A frase que resume a filosofia de Ortega y Gasset aparece logo na primeira obra, Meditações do Quixote: "Eu sou eu e minha circunstância – e, se não salvo a ela, não salvo a mim". Antonio Fernando Borges, especial para a Gazeta do Povo:
Na
fortaleza da solidão de cada homem, há sempre uma janela que se abre
para o jardim da infância – e ali vivem ainda as fábulas e histórias por
onde toda vida principia. Para muitos, certamente, a vida começou pela
fábula dos cegos que entram em contato com o elefante. Como é provável
que a maioria a conheça, é prudente optar pelo resumo mais curto:
Eis
que um grupo de cegos se deparam pela primeira vez com o estranho
animal chamado elefante, e para conhecê-lo contam sobretudo com o
sentido do tato. Eis que a mão do primeiro cego pousou sobre a tromba e
ele sentenciou: “É semelhante a uma cobra”. A mão do segundo, ao tocar a
orelha, levou-o a concluir que era um animal flexível e invertebrado –
como se fosse um leque. E assim por diante. O terceiro tocou uma das
patas: “Parece um tronco de árvore”. O quarto cego, que tocou o animal
na barriga: “É uma grande parede”. Ao quinto, coube tocar o rabo: “Não
passa de uma corda enrolada”. E eis que o sexto, por fim, teve contato
com a presa de marfim do paquiderme: “É liso e afiado, parecido com uma
lança”.
O
tempo, que traz o fim da infância, só fez reforçar em mim o sentido
principal desta parábola: todo conhecimento parcial é falho, incompleto –
e perigoso. Se querem um retrato fiel, olhem em volta: o mundo é como o
elefante da fábula, e os filósofos, cientistas e intelectuais quase
sempre se comportam como os cegos, na triste façanha de fatiar a
realidade em pedaços isolados. E, tomando a parte pelo todo, tratam de
fazer o mundo caber no pequeno oco de suas cabeças.
Mas
há as exceções de praxe, é claro – e entre elas se destaca a obra
extensa e fabulosa do espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), que se
recusou a esquartejar o mundo-paquiderme, preferindo arriscar que existe
apenas um objeto digno de estudo: o universo.
O elefante Ortega y Gasset e os cegos de hoje
Diante
de uma obra tão vasta e variada como a de Ortega, a maioria dos
filósofos e historiadores contemporâneos acaba cedendo à tentação da
cegueira ou da visão segmentada. E assim temos um Ortega-orelha: o
“pensador político”. Ou o Ortega-tromba: o “estudioso das artes”. Ou o
Ortega-presa: o “ativista liberal e laico”. Para que prosseguir, nesse
território dos cegos? Melhor é tirar as escamas dos olhos e apostar que
nosso espanhol foi um exemplo raro entre os contemporâneos: em vez de se
encastelar como um “especialista disso ou daquilo”, ergueu e legou ao
mundo um sobrado claro e arejado, com corredores largos e muitas
janelas, todas elas abertas para o mundo real.
Exageros
à parte, é válido colocar Ortega y Gasset na mesma vasta tradição que
remonta aos gregos – em especial, a Aristóteles. Afinal, como o
Estagirita, o filósofo espnhol também recusou as especializações; também
foi professor e conferencista generoso, difundindo oralmente suas
ideias; e, consequência direta, também nisso “imitou” o filósofo grego,
pois grande parte de sua obra só chegou até nós graças às transcrições
dos alunos e discípulos – com todos os riscos de distorções e equívocos
que isso acarreta.
Antes
de estrear em livro em 1914, com o magnífico Meditações do Quixote,
Ortega já tinha uma presença atuante na imprensa, seguindo os passos da
tradição doméstica: a família de sua mãe era dona do jornal madrilenho
El Imparcial, onde seu pai José Ortega y Munilla era o editor. A
experiência no jornal da família pode não ter durado muito, mas o
jornalismo nunca mais saiu dele. Que o digam vários de seus livros,
publicados originalmente em capítulos na imprensa – mas que o diga acima
de tudo seu estilo ágil, claro e objetivo. Não por acaso, é de Ortega
uma das melhores definições de clareza estilística: nada menos do que
uma “cortesia para com o leitor”.
