Basta hoje um sobressalto, uma incerteza ocasional para desencadear um
processo imparável de submissão voluntária. O sacrifício da privacidade
no altar da segurança é iminente, se é que já não ocorreu. Artigo de
Carlos M. Fernandes para o Observador:
Na natureza, há substâncias, organismos e fenómenos cuja expressão é
circunstancial. Quando envolvidos na fisiologia humana ou nas condições
ambientais às quais somos, física e socialmente, mais sensíveis, alguns
manifestam, de um modo implacável, a sua condição dupla. Outros, como
pais austeros, usam métodos espartanos, dos quais colhemos benefícios
futuros. Radiação electromagnética, moléculas orgânicas e inorgânicas,
bactérias, vírus, recursos energéticos; praticamente todos os domínios
naturais têm propriedades que, no diálogo com a nossa espécie, mostram
uma multiplicidade de efeitos contraditórios. Vejamos alguns exemplos.
A radiação ultravioleta é um manancial de vitamina D, e,
simultaneamente, a principal causa dos melanomas e carcinomas de pele. O
ozono, que na estratosfera serve de escudo contra os ultravioletas mais
letais, converte-se, na troposfera, em veneno para os pulmões. Os
rinovírus, responsáveis pelas constipações e ataques de asma, deixam-nos
prostrados, em média, um ano das nossas vidas, e têm-se furtado ao
esforço balizador das vacinas. Não obstante, muitos cientistas estão
convictos de que as crianças que adoecem com bactérias e vírus
relativamente inofensivos, como os rinovírus, desenvolvem, mais tarde,
uma maior resistência a diversos transtornos imunitários. A natureza é
complexa e deve estar isenta de juízos de valor.
A técnica é um exercício de poder sobre a natureza, mas como nem
sempre consegue domesticá-la e atenuar a dualidade dos fenómenos, é com
frequência que incorpora riscos fisiológicos e sociais. Nalguns casos,
as ameaças são evidentes: a energia nuclear, desde o princípio do seu
desenvolvimento prático, fez saltar todos os alarmes. Noutras invenções,
os perigos escondem-se por detrás da popularidade, para lá das
fronteiras do conhecimento humano, ou até entre receios sem fundamento
que desviam a atenção dos verdadeiros riscos. A descoberta e aplicação
dos raios X ao diagnóstico médico são exemplares da dificuldade em
discriminar, no advento de uma ferramenta técnica, os seus efeitos
secundários.
O primeiro cientista a estudar os raios X foi o alemão Wilhelm
Röntgen. Na noite de 22 de Dezembro de 1895, Röntgen expôs uma chapa
fotográfica durante quinze minutos a uma fonte de radiação X. Sobre a
chapa, estava a mão da sua mulher, Anna Bertha. Esta, no momento em que
Röntgen lhe mostrou a primeira radiografia da história, terá dito,
perturbada pela imagem do seu derradeiro destino, «vi a minha morte». O
que Anna não sabia era que, se porventura continuasse a prestar-se às
experiências do marido, aquela radiografia tornar-se-ia efectivamente
num símbolo da sua morte: os raios X são uma radiação ionizante e a
exposição prolongada à sua acção pode causar mutações cancerígenas no
ADN das células humanas. Quando a descoberta revolucionária de Röntgen
deu entrada nos procedimentos clínicos, desconheciam-se os malefícios;
por motivo dessa impreparação, as consequências, para muitos
radiologistas e pacientes, foram fatais. Ademais, não foi só na medicina
que os raios X tiveram um sucesso quase imediato.
O fascínio pelos «retratos interiores», como lhes chamou Thomas Mann
em A Montanha Mágica (obra que encerra um dos mais contundentes ensaios
sobre a imagiologia médica, a doença e a morte), rapidamente extravasou a
comunidade científica para adquirir um cunho mais lúdico. A
simplicidade dos aparelhos atraiu amadores e profissionais que, tal qual
os fotógrafos convencionais, ofereciam os seus serviços a todo o tipo
de clientes desejosos de experimentar a novidade, desde amantes que
queriam trocar, como lembranças de afecto, radiografias das mãos ou de
outras partes do corpo, a donos de animais, que criaram o hábito de pôr
radiografias dos seus cães e gatos sobre a lareira.
De pronto surgiram temores a respeito de hipotéticas propriedades da
radiografia, bem resumidos num poema publicado em 1896 numa revista de
fotografia, que rematava designando-os como «naughty, naughty rays» (em
português, raios atrevidos). Hoje pode parecer risível, mas, no final do
século XIX, receava-se que fontes de radiação X pudessem ser instaladas
em aparelhos portáveis e o seu grau de penetração controlado de forma a
devassar a intimidade alheia. Se chegava aos ossos, podia ficar-se pela
pele, pensava-se (antes de nos rirmos, devemos recordar os aparelhos de
raios X por retrodifusão que operaram nos aeroportos norte-americanos e
europeus até 2012).
Os equívocos sobre a nova técnica ficaram registados em alguns
episódios caricatos, como o caso do membro da assembleia do condado de
Somerset, em New Jersey, que propôs um projecto-lei para proibir a
montagem de raios X nos binóculos de teatro, e o da publicidade a roupa
interior à prova de radiação. Se se tratou de uma preocupação autêntica,
ou se foi apenas uma farsa alimentada pela imprensa para ganhar
audiência, é um tema ainda em debate. O certo é que, enquanto tudo isto
sucedia, a verdadeira ameaça da radiação de Röntgen quase dizimava uma
geração de radiologistas.
