Andrew Roberts publica uma monumental biografia do estadista britânico,
enfatizando seu lado passional e suas motivações pessoais. Chorava com
facilidade, era devoto de Shakespeare e, com certeza, teria sido
partidário do ‘Brexit’.
A imagem de Winston Churchill
como primeiro-ministro corpulento, apoiado numa bengala, fazendo o
sinal da vitória e com um charuto na boca é a mais emblemática do grande
político britânico, mas apenas uma face de um personagem realmente
poliédrico, a ponto de ser não só inesperado como também desconcertante.
Uma nova biografia escrita pelo reconhecido historiador Andrew Roberts,
intitulada em espanhol Churchill, La Biografía, como que salientando
seu caráter “definitivo” — e assim foi saudada em diferentes meios —,
mostra um Churchill muitíssimo mais complexo e humano, com detalhes
sobre sua personalidade, como o fato de ter sofrido de abandono quando
criança, e como isso o marcou decisivamente, e como era propenso ao
choro, um traço muito pouco britânico.
Esteve a ponto de morrer várias vezes, incluindo episódios bélicos,
acidentes de avião e um atropelamento em Nova York, e sobreviver
reafirmou sua ideia de ter sido chamado pelo destino. Foi amigo de gente
tão diversa como Chaplin,
Rupert Brooke, Noel Coward e Lawrence da Arábia (cujo obituário
escreveu). Antecipou-se à proteção dos animais (embora tenha caçado um
rinoceronte branco e leões quando jovem), adorava-os e nunca comia
nenhum que pudesse chamar pelo nome. Também era expert em borboletas.
Supersticioso, acreditou que o naufrágio do Royal Oak em Scapa Flow, no
norte da Escócia, teria a ver com o fato de ele naquele dia ter usado
gravata preta, e não uma de bolinhas.
O monumental livro de Roberts, com 1.300 páginas, sem contar notas,
bibliografia e índices, cheio de detalhes como rastrear sua afeição pelo
conhaque e por roupas íntimas de seda (e onde as comprava), é uma
prodigiosa investigação sobre uma das figuras fundamentais da história,
que se lê com a mesma paixão com que foi escrita e que era, segundo seu
biógrafo, o traço característico de Churchill. Roberts (1963) utilizou
numerosas fontes novas, como os diários particulares do rei George VI.
“É uma obra resultante de 30 anos de estudo do personagem, cuja vida foi
um verdadeiro decatlo, pela variedade, e que levei quatro anos para
escrever”, conta o historiador, autor de biografias de Napoleão,
Salisbury, Halifax e dos Windsor, e que já abordara Churchill num livro
sobre ele e Hitler, no qual analisava a forma como ambos exerciam a
liderança.
Dotado de um senso de humor muito britânico, também característico do
carismático primeiro-ministro, Roberts admite de saída que há pouco
sexo na biografia, pois Churchill não se interessava muito pelo tema, e
aparentemente não teve grandes romances nem aventuras fora do matrimônio
com sua esposa Clementine, a tal ponto que as três mulheres mais
importantes para ele eram esta, sua babá e sua mãe. O Me Too
não o pegaria. “Não tem muito sexo, mas espero que isso seja compensado
com as grandes quantidades de violência”, brinca. “Daria para fazer um
filme do Tarantino.”
Roberts se refere a que a vida de Churchill foi inseparável da guerra,
da sua participação como soldado em campanhas no Sudão e África do Sul
até as duas Guerras Mundiais, passando por sua atividade militar menos
conhecida em outras frentes, como em Cuba e na fronteira norte da Índia.
Sobre que síntese pode fazer de Churchill após seu hercúleo encontro
literário com ele, medita: “Esperava encontrar muitos defeitos em sua
personalidade, e certamente há, e que cometeu gafe atrás de gafe, mas
capturou toda a minha simpatia pela forma como aprendeu com seus erros, e
acabei me afeiçoando muito. Não se deduza disso que o livro seja uma
hagiografia, absolutamente. Churchill é uma pessoa para quem eu não
gostaria de ter tido que trabalhar.” Estaríamos à vontade com ele numa
distância mais curta? “Sim, se ele quisesse que nos sentíssemos assim.
Tinha a habilidade política de fazer você se sentir o mais importante de
uma sala. Mas também era muito fácil para ele fazer você se sentir
espantosamente mal com a engenhosidade e mordacidade dele.”