Este
é um retrato inevitavelmente incompleto do claro e gentil
filósofo-escritor Ortega y Gasset. Até porque uma biografia ou uma
análise de corpo inteiro da obra são tarefas que renderiam grossos
volumes e exigiam a dedicação de toda uma vida. Sem falar que nada seria
mais irônico e infiel do que alguém pretender se tornar um...
“especialista” em Ortega!
Mas
é possível fugir ao “especialismo” dos contemporâneos e ao mesmo tempo
criticar cada um deles. Isso é tudo que posso prometer aqui, neste
pequeno perfil de um grande filósofo.
A clareza como “tranquila posse espiritual”
A
frase que resume a filosofia de Ortega y Gasset aparece logo na
primeira obra, Meditações do Quixote: "Eu sou eu e minha circunstância –
e, se não salvo a ela, não salvo a mim". Partindo do circunstancial –
quer dizer, do contingencial, eventual e fortuito –, Ortega se propõe
chegar aos fundamentos da vida real e concreta (um dos nomes com que ele
se referia ao universo), e a partir daí demonstrar que o Eu é diferente
da realidade à sua volta, sendo ao mesmo tempo inseparável dela.
Mas
Meditações do Quixote é muito mais do que uma frase emblemática. No
livro também estão presentes outros dois pontos medulares do pensamento
de Ortega.
O
primeiro é sua definição de clareza, a já mencionada “cortesia para com
o leitor”. Para Ortega, “clareza significa a tranquila posse
espiritual, o domínio suficiente de nossa consciência sobre as imagens, a
ausência de inquietação diante da ameaça de que o objeto apreendido nos
escape”. Como corolário, temos que todo esforço da cultura é no sentido
de ser uma interpretação da vida – uma “explicação, esclarecimento,
exegese”. E a vida, ressalta Ortega, é o Texto Eterno, a sarça ardente à
beira do caminho. (E também nisso podemos vê-lo como herdeiro do legado
filosófico que vem de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, entre outros
tantos gigantes.)
O
segundo ponto a destacar é que Meditações já sugere e anuncia a
variedade de temas e interesses que viriam a marcar sua obra ampla e
diversificada. Apesar do título (ou melhor, à margem dele), o livro
tenta abarcar “muita coisa ou quase tudo”, desde a questão dos gêneros
literários até a noção de patriotismo, passando por Goethe, Flaubert,
Darwin, a busca e necessidade de sentido, os conceitos de “profundidade e
superfície” e uma gama de assuntos que seria tedioso enumerar – e que
aqui devem funcionar como um convite à leitura integral do livro.
Meditações
do Quixote se anuncia como a primeira de uma série de “reflexões” sobre
as múltiplas facetas desse objeto único de interesse – o Universo. Mas,
inaugurando uma série de guinadas feitas para surpreender seu crescente
público cativo, Ortega preferiu “virar a página” e mudar de assunto –
embora não de foco, nem de objeto. Foi a forma que encontrou para
mostrar que o verdadeiro filósofo, como os poetas autênticos, está
sempre “falando de outras coisas”.
Sendo
impossível analisar – ou meramente enumerar – todos os seus livros nos
limites de um artigo, contentemo-nos com mencionar os mais famosos, que
são também exemplarmente representativos da obra toda. Por ordem de
notoriedade, mas não necessariamente cronológica, temos: A Rebelião das
Massas (1930), que apresenta o conceito decisivo de homem-massa,
fundamental para se compreender a História contemporânea; A
Desumanização da Arte e Ideias sobre ao Romance (1925), em que ele
submete a crivo severo as ideias de vanguarda e modernidade estética;
Origem e Epílogo da Filosofia (1947); O Que É Filosofia (a partir de um
curso ministrado em 1928-29 e publicado postumamente, em 1957); O Tema
de Nosso Tempo (1923), Ideias sobre o Teatro (1946), Meditações do Povo
Jovem – mas paremos por aqui, nesta lista “interminável”.
Para
fins didáticos, simplificando mas sem fugir à verdade, cabe ainda citar
o esquema com que o pensamento de Ortega costuma ser apresentado nos
manuais de Filosofia, fatiado em três etapas:
1.Estágio objetivista (1902-1914): Influenciado pelo neo-kantismo alemão e pela fenomenologia de Husserl, Ortega ainda defenderia a primazia das coisas (e ideias) sobre as pessoas (não custa lembrar que é anterior a sua estreia em livro);2.Estágio Perspectivista (1914-1923): Inaugurado com Meditações de Quixote, marcaria também o início das preocupações de Ortega com a situação da Espanha;3.Estágio Raciovitalista (1924-1955): Preferido por “nove entre 10 cegos-especialistas”, marcaria a fase de maturidade de Ortega – com destaque para o sempre lembrado A Rebelião das Massas.