A história dos raios X ensina-nos que os malefícios de uma técnica
podem estar onde menos se espera. Se, no caso em apreço, a preocupação
com os riscos sociais se revelou improcedente, nada nos garante que,
noutras situações, não se dê a situação inversa. É com esse cepticismo,
sem cair na paranóia, que devemos lidar com qualquer invenção ou
descoberta. Afinal, a técnica é ciência aplicada, e o cepticismo e o
consenso são, respectivamente, o melhor amigo e o mais obstinado
adversário do método científico.
As gerações contemporâneas, criadas num sentimento de exclusividade,
acreditam estar a viver o apogeu do progresso. O erro de paralaxe
geracional, comum a todas as épocas mas hoje ampliado por um sistema
educativo que substituiu o ensino da História por um ajuste de contas
com o passado, acarreta alguns problemas. Como disse Martin Amis,
«quando o passado está esquecido, o presente é inesquecível». Em outras
palavras, o deslumbramento com as ferramentas modernas pode impedir-nos
de ver o que se ergue nas sombras do quadro completo, e se não devemos
nunca menosprezar o poder da criatividade humana na resolução dos
problemas mais complicados, também convém não perder de vista a sinistra
propensão do Homem para oprimir o Homem com os mesmos instrumentos de
progresso.
O exagero nos louvores ao tempo em que vivemos não significa que
algumas criações recentes estejam desprovidas de potencial
transformador. Entende-se como inovação transformadora aquela que define
um novo sistema, um outro espaço de conceitos, que dificilmente poderia
ser construído por um processo incremental. A radiografia, por exemplo,
foi uma invenção transformadora (que, avaliados os custos e os ganhos,
pendeu claramente para o bem). O telefone inteligente é, na aparência,
uma inovação incremental que, enriquecida sucessivamente com novas
ferramentas, cada vez mais poderosas, vem adquirindo um carácter, se não
transformador, pelo menos disruptivo. Terá, certamente, as suas
vantagens. Resta saber se, na contabilidade dos benefícios e malefícios,
o saldo será positivo.
Os telefones inteligentes combinam a capacidade de computação actual
com a rede de informação disponibilizada pela internet, a inteligência
artificial e distribuída, e o paradigma de comunicação inaugurado pela
primeira geração de telemóveis. Há, nesta amálgama de técnicas e ideias,
uma que deve ser examinada com particular atenção: a computação
distribuída.
Os sistemas de computação distribuída assentam num conjunto de
unidades de processamento que operam simultaneamente para produzir
conhecimento a partir de informação. Pode ser um computador com diversos
processadores ou um sistema partilhado pela rede de comunicação móvel,
em que cada aparelho é uma unidade que pode comunicar com as outras. Os
sistemas distribuídos massivos e bem desenhados são robustos: uma avaria
num dos nós pouco ou nada afecta o desempenho do sistema. Mais do que
uma técnica, é um conceito que se oferece a muitas analogias com a
sociedade humana.
A quinta geração de internet móvel (5G) veio aumentar
substancialmente o poder de processamento das unidades de comunicação.
Com a 5G e a parafernália de algoritmos de inteligência artificial
criados nas últimas décadas, a computação distribuída ganha um novo
impulso. O totalitarismo digital também. Integrados numa rede global de
aparelhos, sensores e técnicas intrusivas, os telefones inteligentes e
outras ferramentas digitais ameaçam transformar-se no pior pesadelo das
sociedades abertas. O perigo da inteligência artificial não vem dos
robôs assassinos nem das máquinas conscientes inventadas em Hollywood.
Chega-nos da adesão indiscriminada às promessas de conforto, eficiência e
segurança que nos trazem as redes de comunicação móvel.
Basta agora um sobressalto, uma inquietação, uma incerteza momentânea
para desencadear um processo imparável de submissão voluntária. O
sacrifício da privacidade no altar da segurança é iminente, se é que não
ocorreu já. Assustados e submetidos à vigilância, não só do poder, como
também dos pares, abriremos a porta a um novo tipo de sistema
distribuído, em que cada utilizador e unidade móvel serão, juntos, e
ainda que sem intenção, uma ferramenta de patrulhamento e repressão. Tal
sistema, ao herdar as propriedades robustas da computação distribuída,
esquivar-se-á às estratégias de resistência convencionais.
Os déspotas de amanhã, e alguns do presente – quem seria capaz de
reconhecer o ditador chinês na rua? –, não terão o rosto estampado nas
camisolas de adolescentes e adultos imaturos. Serão os burocratas
anónimos, os cidadãos diligentes, os operários das novas técnicas
digitais, os vizinhos invejosos ou amedrontados, e todos aqueles que,
quer queiram, quer não, estiverem na posse de uma engenhoca digital. A
repressão distribuída dispensa um chefe carismático para unir as pessoas
sob o logro do bem comum; basta uma rede auto-organizada de inclusão e
exclusão, gerida e vigiada por todos através de um enxame de aparelhos.
Citando uma velha canção falada, a revolução digital não será
televisionada, mas será, muito provavelmente, decidida, solicitada e
exercida em banda larga. Se isso acontecer, talvez então compreendamos
melhor a frase lapidar proferida por Snake Plissken logo após desligar a
energia eléctrica da Terra e acender um cigarro American Spirit:
«bem-vindos à raça humana».
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário