Para pensadores como o cientista político Adam Przeworski, a democracia só está forte quando o povo elege os candidatos que eles querem: a ideia de alternância no poder lhes é totalmente estranha. Lucia Trigo, via Gazeta do Povo:
Adam
Przeworski é um cientista político internacionalmente respeitado.
Nascido na Polônia e radicado nos Estados Unidos desde 1961, hoje
leciona na Universidade de Nova York. É autor de 13 livros e inúmeros
artigos sobre a relação entre democracia e capitalismo. No recém-lançado
“Crises da democracia”, ele estabelece uma analogia entre a situação
política atual de alguns países e casos históricos de colapsos do regime
democrático, como a ascensão do Nazismo após o fracasso da República de
Weimar na Alemanha e o golpe militar que derrubou Salvador Allende no
Chile, em 1973. O autor escreveu um prefácio especialmente para a edição
brasileira, no qual, basicamente, afirma que o presidente Jair
Bolsonaro representa... uma ameaça à democracia.
A
conclusão única e necessária de um rápido exame do prefácio é: Adam
Przeworski não entendeu nada. Ou, se entendeu, escreve de má-fé.
Przeworski
ficou famoso por cunhar uma definição muito popular de democracia: é um
regime no qual os governantes deixam o poder quando perdem as eleições.
Certo. Ele também já escreveu que, historicamente, a alternância no
poder é um indicador da saúde das democracias. Certo de novo.
Mas,
estranhamente, o cientista político que se arvora em guardião da
democracia parece não aceitar nem respeitar o resultado das eleições de
2018 no Brasil, nem a aprovar a alternância no poder no nosso país.
Parece que, para ele, a democracia brasileira só estaria saudável com a
perpetuação do PT no poder. Pior: em alguns trechos, um leitor
desavisado que não conheça nada sobre o Brasil tem a impressão de que
Bolsonaro chegou à presidência por meio de um golpe de Estado, e não
pela livre escolha da maioria (quase 58 milhões) dos eleitores.
Como
outros livros recentes, “Crises da política” entende a política como
uma disputa entre o bem (a esquerda progressista) e o mal (a direita e
os conservadores). Com uma argumentação baseada em adjetivos, Przeworski
constrói uma narrativa terrorista, que constrange o leitor a endossar
suas conclusões – porque, caso não endosse, estará do lado dos fascistas
e genocidas que odeiam os pobres e querem destruir a democracia. É a
velha narrativa do “nós” contra “eles”, implementada com tanto sucesso
no Brasil em anos recentes.
O
autor se alinha, assim, àquela parcela da população brasileira que
pratica o que chamei em outro artigo de “negacionismo de esquerda”, ou
seja, a incapacidade psicológica de lidar de forma adulta e racional com
o fato de que Bolsonaro é o presidente democraticamente eleito do
Brasil. Ou seja, todo o blábláblá de Przeworski sobre democracia só vale
quando a esquerda sai vitoriosa nas urnas: quando é derrotada, é sinal
de que a democracia está em crise, de que o povo foi enganado, de que
houve um retrocesso fascista etc. É a democracia de um lado só.
Esse
discurso de que somente um grupo – o grupo ao qual pertence o autor,
naturalmente – defende a liberdade e a justiça social, transformando
adversários em monstros a abater, é basicamente reiterado ao longo de
todo o livro. Mas, se Przeworski é o autodenominado zelador dos valores
democráticos, depreende-se que o povo está errado quando elege um
candidato que ele não aprova, caso de Bolsonaro. Porque a vontade do
povo deve se submeter ao comando dos intelectuais de esquerda que se
julgam seus porta-vozes.
O
mais chocante é lembrar que Przeworski nasceu e cresceu em um regime
comunista, de onde escapou aos 21 anos, após concluir a graduação em
Varsóvia: na Polônia daqueles dias (como na China de hoje, aliás, onde o
empresário Ren Zhiqiang acaba de ser condenado a 18 anos de reclusão
por ter chamado o presidente Xi Jinping de “palhaço”), criticar o
governo podia representar a prisão ou coisa pior.
Onde
o jovem Przeworski decidiu viver, quando fugiu dos horrores comunistas?
Nos Estados Unidos, é claro, onde encontrou capitalismo, liberdade e
democracia. Mas o renomado cientista político chega aos 80 anos fiel ao
marxismo e exaltando a esquerda que tanto sofrimento já causou no
planeta – e que, em muitos casos, só usou a democracia como escada para
chegar ao poder. Para Przeworski , é o capitalismo que ameaça a
democracia, não o comunismo. Vai entender...