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| Na África, em 1899. |
Na cabeça de muita gente é difícil unir a imagem do jovem Churchill
com a do Churchill maduro. “Foi diferentes pessoas ao longo de sua vida,
como todos nós, e ele viveu 90 anos, fumou 190.000 charutos e bebeu
muitíssimo. Virou uma imagem completamente diferente daquele soldado e
jornalista magrinho que atacava os mahdistas como lanceiro em Omdurman
(Sudão) — aliás, matou vários de próprio punho — e escapava audazmente
dos bôeres. Na época era um grande esportista, campeão de polo e esgrima
(florete), e estava muito em forma. Mas há características em Churchill
que, como o fio de uma tapeçaria, podemos acompanhar. Uma é a coragem.
Sua coragem física misturada com sua coragem moral. Muitos políticos têm
um ou outro, mas ter ambos é algo extraordinário. Outra área central é
sua paixão: o motor de Churchill eram suas emoções, algo raro em um
britânico, pois costumamos ocultá-las, e ainda mais um aristocrata
inglês como ele. Não se importava de chorar em público, coisa que os
britânicos custaram a fazer inclusive quando morreu Diana de Gales,
e nisso ele, tão vitoriano em tantos aspectos, era muito de uma época
anterior, da regência, andava com o coração na mão, como os românticos
ingleses, como um Shelley”. Outra característica “é a sinceridade de sua
amizade, em que aliás nunca teve preconceitos com a homossexualidade”.
A falta de carinho quando criança aparece no livro como um
condicionante essencial. “Seus pais eram profundamente egoístas e
praticamente o abandonaram aos cuidados alheios, isso o marcou, mas
nunca o fez pagar: continuou adorando seu pai — que tinha anexado a
Birmânia ao Império — e amava loucamente à sua mãe (amante de Eduardo
VII, entre outros), a quem dedica palavras maravilhosas em sua
autobiografia. Em todo caso, é um espetáculo muito triste ver um menino
tão sensível largado por seus pais, pouquíssimas vezes foram visitá-lo
em seus anos escolares, praticamente só uma vez quando estava à beira da
morte por doença”. Foi então, aponta Roberts, que ele começou a se
afeiçoar pelo conhaque, e isso porque o médico o aplicava como remédio
por ambas as vias. “Assim é”, ri o biógrafo, “depois disso alguém
poderia achar que ele abominaria o conhaque, mas não, embora
pouquíssimas vezes em sua vida tenha se mostrado ébrio”. Há um lado
histriônico em Churchill. Vem de um desejo de menino ansioso por chamar a
atenção? “Na verdade, acho que você não se mete em política se não tem
interesse em chamar a atenção. Gente sem ego não entra na política. A
ambição sem talento é ruim, mas em Churchill, como em Napoleão, a quem
admirava (como a Clemenceau), outro traço pouco britânico, essa ambição
estava justificada.”
A egolatria do personagem, sua vaidade, a fé em seu sino, a crença em
que era um homem predestinado, afastam um pouco. “Sim, o tornam
antipático, é justo que se diga. Todos ao seu redor deviam girar em sua
órbita, era tremendamente exigente com sua família, secretários, colegas
do Parlamento…”. Também seu afã por ganhar dinheiro e pelo luxo são
censuráveis. “Sempre estava na pindaíba, seus pais foram esbanjadores
terríveis, mas a boa notícia é que graças a isso escreveu tantos livros,
porque os pagavam bem. Incorrigível, quando teve dinheiro aos 73 anos
pela venda de sua obra sobre a Segunda Guerra Mundial, dedicou-se a comprar cavalos de corrida.”
Quanto à cara roupa íntima de seda… “Justificava que era porque tinha
a pele muito fina”. Muito britânicas, em todo caso, as duas coisas: a
pele e a cueca de seda. O biógrafo ri com gosto. Roberts considera quais
virtudes e defeitos de Churchill, como seu militarismo (sua grande
frustração foi não ser general) ou sua propensão ao verbo inflamado que
passou a ser sublime, funcionaram muito bem em uma situação de crise
brutal como a Segunda Guerra Mundial, sua melhor hora. Haveria outro
juízo histórico a respeito de Churchill sem aquele conflito? “Sim, se
tivesse morrido em 1939 poderia ter sido considerado um brilhante
fracasso. Mas os erros que cometeu antes, o fato de aprender com eles, o
transformaram num grande líder para uma guerra. Por exemplo, o fracasso
nos Dardanelos, na Primeira Guerra Mundial. Lá aprendeu que não devia
interferir no alto comando militar, usar sua posição para usurpar a
deles”. Nisto foi o contrário de Hitler.