Mais
uma vez: por ser impossível insistir na proposta de traçar um perfil
abrangente deste grande filósofo, cabe mencionar mais um aspecto
diferenciador de sua obra.
Todos
sabem que a chamada consciência histórica é hoje uma parte substancial
da herança cultivada pela civilização judaico-cristã, a ponto de dominar
e estreitar nosso horizonte cultural e espiritual. Como uma espécie de
“Segunda Queda”, o homem contemporâneo se viu expulso da Cosmogonia
antiga, que concebia o mundo a partir de uma ideia de eternidade em que o
Cosmos inteiro se inseria. Entre meados do século XVIII e a aurora do
XIX, a historicidade (até a palavra é horrível!) cresceu e floresceu com
nomes diferentes, mas sempre fiéis a um mesmo paradigma: “Ciência da
História”, “Filosofia da História”, “Progresso”, “Evolução”, etc.… a
lista é tão extensa quanto sombria. Não por acaso, a ideia dominante
sobre a gênese do universo hoje se restringe a investigações sobre a
origem… da matéria! Como se as leis que determinam sua formação não
precisassem preexistir a ela!
Sem
o caixilho imprescindível de uma concepção de Eternidade, a dimensão
temporal passou a ser todo o campo de visão socialmente dominante. No
plano teórico, passaram a ganhar espaço e finalmente a dominar as ideias
de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Augusto Comte, Karl Marx, Charles
Darwin e Émile Durkheim – não necessariamente nesta ordem. Também nisso
temos que reconhecer a originalidade corajosa de Ortega y Gasset: mesmo
não conseguindo fugir às questões urgentes e incontornáveis da tal
historicidade, ele ao menos ousou abordar o problema fora dos parâmetros
então em voga – e que patinavam entre o Evolucionismo e o Hegelianismo,
o Positivismo e o Marxismo. E isso, convenhamos: diante do cenário de
terra arrasada que encontrou, não foi pouca coisa.
“Dize-me quem te segue e eu te direi…”
Todo
filósofo pode (e deve) ser avaliado pela dupla herança de sua obra e de
seus seguidores. Em Ortega y Gasset, o saldo é até promissor: sua obra é
vasta e diversificada (e delaeste artigo é tão somente um retrato
desbotado) e a lista dos herdeiros inclui nomes de peso, com vários
deles ultrapassando o horizonte da língua espanhola. Para citar apenas
alguns: Julián Marías (1914-2005), Xavier Zubiri (1983), Francisco Ayala
(1906-2009), María Zambrano (1883-1942) e Manuel García Morente
(1883-1942).
Num
mundo perfeito, este seria certamente o sonho de todo pensador: ser
lembrado pelo patrimônio moral e intelectual que transmitiu ao mundo.
Mas, mesmo vivendo no melhor dos mundos possíveis, o fato é que a
injustiça e a incompreensão também fazem parte dele – e, no caso de
Ortega y Gasset, contribuíram para distorcer uma herança que atualmente
se vê reduzida a um punhado de discussões estéreis, pretendendo
determinar se ele era um liberal ou um conservador, republicano ou
monarquista, laicista ou livre-pensador, agnóstico ou…?
Se,
entre as múltiplas facetas do elefante-Ortega, quase todos os
cegos-especialistas preferem apostar as fichas no ativista e pensador
político, isso é um sinal que nem mesmo ele conseguiu escapar ao
historicismo que tentou combater – e, menos ainda, ao horizonte que um
famoso militar e estadista corso tratou de estreitar para as gerações
seguintes: a conquista, manutenção e ampliação do poder, e nada mais.
Este foi o legado fatídico de Napoleão Bonaparte: “A política é o
destino concreto de nossa época”. A política, tout court – a arte da
conquista, manutenção e ampliação do poder. Não olhe agora, leitor, mas
nesta simples frase parece estar resumido o triste futuro dos homens.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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