Como explicar que a única solução para a pandemia seja a receita da época da peste? Reportagem de capa da Oeste desta semana, por Selma Santa Cruz:
Durante a peste negra, que matou 200 milhões de pessoas no século 14,
os navios que aportavam na Europa com infectados alçavam uma bandeira
amarela. Era o sinal para as autoridades recolherem e confinarem os
doentes, a fim de tentar impedir a propagação da enfermidade. Tratava-se
da única providência possível, naqueles tempos obscuros, quando a
ignorância atribuía flagelos desse tipo a castigos divinos. Ou, como se
passou a acreditar, mais tarde, a emanações de matéria orgânica em
decomposição, os miasmas.
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Ilustração de vestimenta criada no início do século 17 por Charles de l’Orme, médico do rei Luís XIII, da França. |
Com o tempo, o alcance das quarentenas foi sendo ampliado para isolar
cidades inteiras, e até o final do século 19, quando surtos de cólera e
varíola eram frequentes, elas constituíam a receita de praxe contra
epidemias. Como explicar, no entanto, que mais de 600 anos depois, na
atual “era do conhecimento”, nosso único recurso contra o coronavírus
seja a secular fórmula medieval de trancafiar todo mundo em casa?
O paradoxo torna-se ainda mais chocante quando se considera que, até
alguns meses atrás, acreditávamos estar diante de um futuro de
possibilidades inimagináveis. Um mundo em que a robótica iria substituir
o trabalho braçal, a bioengenharia viabilizaria o desaparecimento de
doenças pela manipulação genética e a produção de órgãos humanos em 3D
revolucionaria a medicina. Em vez disso, a covid-19 veio nos lançar de
volta a um estado de perplexidade e ignorância comparável ao de nossos
antepassados da Idade Média.
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Contaminação por Ebola, na África. |
Apesar do acesso a um volume de informações sem precedentes, vemo-nos
tateando em meio a uma densa névoa, à mercê de explicações
desencontradas fornecidas por políticos, médicos, jornalistas e
cientistas — boa parte delas sem fundamento, embora divulgadas como
verdades incontestáveis. Só uns poucos epidemiologistas admitem que
quase nada se sabe sobre o vírus, e a poderosa indústria farmacêutica
corre contra o tempo atrás de alguma solução eficaz, de olho nas bolsas
de valores e na promessa de lucros colossais.
O mantra #fiqueemcasa
Enquanto aguarda, o mundo permanece paralisado, como se bilhões
tivessem sido afetados simultaneamente por algum feitiço sobrenatural.
No começo, como se recorda, o lockdown e o social distancing, termos
atualizados para a velha quarentena, seriam medidas emergenciais.
Depois, criou-se o consenso de que eles deveriam durar até o tal
achatamento da curva, cuja projeção varia muitas vezes conforme os
humores do governante de plantão.
Mas, à medida que a doença e o pânico ganhavam terreno, o #fiqueemcasa se converteu num mantra hipnotizante e definitivo.
Agora, já se especula que o único jeito de conter a pandemia será
prolongar o “isolamento social” por até um ou dois anos. Ou aceitar que
ele se torne o “novo normal”, um confinamento sem fim, como alertaram
dias atrás o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, e seu
colega italiano, Giuseppe Conte. Esse risco se afigura ainda mais
concreto diante da “segunda onda” de infecções registrada em países como
o Irã e a China, que já remeteu ao confinamento mais 100 milhões de
pessoas. E sobretudo diante das mutações detectadas no coronavírus, as
quais dificultam a busca de remédios e vacinas.
O fato de as autoridades sanitárias, a comunidade científica e a
indústria farmacêutica terem se mostrado até agora incapazes de nos
oferecer saídas para esse estado de coisas é ainda mais intrigante tendo
em vista que nenhuma dessas entidades pode alegar ter sido pega de
surpresa pela pandemia. Afinal, nas últimas duas décadas, desde a
ocorrência da sars, a síndrome respiratória aguda grave, em 2002, o
mundo vem sendo castigado por uma sucessão de epidemias que já mataram
cerca de 600 mil pessoas. Entre elas, a gripe A ou suína, mais conhecida
no Brasil como H1N1 (2009-2010), a mers, síndrome respiratória por
coronavírus do Oriente Médio (2012), e a sinistra ebola (2014-2016),
cuja taxa de mortalidade pode atingir 90%.
Durante esse período, assistiu-se a uma considerável mobilização de
instituições de pesquisa e órgãos multilaterais com o objetivo de
planejar protocolos para o enfrentamento dos próximos surtos. Mas não se
chegou a nenhum resultado efetivo, como lembrou em entrevista recente à
Rádio France Culture o historiador das ciências francês Guillaume
Lachenal, professor do Institut d’Études Politiques de Paris (Science
Po).
