Confira o ensaio de Umberto Eco “Construir o inimigo”, que dá título à coletânea de textos do autor italiano publicada pela Editora Record no Brasil no ano passado:
Alguns
anos atrás, em Nova York, topei com um taxista cujo nome era difícil de
decifrar e ele me explicou que era paquistanês. Perguntou de onde eu
vinha e lhe respondi que era da Itália. Perguntou quantos somos e ficou
muito espantado ao saber que éramos tão poucos e que a nossa língua não
era o inglês. Por fim, perguntou quem eram os nossos inimigos. Diante do
meu “como?”, esclareceu pacientemente que queria saber com que povos
estávamos em guerra havia séculos por reivindicações territoriais, ódios
étnicos, violações contínuas de fronteiras e assim por diante. Disse
que não estávamos em guerra com ninguém. Pacientemente, explicou-me que
queria saber quem eram os nossos adversários históricos, aqueles que
matam a gente e que a gente mata. Repeti que não tínhamos, que nossa
última guerra havia acontecido mais de meio século atrás e que, além do
mais, começamos com um inimigo e terminamos com um outro. Não ficou
satisfeito. Como é possível que exista um povo que não tem inimigos?
Saltei do táxi, deixando um dólar de gorjeta à guisa de compensação por
nosso indolente pacifismo, e só depois me veio à mente o que deveria ter
respondido: que não é verdade que os italianos não tenham inimigos. Não
têm inimigos externos e, de todo modo, não conseguiriam chegar a um
acordo para apontar quem são eles, porque estão sempre em guerra entre
si: Pisa contra Lucca, guelfos contra gibelinos, nortistas contra
sulistas, fascistas contra partigiani, máfia contra Estado, governo
contra magistratura — pena que na época ainda não tinha ocorrido a queda
dos dois governos Prodi, pois poderia ter lhe explicado melhor o que
significa perder uma guerra por culpa do fogo amigo. No entanto,
refletindo melhor sobre o episódio, convenci-me de que uma das desgraças
do nosso país nos últimos sessenta anos é justamente o fato de não ter
inimigos. A unidade da Itália fez-se graças à presença do austríaco ou,
como queria Berchet, do híspido, irritante alemão; Mussolini pôde
desfrutar do consenso popular incitando-nos à vingança pela vitória
mutilada, pelas humilhações sofridas em Dogali e em Ádua e pelas
demoplutocracias judaicas que nos infligiam tais iníquas sanções. Vejam
o que aconteceu nos Estados Unidos quando o Império do Mal desapareceu e
o grande inimigo soviético dissolveu-se. Corriam o risco de ver
desmoronar a sua identidade até que Bin Laden, reconhecido pelos
benefícios recebidos em forma de ajuda contra a União Soviética,
estendeu aos Estados Unidos a sua mão misericordiosa e deu a Bush a
oportunidade de criar novos inimigos, reconsolidando o sentimento de
identidade nacional e, de quebra, o seu próprio poder. Ter um inimigo é
importante não somente para definir a nossa identidade, mas também para
encontrar o obstáculo em relação ao qual medir nosso sistema de valores e
mostrar, no confronto, o nosso próprio valor. Portanto, quando o
inimigo não existe, é preciso construí-lo. Vejam a generosa
flexibilidade com que os skinheads de Verona escolhiam qualquer um que
não pertencesse ao grupo como inimigo, tudo para garantir seu
autorreconhecimento como grupo. E aqui, nesta ocasião, mais do que o
fenômeno quase natural de identificação de um inimigo que nos ameaça, o
que nos interessa é o processo de produção e demonização do inimigo. Nas
Catilinárias (II, 1-10), Cícero não teria necessidade de delinear uma
imagem do inimigo, pois tinha provas do complô de Catilina. Mas ainda
assim o constrói quando, na segunda oração, pinta para os senadores o
retrato dos amigos de Catilina, reverberando sobre o principal acusado o
seu halo de perversidade moral:
Indivíduos
que tresnoitam nos banquetes, abraçados a mulheres impudicas,
enlanguescidos de vinho, fartos de comida, engrinaldados de flores,
besuntados de unguentos, debilitados pela cópula, que vomitam incitações
à morte dos cidadãos honrados e ao incêndio da cidade. (...) Estão bem
debaixo de vossos olhos: sem um fio de cabelo fora do lugar, imberbes ou
com a barba bem talhada, com túnicas de mangas longas que chegam aos
tornozelos, envoltos em véus e não nas togas. (...) Estes “infantes” tão
lépidos e delicados aprenderam não só a amar e ser amados, a dançar e a
cantar, mas também a brandir punhais e a ministrar venenos.
