito, filho de imigrantes
italianos; Barack Obama indicou Sonia Sotomayor, mulher nova-iorquina de
família portorriquenha; Donald Trump gastou sua primeira indicação com o
descendente de irlandeses Brett Kavanaugh. Todos são católicos (o
catolicismo é, há algum tempo, a religião predominante entre juízes da
corte). Magistrados judeus têm assento frequente no tribunal desde o
começo do século XX, uma tradição iniciada com Louis Brandeis, em 1916.
Dos nove assentos hoje disponíveis na Suprema Corte americana, dois são
ocupados por magistrados judeus, sendo uma mulher (Elena Kagan). A
lendária Ruth Bader Ginsburg era judia. É corrente a visão de que há ao
menos um assento reservado a um judeu no tribunal, o chamado “jewish seat”.
A
indicação de um magistrado de cúpula por agentes políticos sempre
envolve manter no ar diversos malabares, alguns provindos das
reivindicações de grupos sociais, organizados ou não em torno de
denominações religiosas. Parte desse embate se resolve pela medição de
forças políticas momentâneas: os grupos cujas lideranças têm mais força
para emplacar seu pleito no instante da indicação tendem a levar
vantagem, a menos que o presidente da República se julgue forte o
suficiente para bancar um nome de sua preferência pessoal e enfrentar os
descontentes. Dias Toffoli não era o preferido de quase ninguém, mas
foi ungido por Lula em um momento de excepcional popularidade do
ex-presidente, no final de seu segundo mandato.
A
despeito dessa premência da realpolitik, é possível pensar em
justificativas que podem amparar diferentes pleitos em busca de
representatividade no tribunal, inclusive por grupos religiosos. Uma
defesa possível seria sustentar que litígios de interesse de grupos de
pressão evangélicos estão entre nossas maiores urgências
constitucionais, e que a presença de um ministro evangélico melhorará a
qualidade do julgamento dessas matérias – porque, digamos, a falta desse
ministro impediria que o tribunal apreendesse a questão em disputa em
toda sua complexidade. Uma tal defesa, em suma, apoiaria a indicação
evangélica argumentando que liberdades religiosas não têm sido
protegidas a contento por um Supremo insensível às agressões que
minorias religiosas sofrem, do mesmo modo que painéis de julgadores
homens, que via de regra não sofrem violência de gênero no ambiente de
trabalho, são menos capazes de identificar violações a direitos de
mulheres em ações sobre assédio sexual. ¹
Contudo,
esse argumento tem dois problemas. O primeiro é que a crítica parece
fora de lugar quando dirigida ao STF, um tribunal cuja jurisprudência
recente tem se mostrado favorável à proteção de minorias, inclusive
religiosas. Antes mesmo da chegada de seu primeiro ministro judeu², Luiz
Fux, o tribunal decidiu que o antissemitismo é modalidade de racismo, sendo por isso crime inafiançável e imprescritível. Em julgamento mais recente,
o tribunal aceitou que o proselitismo religioso possa valer-se de
linguagem “intolerante, pedante e prepotente”, desde que não sinalize
“violência, dominação, exploração, escravização” ou “eliminação” dos
adeptos de outra fé. Nas decisões que equipararam a homotransfobia ao
crime de racismo, diversos votos explicitamente ressalvaram a proteção
constitucional à liberdade de falar contra uniões homoafetivas por
convicções religiosas, para evitar que pregações religiosas pudessem
configurar crimes (o voto condutor do então decano Celso de Mello na ADO 26 gastou muita tinta nesse argumento). Na véspera da Páscoa, o ministro Nunes Marques liberou
monocraticamente cultos presenciais no auge da pandemia de Covid-19,
pleito ardorosamente defendido por alguns líderes evangélicos àquela
altura. Onde está a insuficiência da proteção à liberdade religiosa
nesses casos?
Mas
o maior problema é que a melhor versão desse argumento soaria cínica se
encampada por Jair Bolsonaro e pelos defensores da indicação
terrivelmente evangélica. Essa versão sustenta que um corpo colegiado
para a tomada de decisões, seja ele um grupo de juízes ou o quadro
diretivo de uma empresa, se beneficia da multiplicidade de pontos de
vista que uma composição mais plural tende a produzir. Em um tribunal,
isso vale não apenas para as causas de interesse direto de grupos
historicamente discriminados, mas para toda e qualquer ação. Essa versão
ótima do argumento parte do pressuposto de que uma instituição composta
de membros não eleitos, mas que exerce tanto poder, precisa de algum
modo espelhar a sociedade sobre a qual ela pretende ter autoridade. Em
suma, trata-se de um argumento sobre os benefícios da diversidade.