Interesses e conflitos
De fato, em vez de uma resposta articulada global apoiada em
consensos científicos, o que vemos é um lamentável espetáculo de
disputas de poder em praticamente todas as instâncias. Que expõem os
muitos interesses conflitantes em jogo e dificultam o encaminhamento de
soluções. A começar pela Organização Mundial da Saúde, a OMS, cuja
autoridade vem sendo minada há anos pelo caráter político de suas
decisões — distorção evidenciada mais uma vez durante sua reunião anual
da semana passada, transformada em palco de propaganda do Partido
Comunista Chinês.
E, se a exploração política e comercial da pandemia por governantes
medíocres de diferentes nacionalidades e coloração ideológica não chega a
ser surpresa, a estridência das brigas dentro da comunidade científica
causa espanto. Como a recomendação de lockdown foi transformada em
dogma, quem quer que proponha abordagens alternativas, independentemente
de suas credenciais científicas, torna-se imediatamente alvo de
linchamento de reputação. É o caso, entre outros, de pesquisadores de
renome como o microbiologista francês Didier Raoult, professor da
Universidade de Ciências Médicas de Marselha, e o virologista brasileiro
Paolo Zanotto, do Departamento de Microbiologia da USP.
Não é de hoje que quem questiona visões consolidadas na esfera médica e científica paga caro por desafiar a ortodoxia.
O exemplo mais célebre talvez seja o médico húngaro Ignaz Semmelweis,
que descobriu no século 19 as causas da febre puerperal, infecção que
matava 10% das parturientes à época. Por levantar a hipótese de que uma
das razões seria a falta de assepsia de seus colegas, que não
desinfetavam adequadamente as mãos entre autopsias e partos, ele foi
proibido de exercer a medicina e internado num hospício, onde morreria
em circunstâncias misteriosas. Sua tese acabaria confirmada apenas uma
década mais tarde pela teoria dos germes de Louis Pasteur.
Essa história, que inspirou a peça do dramaturgo Henrik Ibsen O
Inimigo do Povo, é apenas a mais conhecida de uma longa série de casos
de perseguição a pesquisadores que descobriram verdades inconvenientes.
Como o da epidemiologista inglesa Alice Stewart, que constatou na década
de 1950 a relação de causa e efeito entre o uso de raios X em grávidas e
alguns tipos de câncer infantil. Em consequência, foi vítima de uma
campanha de difamação tanto por parte de seus pares da classe médica,
encantados com a nova tecnologia, quanto pela indústria da radiologia e
pelas agências responsáveis por sua regulamentação. Que se negaram por
nada menos que 25 anos a reconhecer as evidências de sua tese antes de
finalmente proibir a prática.
Os interesses da indústria farmacêutica
A ciência, afinal, não é um oráculo provedor de respostas absolutas,
como pretendem muitos que a invocam para defender seus pontos de vista.
Como método de conhecimento, trabalha com hipóteses, sempre sujeitas a
questionamento. Também não pode ser tratada como vestal, isenta de
pressões comerciais e políticas. Suas pesquisas, financiadas por verbas
governamentais, de fundações e da indústria farmacêutica, estão sujeitas
a influências e direcionamentos nem sempre alinhados com os interesses
da saúde pública.
Nesse sentido, a covid-19 lança luz também sobre o lado perverso do
modelo de negócios da chamada Big Pharma, que favorece o investimento em
drogas de alto retorno mercadológico em detrimento daquelas com maior
potencial de benefício social. “Apesar dos vários surtos desde 2002 e
das evidências de que enfrentaríamos outra pandemia, a indústria não
investiu o necessário no desenvolvimento de novos tratamentos e
vacinas”, observam dois analistas desse mercado, Tahir Amin e Rohit
Malpani, em recente artigo na publicação americana especializada Stat.
Não se trata aqui de desvalorizar a importante contribuição do setor
para a saúde nem de fomentar teorias conspiratórias sobre interesses
ocultos.
Mas é evidente que algo não saiu como devia na resposta global à
pandemia. Seis meses após a detecção dos primeiros casos na China e dois
depois do reconhecimento oficial da pandemia pela OMS, continuamos
capturados em uma espécie de realidade paralela. E talvez só venhamos a
entender as razões desse desatino no futuro, a partir da perspectiva
histórica. Como afirmou o cientista russo Valery Legasov, que desafiou a
censura e ameaças de morte para revelar ao mundo as causas do desastre
nuclear de Chernobyl, a verdade sempre acaba aparecendo, mais cedo ou
mais tarde. “Ela está lá, queiramos vê-la ou não. […] E pode ficar
aguardando por quanto tempo for necessário.”

Fontes: Centro de Controle e
Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, BBC, Wikipédia, Enciclopédia
Britânica, Universidade Johns Hopkins
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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