O
moralismo de Cícero será, mais tarde, o mesmo de Agostinho, que
vilipendiará os pagãos porque, ao contrário dos cristãos, frequentam
circos, teatros, anfiteatros e celebram festas orgiásticas. Os inimigos
são diferentes de nós e se comportam segundo costumes que não são os
nossos. E um diferente por natureza é o estrangeiro. Já nos
baixos-relevos romanos, os bárbaros aparecem barbudos e com nariz chato,
e o próprio apelativo “bárbaro”, como se sabe, faz alusão a um defeito
de linguagem, logo de pensamento. Contudo, desde o início, são
construídos como inimigos nem tanto os diferentes que nos ameaçam
diretamente (como seria o caso dos bárbaros), mas aqueles que alguém tem
interesse em representar como ameaçador, ainda que não ameacem
diretamente, de modo que não temos o seu potencial de ameaça ressaltando
sua diversidade, mas antes a sua diversidade tornando-se sinal de
ameaça. Vejamos o que Tácito disse dos judeus: “Profano é para eles tudo
o que é sagrado para nós e tudo que para nós é impuro é para eles
lícito” (e vem à mente a rejeição anglo-saxônica contra os comedores de
rãs franceses ou a alemã contra os italianos que abusam do alho). Os
judeus são “estranhos”, pois não comem carne de porco, não botam
levedura no pão, repousam no sétimo dia, só se casam entre si, praticam a
circuncisão (imaginem) não porque é uma norma higiênica ou religiosa,
mas “para marcar sua diversidade”, sepultam os mortos e não veneram
nossos Césares. Uma vez demonstrado como alguns costumes reais
(circuncisão, repouso aos sábados) são diferentes, pode-se sublinhar
esta diversidade inserindo no retrato alguns costumes lendários
(consagram a efígie de um asno, desprezam os pais, filhos e irmãos, a
pátria e os deuses). Plínio não encontra elementos de acusação
significativos contra os cristãos, visto que tem de admitir que não se
dedicam a cometer delitos, mas antes a praticar ações virtuosas. Mesmo
assim, decide condená-los à morte porque não sacrificam ao imperador, e
esta obstinação em recusar uma coisa tão óbvia e natural estabelece sua
diversidade. Com o desenvolvimento dos contatos entre os povos, surge
uma nova forma de inimigo, que não é mais apenas aquele que está fora e
que exibe sua estranheza a distância, mas aquele que está dentro, entre
nós — hoje diríamos o imigrante extracomunitário —, que se comporta de
modo diverso ou fala mal a nossa língua e que, na sátira de Juvenal, é o
grego esperto e trapaceiro, descarado, libidinoso, capaz de levar para a
cama a avó de um amigo. Estrangeiro entre todos, e pela cor diversa, é o
negro. No verbete “Negro” da Enciclopédia Britânica, primeira edição
americana, 1798, lia-se:
Na
carnação dos negros encontramos diversas gradações, mas todos se
diferenciam igualmente dos outros homens, em todas as feições de seus
rostos. Faces redondas, zigomas altos, uma fronte levemente elevada,
nariz curto, largo e achatado, lábios espessos, orelhas pequenas, feiura
e irregularidade de forma caracterizam seu aspecto exterior. As
mulheres negras têm lombos muito cadentes e glúteos muito grandes, que
lhes dão a forma de uma sela. Os vícios mais conhecidos parecem ser o
destino desta raça infeliz: costuma-se dizer que ócio, traição,
vingança, crueldade, impudência, furto, mentira, turpilóquio,
dissolução, mesquinhez e intemperança extinguiram os princípios da lei
natural e calaram as censuras da consciência. São estranhos a qualquer
sentimento de compaixão e constituem um terrível exemplo da corrupção do
homem quando deixado à própria sorte.
