As ideias de Pascal sobre política, em texto do professor Ricardo Mantovani, publicado pelo Estado da Arte:
Estados e governantes são parte de um grande castigo que se abate
sobre a humanidade: eis uma tese que pode ser facilmente depreendida da
filosofia de Pascal. Mas por que o pensador teria uma visão tão
pessimista da política? Vejamos.
Blaise Pascal (1623-1662) foi um eminente cientista, tendo, dentre
outros grandes feitos, inventado a máquina de calcular e desenvolvido o
famoso cálculo das probabilidades. Aliás, Pascal foi um dos grandes
nomes envolvidos na polêmica demonstração da existência do vácuo,
fazendo frente àqueles que, na época, julgavam ser incompatível a
existência do vazio absoluto com a existência de um Deus Todo-Poderoso e
Todo-Criativo (mais ou menos como aqueles que, ainda hoje, julgam ser
incompatível a existência divina com a existência do globo terrestre
que, por conta disso, tentam, a todo custo, achatar, tornar plano…).
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| Máquina de calcular criada por Pascal |
Quanto às teses filosóficas de Pascal, pode-se dizer que se encontram
reunidas, quase todas, numa obra conhecida, atualmente, como
Pensamentos: escrito inacabado, composto por mais de mil notas pessoais
que, não fosse a morte prematura do autor, serviriam de base a uma
Apologia da religião cristã. Que não se pense, contudo, que as ideias
desenvolvidas nos Pensamentos calam fundo apenas naqueles que
compartilham da fé do escritor. As investigações filosóficas de Pascal
nunca pressupõem a aceitação de dogmas teológicos ou de inextricáveis
teses metafísicas. Ao invés disso, o filósofo costuma iniciar seus
arrazoados descrevendo um fenômeno prontamente detectável (como o
amor-próprio que nos corrói a todos) ou, ainda, elaborando
imaginativamente uma situação tão verossímil quanto possível. Ora, é
precisamente desta última maneira que procede Pascal ao tentar responder
uma das questões centrais da filosofia política, por conta da qual
muita tinta foi gasta, sobretudo ao longo dos séculos XVII e XVIII: como
surgiram os primeiros Estados?
O pai do direito internacional moderno, Hugo Grotius (1583-1645), vê
no homem um ser naturalmente sociável, que busca o convívio de seus
semelhantes pelo mero prazer de sua companhia — e que, portanto, funda
os primeiros corpos políticos simplesmente para dar uma vazão mais
tranquila a seus instintos gregários. Thomas Hobbes (1588-1679), por seu
turno, em seu famigerado Leviatã, assegura que, na ausência de qualquer
poder político, a existência humana se desenrola de modo miserável e
violento, já que, naturalmente, os indivíduos só se ocupariam de sua
autopreservação. Ainda segundo Hobbes, é exatamente o ressentimento dos
contínuos dessabores próprios a essa situação – na qual todos estão em
guerra contra todos — que leva os homens a estabelecerem entre si um
contrato que os coloca sob um poder comum, precisamente aquele do
Estado, o qual é soerguido no intuito de mediar e pacificar suas
relações.
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| O Leviathan, de Hobbes. |
Pois bem. Do ponto de vista de Pascal, é um erro acreditar que os
Estados surgiram como uma decorrência espontânea de nossa pretensa
sociabilidade — como quer Grotius — ou, ainda, como o fruto de um pacto
voluntário e racional celebrado por um grupo de indivíduos — como
gostaria Hobbes. Desmistifiquemos a origem dos corpos políticos: os
Estados são filhos do combate, da conquista e da consequente subjugação
dos vencidos.
Quando figura a situação que teria dado origem aos primeiros Estados,
Pascal nos pinta um quadro violento, no qual vemos pequenas gangues
(chamadas pelo filósofo de “partidos”) digladiando-se até que uns virem
senhores e outros virem escravos. Todavia, Pascal nos chama a atenção
para um fato nada desprezível: os vencedores da guerra fundadora não têm
interesse em continuar sendo vistos como conquistadores violentos,
apressando-se para “legitimar” o poder que se encontra em suas mãos.
