Em geral, nem uma coisa nem outra, mas a politização exacerbada
prejudica a imagem e as funções dos juízes constitucionais em vários
países, escreve Vilma Gryzinski:
Piadinha americana:
“Um juiz dirige-se aos advogados que representam as partes litigantes de uma causa.”
“‘Vejam bem’, diz ele. ‘Ambos os doutores me deram uma propina’. Os advogados fazem expressão constrangida.”
“‘O doutor Leon me deu 15 mil dólares. E o doutor Campos me deu 10 mil dólares’.”
“O juiz põe a mão no bolso e tira um cheque. Entrega-o ao doutor Leon.”
“‘Agora que devolvi cinco mil dólares, vamos decidir a causa puramente com base no mérito jurídico’.”
Isso é coisa de juízes caipiras, claro, lá dos cafundós do Arkansas e adjacências.
Mas a atuação dos togados das altas esferas, os guardiães dos
guardiães, é atualmente debatida com muito mais do que o calor natural
provocado pela interpretação da lei e da constituição.
Em lugares bem diferentes, com tradições diversas sobre o papel dos
supremos tribunais, como Estados Unidos, Grã-Bretanha e Peru, para não
mencionar as chamas que ardem na Praça dos Três Poderes, a chapa ferve.
Politização, captura de poderes legislativos, choques com o
executivo, entre outros focos de incandescência, fogem espetacularmente
da serenidade e da glacial imparcialidade associadas ao peso da toga
mais honorável.
O caso do Peru, com a casquinha de institucionalidade e a instabilidade inerentes à América Latina, é quase alucinante.
Resumo rapidão: para começar o capítulo atual, tudo está ligado ao
modelo de corrupção exportado pela construtora Odebrecht em parceria
público-privada com a máquina comandada pelo apenado e influencer de
Curitiba.
Como o modelo investigativo e de amplo uso da delação premiada também
foi exportado, a Lava Jato peruana capturou todos os presidentes dos
últimos vinte anos.
Problema: o Congresso tem maioria, numa formidável surpresa, de representantes ligados aos partidos investigados.
Tentou uma manobra latina, ou ladina: nomear “gente sua” para as seis
vagas do Tribunal Constitucional, que funciona no Peru em sistema
rotativo e não vitalício.
Dez dos onze indicados são carne, unha e sabe-se lá que outras partes
corporais com os partidos majoritários – fujimoristas e apristas.
Adivinhem qual seria sua missão principal.
O presidente, que era vice, Martín Vizcarra,
dissolveu o Congresso e antecipou novas eleições. O Congresso
declarou-se não dissolvido e deu posse, no lugar dele, a Mercedes Araóz,
que de segunda vice tinha passado a primeira.
Mercedes viu o tamanho da encrenca, “renunciou” e a encrenca ficou do
mesmo tamanho. Governo e fujimoristas agora estão negociando eleições
antecipadas de comum acordo.
TAPETES LUXURIANTES
O sopão peruano tem uma característica peculiar, em especial para quem vê o mundo com as lentes estritas de direita e esquerda.
Sindicatos e partidos esquerdistas menores apoiam Vizcarra e a Lava Jato.
Sem contar organizações populares e manifestações espontâneas de ódio
ao “ninho de ratos”, gentil apelido dado ao Congresso onde os
fujimoristas, que continuam com apoio forte do eleitorado, são a força
dominante.
Vizcarra foi eleito na chapa de Pedro Pablo Kuczynski, o outrora
respeitado economista moderadamente liberal e ilustrado. O que não o
impediu de ser contagiado pelo vírus Odebrecht e obrigado a renunciar.
Alberto Fujimori e sua filha e herdeira política, Keiko, ambos em
temporada no sistema prisional, são da corrente populista de direita.
Keiko é a comandante da sabotagem à Lava Jato.
Se e quando houver um acordo sobre o Tribunal Constitucional – sem
falar no futuro político do país -, uma coisa é garantida: vai dar rolo.
Num mundo menos politicamente exaltado, seria loucura comparar o
acidentado problema andino com a solidez institucional do Reino Unido.
Pois o tsunami do Brexit
criou uma situação em que a Suprema Corte é acusada de legislar sem ter
direito, interferir em decisões políticas e se comportar mais como um
partido do que um órgão isento.
Note-se que no sistema onde o Parlamento é a instância final de poder
e a história está fincada no direito anglo-saxão, ou Common law, nem
existia algo como um supremo tribunal de último recurso.
Num país de instituições orgânicas e antigas, onde só a Magna Carta, a
mãe de todas as constituições, tem mais de 800 anos, a Suprema Corte é
um bebê.
Foi criada em 2005, como parte das reformas políticas feitas por Tony
Blair, o primeiro-ministro que tirou o trabalhismo do passado, mas
criou um futuro altamente desconfortável para si mesmo.
O bafafá atual decorre da decisão da Suprema Corte, presidida pela
juíza Brenda Hale, de considerar inconstitucional a suspensão temporária
do Parlamento.