O
negro é feio. O inimigo deve ser feio, pois o belo é identificado com o
bom (kalokagathia), e uma das características fundamentais da beleza
sempre foi aquilo que a Idade Média chamara de integritas (isto é, ter
tudo o que é exigido para ser um representante médio daquela espécie;
portanto, para os humanos, serão feios aqueles a quem falta um membro,
um olho, ou que têm uma estatura inferior à média ou uma cor
“desumana”). E eis que, do gigante monóculo Polifemo ao anão Mime, temos
imediatamente o modelo de identificação do inimigo. No século V d.C.,
Prisco de Pânio descreve Átila como baixo de estatura, com tórax largo e
cabeça grande, olhos pequenos, barba rala e crespa, nariz achatado e
(traço fundamental) carnação escura. Mas é curioso como o rosto de Átila
é semelhante à fisionomia do diabo, tal como é visto, mais de cinco
séculos depois, por Rodolfo Glabro: de modesta estatura, pescoço
delgado, rosto emaciado, olhos nigérrimos, testa encrespada de rugas,
nariz achatado, boca protuberante, lábios espessos, queixo estreito e
afilado, barba caprina, orelhas hirsutas e em ponta, cabelos duros e
arrepiados, dentadura canina, crânio alongado, peito protuberante, dorso
em corcunda (Crônicas, V, 2). No encontro com uma civilização ainda
desconhecida, também são desprovidos de integritas os bizantinos vistos
por Liutprando de Cremona, enviado em 968 ao encontro do imperador Otto
I, em Bizâncio (Relatório da missão diplomática em Constantinopla):
Estive
diante de Nicéforo, um ser monstruoso, um pigmeu de cabeça enorme, que
parece uma toupeira pela pequenez dos olhos, é enfeado por uma barba
curta, larga, espessa e crespa, cujo pescoço tem um dedo de comprimento
(...) um etíope na cor, “com quem não gostaríeis de topar no coração da
noite”, de ventre obeso, seco de nádegas, coxas longas demais para sua
pequena estatura, pernas curtas, pés chatos e uma roupa de camponês
gasta demais, fétida e desbotada à força do uso.
Fétido.
O inimigo sempre fede e um certo Berillon escrevia, no início da
Primeira Guerra Mundial (1915), um volume, La polychésie de la race
allemande, onde demonstrava que o alemão médio produz mais matéria fecal
do que um francês, e de odor mais desagradável. Se fedia o bizantino,
fedia o sarraceno no Evagatorium in Terrae sanctae, Arabiae et Egypti
peregrinationem, de Felix Fabri (século XV):
Os
sarracenos emitem uma horrível fedentina e por isso dedicam-se a
contínuas abluções de diversos tipos; e, como nós não fedemos, não se
importam que tomemos banho junto com eles. Mas não são tão indulgentes
com os judeus, que fedem ainda mais. (...) Assim, os malcheirosos
sarracenos ficam contentes por estar em companhia de quem, como nós, não
cheira mal.
Fediam os austríacos de Giusti (recordam “Vossa Excelência que me olha malsão / Por uma ou outra simplória gracinha”?):
Entro
e a vejo apinhada de soldados, daqueles soldados setentrionais, boêmios
e croatas trasladados, postos ali a vigiar, não mais. (...) Fiquei
atrás, que ali naquele meio; naquele magote, digo e não nego, sentiria
um ponta de receio do qual só lhe salva o seu emprego. Sentia um bafo e
um fartum de permeio: Excelência, pareciam de sebo, naquela bela casa do
Senhor, até as velas do altar-mor.