Porém, essa é uma ideia à qual o bolsonarismo, como qualquer movimento
populista, tem sabida repulsa – repulsa compartilhada por grupos de
pressão que agora fingem acreditar na representatividade de minorias no
STF, o mesmo tribunal onde travam batalhas pela intolerância.
Quais julgamentos do STF enfezam os apoiadores de um ministro terrivelmente evangélico? Por quais demandas esses grupos se mobilizam no tribunal? Conhecê-las dá pistas quanto à razão pela qual o Supremo tornou-se a maior, embora não a única, obsessão desses grupos.
Um
primeiro grupo de casos diz respeito a temas relevantes da liberdade
religiosa, embora não exclusivamente pertinentes às denominações
evangélicas. A possibilidade de abertura de templos durante a pandemia
afeta todas as religiões cujos cultos são celebrados em prédios de
especial valor para a fé, o que também vale para as igrejas dos
católicos, as sinagogas dos judeus, as mesquitas dos muçulmanos e os
centros dos espíritas, entre outros. A obrigatoriedade de
disponibilização de exemplares da Bíblia em bibliotecas e escolas
públicas interessa a todas as religiões pautadas por textos sagrados,
que tampouco se limitam às evangélicas. Mesmo as demandas dos sabatistas
têm sua pluralidade, pois tanto judeus quanto adventistas têm o dever
de guardar os sábados (e muçulmanos, as sextas-feiras). Em todo caso, o
que está em jogo aqui são mesmo temas próprios da liberdade religiosa: a
maneira como o Estado leva em conta, e respeita, a fé dos cidadãos ao
criar obrigações gerais, e o dever de preservação de neutralidade
estatal em face das diversas religiões de seu povo.
Porém,
um segundo grupo de casos nos quais certas entidades de representação
evangélica gastam muita energia no tribunal abrange ações que não têm
nada a ver com a proteção das liberdades religiosas de seus fiéis. Elas
se voltam às pautas de costumes, como os direitos LGBT+, o direito de
aborto de fetos anencefálicos e, principalmente, as políticas de
educação antidiscriminatória nas escolas, obsessão compartilhada pela
ala ideológica do bolsonarismo. Seu objetivo é claro: mudar a orientação
do Supremo a fim de consagrar uma jurisprudência da intolerância, ainda
que isso vá de encontro à melhor interpretação dos direitos em jogo.
Neste
segundo grupo de casos, a proteção das liberdades individuais, das
quais a liberdade religiosa é uma, está em oposição às demandas desses
grupos de pressão: aqui eles brigam não pelo direito de viver de acordo
com a sua fé, mas pela ambição de impor a outras pessoas que elas vivam
as suas vidas obedecendo dogmas comportamentais defendidos por alguns
líderes evangélicos. Querem que o STF lhes garanta o direito de viver em
um mundo livre de casamentos homoafetivos, embora sua liberdade de
viver um casamento heterossexual não esteja ameaçada; onde todas as
mulheres sejam obrigadas a levar a gravidez de um feto anencéfalo até o
fim, ainda que essa liberdade continue a existir para aquelas que assim
desejarem; onde crianças não possam aprender na escola valores
diferentes daqueles professados por suas famílias, algo impossível de se
garantir em uma sociedade plural, com famílias diversas.
Nenhuma
dessas ambições é compatível com a Constituição. Por essa razão, a
chave para se entender o pleito pelo ministro “terrivelmente evangélico”
está menos no adjetivo e mais do advérbio: a ênfase está no
terrivelmente. Esse é o termo que indica a qualidade que Jair Bolsonaro
espera de seu próximo indicado: a disposição, por convicções de fé,
radicalismo ideológico ou qualquer outro pretexto, de passar por cima da
Constituição para entregar o que dele se espera, invocando trecho
literal da Bíblia ou qualquer outra fonte de ocasião. Bolsonaro busca
acima de tudo um jurista terrivelmente terrível. Que essa pessoa também
quite sua dívida com a Bancada da Bíblia e com líderes de algumas
denominações evangélicas é apenas um acréscimo oportuno, uma
coincidência política momentânea.
Esta
chave de leitura é útil para entendermos por que, entre os muitos
juristas cristãos à disposição, Bolsonaro parece ter seus olhos voltados
justamente aos mais terríveis: aqueles que se esforçam para demonstrar
publicamente seu descompromisso com a Constituição.