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| Pintura rupestre de uma guerra pré-histórica. |
É aí que o engodo toma conta da cena e os mitos começam a ser criados
aos borbotões. De acordo com as ideologias que vão, aos poucos, sendo
engolidas pelos dominados, os novos líderes não devem seus privilégios
ao resultado contingente de um embate bélico, mas, por exemplo, à
“pureza” de seu sangue, à superioridade de sua raça, ou, ainda, ao
arbítrio inelutável de alguma divindade.
Mas como os governantes conseguem levar a cabo a tarefa de escamotear
as raízes perversas de seu status? Pascal responde: através do
espetáculo. Assim como os juízes e os médicos — que vestem roupas
pomposas para fingir que têm uma ciência que, na realidade, estão longe
de possuir —, os governantes, diz o filósofo, rodeiam-se de toda
parafernália possível para, desta maneira, impressionarem o comum dos
homens. Como poderiam os vulgos não se sentirem inferiores perante
indivíduos fanfarrões, que dispõem de tantas riquezas, que têm à sua
disposição tão espalhafatosas tropas ou que, como ocorre nas democracias
modernas, gozam de tanto “apoio popular” (mesmo que este seja,
eventualmente, forjado por algum instituto de pesquisa)? Se a força
fundou os Estados, é definitivamente o marketing que os sustenta.
Levando em conta estas duras verdades, Pascal escreve uma pequena
obra, os Três discursos sobre a condição dos grandes, em que se dedica à
ingrata tarefa de preparar um futuro duque para os desafios que sua
posição lhe trará. Neste texto, o filósofo, ao invés de prescrever ao
jovem aristocrata as mais altas virtudes, limita-se a lembrar-lhe de
que, ao fim e ao cabo, não é nem melhor nem pior do que aqueles que virá
governar. Ainda que o povo vos tenha por um ser superior, diz Pascal,
deveis recordar-vos de que, no limite, foram eventos acidentais que vos
alçaram a tão alto patamar!

Realista como sempre, Pascal sabe que um conselheiro jamais
conseguiria tornar virtuoso um político, tarefa deixada a cargo de
santos homens ou, quiçá, da Graça. No entanto, o pensador não finaliza
seu terceiro Discurso sem antes prescrever a seu pupilo que seja liberal
para com seus súditos. Um governante cioso de seu posto deve, sempre
que possível, distribuir bens e honrarias. Tal medida, certamente, não
tornará seu governo justo — até porque, do ponto de vista pascaliano, um
governo justo é algo humanamente impossível de ser construído. Não
obstante, manter os corpos e os egos do povo alimentados evita as
revoluções: e é precisamente disto que se trata, já que as convulsões
sociais são o maior dos males que podem acometer uma sociedade.
Isto introduz o último ponto que gostaria de ressaltar do pensamento
político pascaliano. Mesmo que os Estados sejam filhos da violência e
vicejem graças à criação de mitos, Pascal não crê que possamos deles
abdicar (como gostariam Bakunin e Rothbard) ou mesmo que possamos
melhorá-los (como, em vão, tentaram os “deuses” das revoluções francesa e
bolchevique). Os homens — governantes e governados — são podres e
qualquer tentativa de instalar o Paraíso na Terra só intensificará seu
odor nauseabundo. Caso não tivéssemos afrontado o Criador, ainda
fruiríamos de sua paz. Hoje, entretanto, só nos resta aceitar, na medida
de nossas forças, os desmandos da corja dominante que não faz senão nos
aviltar. E que Deus nos dê paciência!
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| Adão e Eva em Cacciata dei progenitori dall’Eden, de Masaccio |
Ricardo Vinícius Ibañez Mantovani é
Doutor em Filosofia pela USP. Coordenador e professor do curso de
Pós-Graduação em Ética e Filosofia Política da Faculdade Paulo VI e
pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da
Fundação São Paulo/PUC-SP LABÔ.
BLOG ORLANDO TAMBOSI





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