Um pouco de perspectiva histórica ajuda a ver que a transmissão de poder nem sempre foi o ritual elegante que virou símbolo dos Estados Unidos. Vilma Gryzinski:
Com
as paixões políticas em temperatura de fissão nuclear, é fácil esquecer
que os Estados Unidos, como qualquer país, vivem reinventando um
passado idílico.
A posse à qual Donald Trump não irá para não dar o gostinho da vitória a Joe Biden tem precedentes.
Andrew
Jackson, o popular (e algo populista) general que em apenas cinco meses
derrotou os ingleses na guerra de 1812 e depois conquistou a Flórida
aos espanhóis, tinha certeza que o presidente da Câmara, John Clay,
havia roubado a presidência dele no tapetão.
Jackson
tinha tido mais votos diretos do que o adversário, John Quincy Adams
(filho do mais distinto John Adams, o segundo presidente americano), mas
perdeu na votação no Congresso – uma guinada que Trump possivelmente
pensou em emular do lado do vencedor.
Depois
da eleição de 1824, John Clay foi nomeado secretário de Estado, prova
de uma “negociata corrupta”, segundo Jackson e seus partidários. Ou o
famoso toma lá, dá cá.
Andrew
Jackson, pintado como um asno em caricaturas ferinas, se vingou
fundando o Partido Democrático. E ganhando em 1828 uma segunda
candidatura presidencial – uma alternativa que talvez tenha sido
considerada por Trump em algum momento, mas hoje reduzida a pó.
O
pai de Quincy Adams já havia protagonizado uma posse simplesmente
melancólica: muitos dos presentes soluçaram ao ouvir seu discurso. Não
de emoção, mas de tristeza por verem o mitológico George Washington
deixar a presidência (mantendo-se as proporções, houve um chororô
parecido quando Trump ganhou de Hillary Clinton e Barack Obama teve que
engolir o seu sucessor – a expressão azeda da mulher dele, Michelle,
refletiu o clima).
Mais
tenebrosa foi a posse de James Buchanan, em 1857. O presidente eleito e
outros figurões hospedaram-se no National Hotel, o maior de Washington –
algo como o hotel de Trump no antigo prédio dos Correios, que explodiu
de gente na posse de 20 de janeiro de 2017.
Uma
doença misteriosa, atribuída a condições sanitárias duvidosas do hotel,
acometeu 400 pessoas. Morreram 36, entre as quais três congressistas,
confirmando a fama de insalubridade de Washington, com suas temperaturas
extremas, de frio e calor, e alagados propícios à malária.
A praga ficou conhecida como a Doença do National Hotel.
O clima inclemente também foi responsável pela mais breve das presidências, a de William Henry Harrison.
Ele
tomou posse com um discurso de uma hora e 45 minutos, começando por
Roma antiga. Era março de 1841, estava um frio de rachar e Harrison não
usou sobretudo.
Foi para a cama na mesma noite, derrubado, e acabou morrendo de pneumonia.
Harrison tinha feito uma campanha em estilo discutível, com garrafas de cidra rolando para os participantes dos comícios.
A
bebida em excesso também provocou constrangimento na segunda posse do
austero Abraham Lincoln, em 1865. Seu vice, Andrew Johnson, estava
calibrado, supostamente por ter se automedicado contra a febre tifóide
com uns copaços de uísque.
Fez
um discurso tão longo e enrolado – contra as elites – que amigos
chegaram a puxar as abas do seu fraque, tentando interrompê-lo. Não
conseguiu dar posse aos novos senadores, como compete ao
vice-presidente.
Johnson também exagerou no uísque quando Lincoln foi assassinado e ele teve que tomar posse em circunstâncias dramáticas.
Mais
divertida foi festa popular na segunda posse de Andrew Jackson. O povão
entusiasmado invadiu a Casa Branca, num clima menos agressivo do que a
tomada do Capitólio na semana retrasada, mas com figuras comparáveis,
gente que nunca tinha visto os salões do poder.
O
povaréu sujou os tapetes de lama, derrubou comida no chão e quebrou a
louça. Rolaram um saques. Dado o descontrole, Andrew Jackson teve que
sair por uma janela nos fundos.
Talvez as coisas não tenham mudado tanto assim.
No
capítulo das vingancinhas constrangedoras, Herbert Hoover não olhou nos
olhos nem conversou com Franklin Roosevelt quando os dois desfilaram em
carro conversível em 1933.
Membros
do governo Clinton fizeram um papelão, quebraram coisas e vandalizaram
instalações, revoltados com a eleição de George Bush filho, conhecido
pela inicial do meio, W – letra arrancada do teclado de computadores da
Casa Branca.
Perder o poder dói, mas perder o poder e a cabeça é pior ainda. Esta Donald Trump pode assinar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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