O
dever de um presidente da República, ao indicar um nome ao Supremo
Tribunal Federal, é sempre escolher o melhor nome disponível dentro de
seu leque de possibilidades políticas. Fosse seu objetivo apenas indicar
uma pessoa de reconhecida fé evangélica para o tribunal, concedendo o
valor intrínseco da pluralidade e sua importância simbólica e funcional
em altas instâncias de poder, haveria nomes dignos à disposição de
Bolsonaro. Apenas um exemplo, entre vários possíveis: Ana Paula de
Barcellos, professora titular de direito constitucional da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pastora da Assembleia de Deus,
é uma jurista de primeira grandeza. Seu nome seria cogitável para o STF
em qualquer circunstância, independentemente da promessa de indicação
de um nome evangélico. De quebra, ainda aumentaria a presença de
mulheres na corte. Significa muito que o entorno do presidente
aparentemente sequer a considere.
Por
outro lado, o presbiteriano André Mendonça, um advogado público
inexpressivo até ser alçado à fama por sua disposição em se humilhar por
Bolsonaro, lidera as bolsas de apostas. Sua vantagem competitiva reside
não na integridade de sua fé, que não há de ser maior que a de qualquer
outro cristão sincero, mas na disposição que ele demonstra em
sacrificar a Constituição para adular o chefe. Sua sustentação oral
cheia de referências à Bíblia no julgamento sobre liberação dos templos
foi uma eloquente demonstração de que ele está disposto a
instrumentalizar até mesmo sua fé para servir aos interesses políticos
momentâneos do governo. É essa tibieza que o torna um atrativo valioso
para um presidente que trabalha para tornar disfuncionais e inoperantes
quaisquer instituições que possam exercer controle sobre o Executivo,
inclusive o Supremo Tribunal Federal.
Quem
é esperto, como Augusto Aras, que não é evangélico mas é terrível,
percebeu que é isso que está verdadeiramente em jogo. É por isso que
Aras e Mendonça embarcaram em uma constrangedora competição para
demonstrar publicamente quem está mais disposto a usar os poderes de
seus cargos para lamber com maior apetite a sola do Rider de Bolsonaro. A
disputa, que os despe de ilibada reputação, não tem nada a ver com a
sinceridade do conservadorismo cristão que ambos propagandeiam, e sim
com sua disposição em ostentar falta de compromisso com instituições
fundamentais de Estado (a Procuradoria-Geral da República, a
Advocacia-Geral da União, o Ministério da Justiça) em benefício dos
desígnios políticos imediatos do presidente. É essa falta de
integridade, revelada pela disposição em se apequenar perante colegas de
instituição e o restante da comunidade jurídica, que se mostra atraente
a Bolsonaro: ele sabe o valor que isso pode ter em uma corte poderosa,
individualista e desunida.
O
desfecho do mistério quanto ao próximo nome indicado ao STF revelará
muito sobre a correlação de forças no presente entre ao menos quatro
polos. O primeiro, o próprio Bolsonaro, juntamente com seu entorno
familiar-miliciano; o segundo, a fração de evangélicos que faz política
aproximando-se dele; o terceiro, o Senado Federal e as forças políticas
que nele operam, que precisarão aprovar o nome indicado; e o quarto, o
próprio STF, que não deixa de se fazer ouvir, ventilando nomes de sua
preferência. Embora a prerrogativa de indicar o próximo ministro seja
exclusiva do presidente da República, esse poder envolve uma escolha
sobre quem é possível atender (ou frustrar) nessa complicada trama.
Líderes
religiosos que se aproximaram de Bolsonaro e já dão a indicação como
certa precisam se lembrar que Sergio Moro, um ex-aliado politicamente
muito forte e com sabidas aspirações ao STF, ficou pelo caminho quando a
família Bolsonaro passou a ter dúvidas sobre seu compromisso com a
impunidade dos aliados e dos filhos. Não por acaso, Flávio Bolsonaro é
ao mesmo tempo o mais enrolado na Justiça e o mais ouvido conselheiro do
presidente nas indicações jurídicas. Especula-se que Flávio prefira o adventista Humberto Martins, presidente do STJ, que faz o que está a seu alcance: ano passado, instaurou, de ofício, procedimento de apuração disciplinar contra Flávio Itabaiana,
então juiz do caso das “rachadinhas” no Rio de Janeiro. Um indicado
terrivelmente evangélico precisa fazer com que Bolsonaro acredite que
ele, alçado ao Supremo, fará o possível para poupar a família do
presidente, o próprio incluso, de ameaças de punição futura quando o
poder lhes faltar.