A manobra foi feita por Boris Johnson, com a autoridade de
primeiro-ministro e líder do partido com mais representantes no
Parlamento, e aprovada pela rainha Elizabeth II, um ritual ainda
importante no sistema monarquista, embora o monarca tenha poucas opções
de divergir.
A oposição soltou fogos e ficou bem mais complicada a posição de
Boris, que quer forçar a aprovação de um plano próprio para conseguir
tirar o reino na data prometida e exigida por lei, o próximo dia 31.
Brenda Hale, que tem título de baronesa e faz um estilo a hora do
espanto, incluindo broches enormes em formato de insetos, virou ícone da
esquerda.
Quase uma Ruth Bader Ginsburg, a juíza que continua incrivelmente
viva aos 86 anos e vários cânceres, à qual antitrumpistas mais exaltados
oferecem doar órgãos só para não “dar” a Donald Trump mais uma vaga na
Suprema Corte americana.
Escrevendo na Spectator, Charles Day disse que a decisão da baronesa
Hale, que logo vai deixar o cargo, e companhia foi um “escândalo
constitucional”, especialmente num país onde foi gestado o direito
anglo-saxão, com tradição de não maximizar o papel de advogados e
juízes.
Nos países da linha do direito romano-germânico, ou Civil law, “os
advogados são respeitados e os juízes reverenciados. Estão no topo da
constituição. Antes do experimento de Tony Blair com uma Suprema Corte,
os Lordes Juízes viviam num corredor apertado em cima do Parlamento e
dividiam uma secretária.”
“Não tinham juízes auxiliares para servi-los nem tapetes luxuriantes
para deleitá-los e sabiam que seu lugar era fora da política. É difícil
enxergar alguma melhoria com o novo sistema.”
Pois agora outra corte superior, da Escócia, onde começou a história,
deve ter outra pedreira. Decidirá se se Boris Johnson está sujeito a
pena de cadeia se não pedir à União Europeia mais uma prorrogação do
Brexit.
Boris também recorrerá na justiça: defenderá perante a Suprema Corte o direito de não pedir um prazo extra.
A baronesa Hale, que usou um broche de aranha gigante na primeira
decisão, escolherá o que como mensagem dessa vez? Um escorpião?
ATIVISMO JUDICIÁRIO
O sistema de uma Corte Suprema foi criado pela constituição
americana, com o conhecido objetivo dos fundadores da nação de
equilibrar os três poderes de forma a que todos vigiassem todos
justamente para evitar abusos.
Desde o início deu confusão. Um dos primeiros processos de
impeachment do novo país foi aberto contra um juiz da Suprema Corte,
Samuel Chase.
Não um juiz qualquer, mas um dos signatários da Declaração de
Independência dos Estados Unidos, nomeado por ninguém menos do que
George Washington.
E encrencado com ninguém menos do que Thomas Jefferson, outro pai da pátria.
Motivo: ativismo judiciário. E dos bravos. Chase e colegas entraram
em choque com o Congresso e com Jefferson por desejo de aumentar os
próprios poderes.
Impulsivo e falastrão, Chase também foi acusado de deturpar politicamente julgamentos importantes.
Mesmo com fama nada boa, acabou vencendo no Senado, a instância final dos processos de impeachment.
Foi somente durante algumas décadas que prosperou a ideia de juízes
de grande e reconhecido saber jurídico, espetacularmente imparciais,
aprovados pelos dois partidos, com zero influência dos presidentes que
os haviam indicado para a Suprema Corte, quando não votando “contra”
eles.
A politização progressiva atingiu o ápice com a última nomeação, a de
Brett Kavannaugh. Acusado de um abuso sexual quando era adolescente, o
juiz foi pintado como um monstro brutal pela oposição e a imprensa
antitrumpista.
Sua confirmação desencadeou ataques de histeria coletiva. O caso não
acabou. Duas jornalistas do New York Times lançaram um livro em que
denunciam um outro abuso.
Segundo o livro, durante uma bebedeira em festa universitária,
colegas de Kavannaugh tiraram seu pênis para fora, passando-o no rosto
de uma jovem.
A história poderia ser contada de outra forma: amigos praticaram ato
de homoerotismo coletivo com o juiz. Sem falar na mecânica da coisa.
A mulher envolvida diz que não se lembra de nada e não quer falar sobre o assunto.
Se as acusações foram verdadeiras, até hoje não houve comprovação. Se
forem inventadas ou imaginadas, Kavannaugh viverá sempre à sombra
delas.
E a Suprema Corte inevitavelmente acabará envolvida no processo de
impeachment contra Trump, aumentando ainda mais o clima de extrema
politização daquele que deveria ser o mais imparcial e sereno dos
guardiões da constituição.
Não o absurdo e cruel guardião do Portal da Lei, criação de Kafka,
com seu casaco forrado de pele e longa barba à moda dos tártaros,
impedindo eternamente o pobre camponês de ver o que acontecia além dele.
Os camponeses de hoje talvez sejam um pouco menos dóceis.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário