Como sabemos, a Casa Branca foi construída por escravos. Para o meu caro
leitor, o que combateu ou combateria mais o racismo na América: eleger o
primeiro Presidente negro ou demoli-la? Sebastião Bugalho, via Observador:
A onda de protestos que rebentou na América e na Europa está longe de
ter apenas a ver com o assassinato de George Floyd, com a violência
policial, com as tensões sociais e económicas que a incerteza da
pandemia acentuou ou com a discriminação racial que vitima, ainda hoje,
as comunidades afro-descendentes no mundo. Aquilo a que assistimos em
capitais europeias como Bruxelas, Berlim, Amesterdão, Londres ou Lisboa
foi contrastante com o que se passou nos Estados Unidos e até
contrastante entre si. A América em que se pilhou foi a mesma América
onde se protestou pacificamente. O Portugal em que se apelou
vergonhosamente à morte de polícias foi o mesmo Portugal onde se quis
mostrar solidariedade a uma comunidade que se sente discriminada. Seria
desonesto de ambos os lados avaliar o todo pela parte, na medida em que
as manifestações não foram homogéneas, nem dentro delas. Por mais
irónico que seja partidos marxistas como o Bloco de Esquerda utilizarem o
que acontece na América como referência, devemos olhar para lá do que
eles pretendem exibir.
Quando nações europeias se predispõem a serem confrontadas com a sua
História, o embate é necessariamente mais profundo do que o verificado
nos EUA por uma razão simples: temos mais passado por onde ter errado. A
questão que o tumulto das últimas semanas coloca é se a rua deve ser a
arena de confronto entre esse passado e o quadro moral da
contemporaneidade.
Essencialmente, os negacionistas do racismo e os ativistas contra o
racismo partilham duas maleitas: uma obsessão absurda com a semântica
(como se a eliminação do termo “Descobrimentos” fosse resolver alguma
desigualdade ou dizer que há racismo num país tornasse todo o país
racista) e um extraordinário desconforto com a consciência histórica dos
seus povos. Em 1783, George Washington afirmou que “o seio da América
está aberto a receber não só o opulento e respeitável estrangeiro, mas o
perseguido e oprimido de todas as nações e religiões, a quem daremos
boas-vindas e participação em todos os nossos direitos e privilégios, se
assim o merecerem por decência e conduta”. Mais celebremente, Thomas
Jefferson escreveu na Declaração da Independência que “todos os homens
são criados iguais”, sendo, para furtar a ancestral expressão,
auto-evidente que o humanismo dessa herança diz muito pouco ao atual
Presidente, Donald Trump.
O desprezo pelo património histórico de cada um tornou-se, no
entanto, omnipresente na dita guerra cultural. Quando filmes são
suspensos de serviços televisivos, estátuas de empreendedores navais
derrubadas, memoriais de heróis da democracia vandalizados e discursos
de ódio contra caucasianos proferidos (“Eram eles, os brancos, que
deviam estar aqui”, berrou Joacine) reconhecemos uma vontade extrema,
não de debater a História, mas de reescrevê-la ou apagá-la. Como a
deputada não-inscrita confirmará se pegar num livro, o racismo existiu e
existe em todo o lado, entre a multicidade das etnias. Na História, a
jornada da liberdade é trabalhosa, lenta e global, não se resumindo às
clivagens que a esquerda portuguesa prefere.
Inevitavelmente, essa polarização de uma causa que devia ser o mais
unânime possível – o anti-racismo – irá prejudicar a luta contra o
racismo. Se os movimentos insistirem em confundir humanidade com
anarquismo, decência com violência, ativismo com revolta, irão alienar a
sociedade de algo que tinha tudo para ser consensual: o combate à
discriminação. Como disse Keir Starmer, líder da oposição ao governo de
Boris Johnson, as intenções das manifestações são nobres, mas as
precauções de saúde numa pandemia são indispensáveis e o respeito pelas
instituições democráticas também. Não se podem, avisou o trabalhista,
remover monumentos sem reunir os representantes eleitos das comunidades
(no caso britânico, o city council). E é também isso que devemos fazer
em Portugal.
Se a colisão entre a antiguidade da História e a persistência das
desigualdades nos chegou, a plataforma para esse choque tem de ser
alargada e estabilizada. Devem ouvir-se associações, partidos,
assembleias, fundações, museus e universidades de modo a preservar ao
máximo o foco do problema, com factos, números e pluralismo. Tudo o
resto – cartazes anti-capitalistas, desfinanciamento da polícia, gritos
contra a vida dos seus agentes, violações de liberdades e direitos como a
propriedade privada – impedirá as sociedades abertas de olharem
seriamente para um tema que existe, que é real e que merece ser
discutido abertamente. Negá-lo não é solução. A ferida que abriu pelo
Ocidente – entre o que fomos e o que queremos ser – cicatriza-se com
integração institucional e democracia, não com incentivos a agressões,
cocktails ideológicos ou preguiça política.
Talvez uma boa forma de abrir essa conversa seja, afinal, com uma
pergunta. Como sabemos, a Casa Branca foi construída por escravos. Para o
meu caro leitor, o que combateu ou combateria mais o racismo na
América: eleger o primeiro Presidente negro ou demoli-la?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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