A
mesma promessa de um futuro sem contas a prestar na Justiça pode ser
atraente para certas lideranças do Senado. Nesse quesito, as diferenças
entre o governo e seus adversários se diluem: Renan Calheiros (MDB-AL),
algoz de Bolsonaro na CPI da Covid-19, derrete-se publicamente em elogios a Augusto Aras,
cuja sonolência tem sido decisiva para que políticos antes temerosos de
serem acordados pela Polícia Federal agora despertem sem sustos. Humberto Martins, apoiado pelo Zero Um, é conterrâneo e amigo de longa data de Renan.
Pelos cargos que ocupou, André Mendonça tem sido mais competente em
demonstrar sua disposição em perseguir adversários do que seu
compromisso de fé com a impunidade a perder de vista. Este é o cânone ao
qual ele precisa demonstrar fidelidade inabalável: se conseguir
fazê-lo, torna-se a melhor escolha de compromisso entre todas as forças
em jogo. Ao mesmo tempo, esse mesmo critério faz com que Aras seja
valioso exatamente onde está. Uma recondução à PGR pode estar de bom
tamanho para ele e para Bolsonaro, ao menos por ora.
Resta
saber como o STF pode influenciar no processo. A conflagração interna
do tribunal, resultado da soma de falhas de desenho institucional,
ambição de protagonismo político e alguma dose de falta de espírito
público de alguns de seus membros, talvez seja a melhor cifra para esse
enigma. No recente julgamento sobre abertura de cultos na pandemia, Dias
Toffoli mostrou-se em perfeita comunhão com o novato Nunes Marques:
acompanhou seu voto polêmico com uma singela fala adesista de poucos
segundos, algo incomum nos julgamentos de maior visibilidade.
Toffoli,
o ministro que mais parece ter se esforçado para construir uma relação
pessoal com Bolsonaro, pode ver na chegada dos novos ministros uma
chance para sair da irrelevância que sempre o marcou no tribunal. Ele,
que sabe não ter predicados técnicos que lhe permitam se destacar entre
seus pares pela qualidade de seus votos, talvez julgue que poderá se
sobressair pelas habilidades associativas – uma espécie de versão
nacional (e piorada) de John Marshall, lendário ex-presidente da Suprema
Corte dos Estados Unidos cuja inteligência política garantiu seu lugar
no panteão da pátria. Diante da desunião dos demais, Toffoli, Nunes
Marques e Terrivelmente Evangélico, se jogarem em sintonia, podem formar
maioria em uma turma de cinco ministros e determinar a posição
vencedora em casos sensíveis no plenário. Constituiriam uma espécie de
Centrão togado e simbolizariam a volta por cima do baixo clero do
notável saber.
Em
1965, quando o AI-2 levou Aliomar Baleeiro e outros quatro juristas ao
STF, a presidência do tribunal era ocupada pelo ministro Ribeiro da
Costa. Semanas antes, os demais ministros haviam votado unanimemente por
acrescentar ao regimento interno do STF a seguinte disposição, inédita
na história da corte: “O
ministro Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa exercerá a Presidência do
Supremo Tribunal Federal até o término de sua judicatura.” Ribeiro
da Costa bateu de frente com Costa e Silva e ameaçou não dar posse aos
ministros interventores. A resiliência do STF nos primeiros anos após o
golpe de 1964 deveu-se muito à sua liderança sob os demais ministros,
que garantiu coesão ao tribunal em horas sombrias.
Um
tribunal rachado em facções, como o STF atual, é muito mais facilmente
cooptável. Basta um ou outro ministro disposto a praticar
colaboracionismo em troca de uma aliança interna que aumente seus
poderes no tribunal e sua ascensão sobre os demais. Cada Supremo tem o
John Marshall que merece, e cada instituição se bolsonariza à sua
maneira.
¹
Christina L. Boyd, Lee Epstein e Andrew D. Martin, “Untangling the
Causal Effects of Sex on Judging”, American Journal of Political
Science, v. 54, n. 2, abr. 2010, pp. 389-411.
² Além de Luiz Fux, o ministro Luís Roberto Barroso é filho de mãe judia. O ministro Barroso já se declarou “antropologicamente judeu”.
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