Outros povos têm como dia nacional datas de batalhas, de conquistas ou da sua própria fundação. Portugal fez da morte de um poeta o seu dia nacional. Está certo que assim seja. (Manuel Alegre celebrou hoje o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas em Olivença, a convite do Presidente da Câmara daquela localidade, tendo proferido o discurso que aqui se transcreve). O blog aproveita a oportunidade para saudar o bravo povo português:
Senhor Alcalde do Ayuntamento de Olivenza,
Ilustres personalidades e convidados,
Oliventinos,
É uma honra juntar-me hoje a vós para convosco partilhar o acto institucional e cultural do 10 de Junho.
Outros
povos têm como dia nacional datas de batalhas, de conquistas ou da sua
própria fundação. Portugal fez da morte de um poeta o seu dia nacional.
Está certo que assim seja. Porque se outros libertaram e fundaram o
país, a Camões se deve a glória suprema de ter feito da língua
portuguesa não só a Pátria Cultural dos portugueses, mas da grande
comunidade lusófona. Não por acaso Fernando Pessoa escreveu: A Minha
Pátria é a Língua Portuguesa.
Foi
na língua portuguesa que os povos das ex-colónias afirmaram as suas
identidades, travaram as suas lutas de libertação e proclamaram as suas
independências. Como disse um poeta angolano, a língua portuguesa é uma
língua de viagem e mestiçagem. Rio de muitos rios. Língua que, tendo
sido de opressão, foi também língua de liberdade e libertação. Língua da
Revolução do 25 de Abril. Mas também das independências do Brasil, de
Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e
Timor Leste. Língua que passa por esse momento único e irrepetível da
escrita de Os Lusíadas e de toda a lírica de Camões, o primeiro poeta
europeu a contactar as culturas de outros povos e outros continentes. Os
episódios do Fogo de Santelmo e da Tromba de Água aprendeu-os ele no
mar. Camões viveu e viajou o seu próprio poema ao mesmo tempo que o
escrevia.
Ao
contrário de outras epopeias, os heróis de Os Lusíadas não são heróis
inventados nem personagens lendárias ou mitológicas; são homens de carne
e osso, descobridores de novos caminhos e novos mundos, pioneiros de
uma revolução cultural e científica que estará na origem do renascimento
europeu. O ver claramente visto, de que fala Camões. Quando AS Naus de
Verde Pinho partiram a desbravar o mar desconhecido, os navegadores
portugueses, como Bartolomeu Dias, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral
ou Fernão de Magalhães foram, de certo modo, Europa antes de a Europa o
ser. O Mundo antigo estava centrado no Mediterrâneo. As navegações
abriram caminho ao Mundo moderno, na primeira globalização da História.
Caiu o saber dogmático, livresco e autoritário. Nasceu uma nova
mentalidade, um novo espírito crítico, um novo saber de experiência
feito. É essa nova visão do Mundo que está nas estrofes de Os Lusíadas.
Mas
além das navegações, da viagem, do amor, da sua própria vida, Camões
não foi indiferente aos problemas políticos e sociais do seu tempo.
Segundo António Sérgio, o seu pensamento, no que se refere à estrutura
do Estado, reflecte a ideia de governo para o povo. Por isso denuncia o
“vício da tirania infame e urgente” e critica quem acha que é justo e
que é direito /guardar-se a lei do rei severamente/ e não acha que é
justo e bom respeito/ que se pague o suor da servil gente”. Versos que
ainda hoje seriam considerados subversivos.
A
lírica de Camões foi um verdadeira revolução literária, uma nova e
incomparável linguagem poética e a refundação da língua, tal como hoje a
falamos e escrevemos. Segundo o poeta Eugénio de Andrade, os Sonetos
continuam a ser o livro mais actual da poesia portuguesa.
Camões
foi ele próprio um soldado entre soldados, um marinheiro entre
marinheiros, um lusíada entre lusíadas. Viveu pobre, foi preso,
desterrado, regressou pobre e assim morreu. Mas deixou-nos a obra a que
Cervantes chamou O Tesouro do Luso. Que é também universal. E deu origem
a esta grande comunidade de afectos, a esta língua que anda por cinco
continentes, língua de diferentes identidades e culturas, em que as
vogais não têm a mesma cor e em que as consoantes, como se sabe, em
Portugal assobiam, em África cantam e no Brasil dançam.
Creio
que nas raízes comuns de Olivença haverá um sotaque inconfundível,
consoantes que também assobiam e vogais que são a música.
Senhor Alcalde; como diz George Steiner cada língua é um acto de liberdade que permite a sobrevivência do homem.
Um
abraço carinhoso aos alunos do Sagrado Coração de Jesus de Olivença,
que leram e gravaram As Naus de Verde Pinho. Que essas naus os
acompanhem sempre. Porque navegar é preciso. Navegar em Liberdade,
contra as ameaças populistas, por uma Europa mais justa, mais social e
mais democrática.
Manuel Alegre de Melo Duarte
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