O presidencialismo de confrontação vem encontrando resistência crescente
na sociedade, observado o economista e ex-ministro da Fazenda Pedro
Malan, em artigo publicado no Estadão:
“The life so short, the craft so long to learn” - Geoffrey Chaucer
“A vida tão curta, o ofício tão longo de aprender”, poderia ser essa a
tradução para nossa língua do belo inglês medieval com que Chaucer
traduziu o conhecido e um tanto insípido original em latim: “Ars longa,
vita brevis”.
Em junho do ano passado escrevi neste espaço texto que tinha por
título O primeiro inverno do governo Bolsonaro. O artigo tratava da
importância de estimular debates políticos “vigorosos e eficazes”
(Rorty) e notava que isso exigiria a superação da excessiva polarização
vigente e um gradual deslocamento para o centro, de forma que pudessem
restar atenuadas as posições extremadas que marcavam o precário debate
nas redes sociais. O texto comentava ainda que esse sonho teria de ser
construído ao longo dos meses e anos seguintes, porque era difícil
imaginar que pudéssemos seguir com o grau de polarização, surpresas e
incertezas que marcaram os primeiros seis meses do governo.
E, no entanto, as incertezas, dubiedades e contradições, em lugar de
arrefecer, só fizeram acentuar-se desde então. A polarização acerba que
aquele texto apontava terá sido a marca dos primeiros 18 meses do
governo Bolsonaro, que serão alcançados ao fim deste mês e correspondem a
40% do tempo de que dispõe até as eleições de outubro de 2022.
Ainda este ano o Brasil elegerá nada menos que 5.570 prefeitos, e
cerca de 57.800 vereadores. Essa disputa costuma dar-se em torno de
agendas locais ou, no máximo, estaduais, à exceção de algumas grandes
capitais. Caso queiramos tentar evitar, em outubro de 2022, uma
reencenação da experiência de 2018, desde este ano de 2020 as coisas
deveriam passar-se de forma diferente. Dois versos do famoso poema de
Yeats The Second Coming (1939) vêm à mente: “The center does not hold/
things fall apart” (o centro não se sustenta, as coisas entram em
colapso).
Há razões para acreditar que “as coisas” estão mudando, e podem
continuar a mudar. O presidencialismo de confrontação permanente – com
adversários que, embora legítimos, são vistos como inimigos a serem
batidos, derrotados nas ruas, nas redes e, se necessário for, pelas
armas – vem encontrando resistência. Resistência por parte dos outros
Poderes, da mídia profissional e, crescentemente, por parte expressiva
da sociedade. Daí a importância das eleições municipais deste ano. Seus
resultados terão forçosamente influência nas eleições de 2022.
Aplicam-se ao Brasil de hoje as palavras com que Barack Obama, em
discurso recente, se referiu a seu país: “Por mais trágicas que as
últimas semanas tenham sido, (...) elas também foram dias de
oportunidades incríveis para que as pessoas acordem para algumas
questões – e (...) para que trabalhemos juntos para enfrentá-las”. Obama
referia-se à pandemia de covid-19 e ao racismo, que chamou “praga e
pecado original da sociedade americana”. Ao final de seu discurso,
realçou a importância do voto; ao tratar da discussão na internet sobre
votar versus protestar, sobre participação política versus desobediência
civil, apontou a necessidade de “ressaltar qual é o problema, fazer as
pessoas que estão no poder desconfortáveis, mas também (de) traduzir
isso em leis”. Lá, como aqui, nos três níveis de governo.
Gradualmente, insisto, a sociedade brasileira vem se expressando
mais. Em poucos meses, com as eleições municipais, haverá ocasião
especialmente relevante para fazê-lo. Será fundamental que a expressão –
de vontade, de opinião – resulte de cuidadosa avaliação: sobre quem os
partidos indicaram, sobre como conduziram suas campanhas, sobre as
eventuais novas faces que terão surgido e se mostrado dispostas a de
fato contribuir para mudar para melhor a vida das pessoas no âmbito de
suas respectivas cidades, sobre quantos, enfim, terão demonstrado real
conhecimento dos desafios a enfrentar – e não se limitado a expressar
platitudes, chavões batidos e promessas fadadas ao descumprimento.
Volto à epígrafe deste artigo. A parte inicial da expressão medieval
de Chaucer pouco se aplica a países, que só muito raramente têm a vida
“tão curta”. Mas a palavra craft, quando precedida do vocábulo state,
significa ofício de estadistas – statecraft. Este será sempre, para
países, um ofício “longo de aprender”.
Países que não têm praticantes desse ofício e não estimulam seu
surgimento tendem a ficar para trás com relação aos que os têm e que o
fazem. Estes produzem – por meio do funcionamento da democracia, pelo
voto – lideranças (o plural é importante). Que se caracterizam por
respeito aos fatos, capacidade de coordenação, predisposição ao diálogo
franco com pessoas e partidos de visões diferentes, incluídos aí
adversários políticos, que podem discordar, mas também concordar em
matérias de interesse geral – e não devem ser vistos, todos, como
inimigos.
Statecraft, está claro, é o que não temos hoje em nosso país e, a
julgar por estes primeiros 18 meses, não teremos nos 60% do tempo que
resta até as eleições de outubro de 2022. O presidente – e seus fiéis
seguidores – julgam que esses 60% constituem pouco tempo. Muitos outros
discordam, legítima e pacificamente. Como é natural em democracias.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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