“Justamente. Na Toca do Lobo, Hitler escutava seus grandes generais por
uma hora e depois fazia o que queria desde o começo. Curiosamente
Stálin foi mais como Churchill no sentido de deixar cada vez mais os
militares conduzirem a guerra.”
Roberts explica que Churchill e Hitler, que nunca se conheceram
pessoalmente, estiveram a ponto de se encontrarem uma vez. “Assim é, em
Munique, em 1932. Havia um encontro marcado para tomarem café, Hitler
não se apresentou, alegando que não estava barbeado e tinha muita coisa
para fazer. Não tinham nenhuma simpatia mútua, é óbvio. Hitler depois se
encolerizava cada vez que lhe mencionavam o nome de Churchill, e este
detestava o antissemitismo, o que era também um traço incomum na classe
alta britânica”. Hitler e Churchill, esses dois grandes pintores… “Não,
só um: Churchill, artista vocacional de verdade; Hitler deixou de pintar
assim que teve um salário fixo do partido”.
Não se entende Churchill, mestre da anáfora, sem sua capacidade
oratória. “Tinha memória fonográfica, que é o equivalente em sons à
fotográfica. Recordava fragmentos de poesias do colégio, era capaz de
recitar 1.200 linhas das Leis da Antiga Roma, de Macaulay, sabia grandes
partes das obras de Shakespeare.
Venerava-o. Há a história de quando assistiu na primeira fila a uma
representação do Hamlet de Richard Burton e passou a obra antecipando-se
às falas do ator, para exasperação deste. Polia seus discursos
treinando-os durante horas. As pessoas entendiam que eram excepcionais.
Isso acentuou seu carisma.”
Perdeu-se um grande poeta com Churchill? “Escreveu muitos livros,
embora só um romance, e ganhou o Nobel de Literatura, então não o
perdemos de todo”, ri o biógrafo. Eram, como oradores, luz e sombra
Churchill e Hitler? “Parece-me que sim, há uma dicotomia maniqueísta. Em
Hitler existe um orador carismático sem dúvida, e também ensaiava
muito, mas sua mensagem de ódio e ressentimento, somado aos traumas
alemães, criou uma fórmula de sucesso oratório perversa”.
No hálito épico e lírico da prosa churchilliana há ecos de Lawrence
da Arábia de Os Sete Pilares da Sabedoria. “Influenciou-o, era o tipo de
herói militar que Churchill desejaria ser”. O que Churchill acharia do Brexit?
“Sua filha Mary me advertiu para que nunca supusesse nada sobre o que
seu pai poderia ter achado de coisas que ocorreram após sua morte. Dito
isto, sabemos que não fez nenhum gesto para aproximar a Grã-Bretanha do
projeto europeu. Muito provavelmente teria sido favorável ao Brexit”.
Roberts ironiza a biografia de Churchill escrita por Boris Johnson, também fascinado pelo personagem. “A minha vendeu só um pouquinho a mais, mas é bom que os políticos escrevam sobre história.”
Aos erros de Churchill — Dardanelos (“o pior, 147.000 baixas”), sua
machista desqualificação das sufragistas, acreditar que a história de
Wallis Simpson não era a sério... —, Roberts acrescenta o retorno do
padrão-ouro. Por outro lado, não lhe parece que sua atitude sobre a
independência da Índia e sobre Gandhi tenha sido um erro. “Gandhi queria
destruir o império, é lógico que Churchill fosse contra.” O melhor
discurso para o biógrafo é o de 5 de outubro de 1938, "uma argumentação
sublime em que mostrou a insuperável distância entre a democracia
britânica e os nazistas, e se iguala a qualquer um dos mais famosos
durante a guerra, como o de ‘lutaremos nas praias...’, o do ‘sangue,
suor e lágrimas’ e o de ‘nunca tantos deveram tanto a tão poucos’. E o
melhor parágrafo está no que pronunciou no funeral de Chamberlain, em
novembro de 1940. Cheio de expressões maravilhosas, como: ‘A história
que nos ilumina com luz intermitente' ou ‘marchemos sempre nas fileiras
da honra’. De novo percebemos a influência de Shakespeare”. (El País).
BLOG ORLANDO TAMBOSI


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