O
prefácio à edição brasileira só serve para expor a fragilidade, as
contradições e a superficialidade do pensamento do autor. Já no primeiro
parágrafo, Przeworski explicita sua desonestidade intelectual ao
afirmar que “acreditava firmemente na solidez das instituições políticas
brasileiras” (deixou de acreditar quando o partido que ele apoia perdeu
as eleições: deve ter sido mera coincidência). Ele vai além e afirma,
sem qualquer constrangimento:
-
“A rejeição de Aécio Neves ao resultado da eleição de 2014 constituiu
uma grande violação das normas democráticas” (porque só se pode
questionar o resultado das eleições quando candidatos como Trump ou
Bolsonaro são os vencedores);
-
“O impeachment de Dilma Rousseff em 2016 foi uma demonstração de que os
políticos colocam seus pequenos interesses acima da integridade das
instituições” (nenhuma palavra sobre as gigantescas e pacíficas
manifestações populares pedindo a queda da presidente que exaltou a
mandioca, nem sobre a cooptação das elites e da mídia, nem sobre o
bilionário esquema de corrupção em escala industrial montado para um
partido se perpetuar no poder, nem sobre a destruição deliberada da
economia, detalhes insignificantes); e, pasmem:
-
“A remoção juridicamente arquitetada de Lula como candidato na eleição
de 2018 impediu vasto segmento do povo brasileiro de exercer seus
direitos democráticos (porque a lei que impede que um ex-presidiário com
diversas condenações nas costas seja candidato não se aplica a Lula,
claro; a lei só vale quando não prejudica a esquerda).
Tudo isso, repito, só no primeiro parágrafo!
Para
pensadores como Przeworski, a democracia só está forte quando o povo
elege os candidatos que eles querem: a ideia de alternância no poder
lhes é totalmente estranha
É
como se, até a eleição de Bolsonaro, o Brasil vivesse em perfeita
normalidade, com a economia crescendo e a sociedade vivendo em harmonia.
Para Przeworski , o populismo, a divisão da sociedade em “nós e eles” e
a ameaça à democracia começaram no exato momento em que o PT foi
afastado do poder. Para pensadores assim, a democracia só está forte
quando o povo elege os candidatos que eles querem. A ideia de
alternância no poder lhes é totalmente estranha.
Przeworski
prossegue se penitenciando por não ter levado a sério Bolsonaro nem
Trump – basicamente uma confissão de incompetência. Com a arrogância
moralmente superior dos intelectuais de esquerda, o premiado cientista
político foi incapaz de perceber os sinais claros da exaustão das
narrativas e das práticas políticas dos governos de esquerda. Ou seja,
com todo o seu currículo, na hora em que seria necessário reconhecer
sinais de mudança, o cientista político se mostrou medíocre e incapaz.
Ora,
no debate político, não se pode exaltar a vontade popular somente
quando ela coincide com nossas convicções, nem desqualificá-la sempre
que ela nos desagrada: esta é uma noção elementar para qualquer
indivíduo intelectualmente honesto, e ainda mais para um cientista
político influente, que se dispõe a escrever um livro sobre a democracia
contemporânea.
O
prefácio à edição brasileira é tão irritante que contamina o resto da
leitura, mas o exame que Przeworski faz de algumas “democracias de
fachada” – Rússia, Venezuela, Índia, Hungria e Turquia, por exemplo –
não é de todo ruim. Há de fato situações em que governos manobram para
permanecer no poder indefinidamente, mesmo mantendo as aparências das
instituições democráticas e do Estado de direito, enquanto calam a
imprensa independente e asfixiam a oposição. É uma forma de erosão da
democracia que não passa por rupturas bruscas nem golpes militares, mas
que merece atenção.
Mas,
mesmo fazendo alguns diagnósticos interessantes, “Crises da democracia”
fracassa na capacidade de chegar a alguma conclusão relevante.
Przeworski reúne uma série de dados estatísticos aleatórios, que ele
próprio reconhece que não são determinantes de crises, e enfeita esses
dados com platitudes do tipo: “As atuais ameaças à democracia não são
apenas políticas: estão profundamente enraizadas nas condições
econômicas, sociais e culturais de hoje”. Sempre estiveram, não é mesmo?
Przeworski – como toda a esquerda, aliás – continua em estado de
perplexidade, sem conseguir digerir a vitória de Trump, do Brexit e de
Bolsonaro.
PS:
A USP , vejam só, disponibilizou gratuitamente em seu site o PDF do
recém-lançado livro "Crises da democracia", na página da disciplina
“FLP0409 - Grandes Correntes e Tendências Políticas no Mundo
Contemporâneo (2020)”. Ou seja, PIRATEOU o livro. Pensando bem, a USP
está certa: já que a proposta é doutrinar os alunos, a primeira lição a
ser aprendida é o desrespeito à propriedade intelectual, com a
socialização da obra.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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