Só sentimos ódio por vegetais quando a nossa existência é parecida com um; tratamento psiquiátrico é uma solução. João Pereira Coutinho, via FSP:
1.
É a polêmica do momento na França: Pauline Harmange, 25 anos, fez um
manifesto com título inusitado – “moi les hommes, je les deteste”
(“detesto os homens”). É uma apologia da misandria, e Harmange não poupa
palavras. Homens não são confiáveis; preguiçosos, narcisistas,
potencialmente abusadores, ela se sente melhor longe deles. Aliás, não
só se sente melhor como aconselha mulheres a seguirem o seu exemplo. É
libertador, diz ela, viver uma vida sem estar na órbita do macho.
O
caso não passaria de uma bizarria literária se o conselheiro do
Ministério para a Igualdade de Gênero não tivesse entrado em cena. A
misandria, tal como a misoginia, constitui um crime de ódio, avisou o
senhor Ralph Zurmély. Será que a editora – a minúscula Monstrograph –
estava ciente disso? Se não estava, passou a estar: o livro está
esgotado e só haverá reposição se alguma editora maior estiver disposta a
assumir o risco.
Ah,
hélas! Tenho pena de não ter uma editora na França. Publicaria o livro
de Harmange sem hesitar. Como publicaria panfletos misóginos e
misantropos desde que bem escritos e bem pensados. Por quê? Para
começar, porque qualquer tentativa de censura de Estado me provoca
urticária mental. Não cabe ao governo decidir o que eu posso ler ou ver.
Essa decisão é minha, partindo do pressuposto de que sou um adulto e
não uma criança. As tentativas contemporâneas de limitar o que podemos
ler ou ver, mesmo que travestidas em nome do “bem comum”, participam do
mesmo espírito inquisitorial que animava ditaduras ou teocracias
passadas.
Claro
que a “exortação ao ódio” pode ter consequências nefastas: um livro que
defendesse a matança indiscriminada de grupos ou minorias seria um caso
judicial óbvio. Mas a misandria ou a misoginia não jogam no mesmo
campeonato: por mais desconfortável que seja a expressão de antipatia
profunda por homens ou mulheres, esse desconforto não é razão suficiente
para proibir a sua manifestação pública.
Como
afirmava George Steiner anos atrás, em conversa com o escritor
português António Lobo Antunes, não é fácil escrever grande literatura
tendo o ódio como musa. Mas há exceções: os ensaios de Hazlitt, as
sátiras de Swift, os romances de Céline. Só cabeças primitivas gostariam
de jogar esses livros na grande fogueira da bondade.
Se
Harmange abomina homens, só lhe posso desejar melhor sorte com
mulheres. Embora, nesse quesito, a autora seja contraditória: em
entrevistas, madame Harmange tece elogios ao marido e ao pai, que
considera exceções da regra. Posso estar errado. Mas ter dois homens tão
excepcionais ao seu lado faz de Pauline Harmange uma mulher bastante
mais afortunada do que a maioria das mulheres que conheço. Pior que os
crimes de ódio são os crimes de ingratidão quando falamos de barriga
cheia.
2.
Neste mundo de vitimização permanente, era inevitável que veganos e
nudistas também tivessem o seu momento. Leio na imprensa que, no Reino
Unido, ambos apresentam as suas escolhas de vida como “sistemas
filosóficos”. O que significa que a proteção legal que é concedida a
religiões ou minorias deve também contemplar o veganismo e o nudismo.
Não
sei que diga. Sobre veganos, entendo que não é agradável estar
sossegadamente a comer nozes ou cenouras e ter olhos de escárnio sobre
nós. Mas, por outro lado, também confesso que a minha primeira reação
perante os perseguidores é ter pena deles. O que levará uma pessoa a
cultivar um ódio irracional por nozes e cenouras? Que tipo de vida ela
terá para sentir uma raiva instintiva contra frutos e legumes?
Arrisco
uma hipótese: só sentimos ódio por vegetais quando a nossa existência é
bastante parecida com um vegetal. Tratamento psiquiátrico, e não multa
ou prisão, parece-me uma solução mais equilibrada.
Sobre
os nudistas, o dilema é mais complexo: se aceitamos manifestações
públicas de religiosidade, como recusar aos nudistas a possibilidade de
circularem como vieram ao mundo sem serem importunados por terceiros?
Boa
pergunta. Difícil resposta. Se todos os corpos seguissem as proporções
da estatuária grega, eu seria o primeiro a sair de casa para exibir os
meus argumentos. Mas, conhecendo a diversidade da espécie, e sobretudo
conhecendo o meu reflexo no espelho, desconfio que a sociedade não
aguentaria o impacto psicológico de certas visões. O mais certo era
aumentarem os crimes de ódio – contra nudistas e, já agora, contra
veganos. Parafraseando o doutor Freud, às vezes uma cenoura não é apenas
uma cenoura.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

Nenhum comentário:
Postar um comentário