Não
pode deixar de feder o cigano, visto que se alimenta de carniça, como
ensina Lombroso (O homem delinquente, 1876, 1, II) e fede a inimiga de
James Bond, em Moscou contra 007, Rosa Klebb, não apenas russa e
soviética, mas ainda por cima lésbica:
Tatiana
abriu a porta e ainda de pé, enquanto seus olhos encaravam aquela
mulher sentada atrás de uma mesa redonda sob a luz de uma lâmpada
central, lembrou de repente onde tinha sentido aquele cheiro. Era o
cheiro do metrô de Moscou numa noite quente, perfume barato dissimulando
os eflúvios animalescos. Na Rússia, as pessoas se ensopam literalmente
de perfume, tenham ou não tomado banho, mas sobretudo quando não tomaram
(...). A porta do quarto de dormir abriu e “aquela Klebb” apareceu na
soleira (...) usava uma camisola transparente de crepe da China laranja
(...) de um corte na saia despontava um joelho enrugado, que lembrava um
coco seco e amarelado, levemente adiantado na pose clássica das modelos
(...). Rosa Klebb tinha tirado os óculos e seu rosto estava empastado
de ruge e batom (...). Em seguida, deu um tapinha no sofá a seu lado.
“Desligue a luz central, minha querida. O interruptor fica ao lado da
porta. Depois sente aqui, a meu lado. Precisamos nos conhecer melhor.”
Monstruoso
e malcheiroso, pelo menos nas origens do cristianismo, é o judeu, visto
que seu modelo é o Anticristo, o arqui-inimigo, o inimigo que não é só
nosso, mas de Deus:
Estes
são os seus traços: a cabeça é como uma chama ardente, o olho direito
injetado de sangue, o esquerdo, de um verde felino, tem duas pupilas,
suas pálpebras são brancas, o lábio inferior é grande, o fêmur direito é
fraco, os pés grandes, o polegar achatado e alongado. (Testamento
siríaco de Nosso Senhor Jesus Cristo, I, 4, séc. V)
O
Anticristo nascerá do povo dos judeus (...) da união de um pai e uma
mãe como todos os homens e não, como se diz, de uma virgem. (...) No
início de sua concepção, o diabo penetrará no útero materno, por virtude
do diabo ele será nutrido no ventre da mãe, e a potência do diabo
estará sempre com ele.
(Adso de Montier-en-Der, Sobre o nascimento e os tempos do anticristo, séc. X)
Terá
dois olhos de fogo, orelhas como as de um asno, o nariz e a boca de um
leão, pois enviará aos homens atos de loucura dos fogos mais criminosos e
as vozes mais vergonhosas da contradição, fazendo-os renegar Deus,
espalhando em seus sentidos o fedor mais horripilante, dilacerando as
instituições da igreja com a mais feroz das concupiscências; rindo num
esgar enorme, mostrando horríveis dentes de ferro. (Hildegarda de
Bingen, Liber scivias, III, 1, 14, séc. XII)
Se
o Anticristo vem do povo judaico, seu modelo não poderá deixar de
reverberar sobre a imagem do judeu, seja no antissemitismo popular, seja
no antissemitismo teológico ou no antissemitismo burguês
oito-novecentista. Comecemos com o rosto:
Têm,
em geral, o rosto lívido, o nariz adunco, os olhos encovados, o queixo
proeminente e os músculos constritores da boca fortemente pronunciados.
(...) Os judeus são, ademais, sujeitos a doenças que indicam corrupção
do sangue, como outrora a lepra e hoje o escorbuto, que lhe é afim,
escrófulas, afluxos de sangue (...), Dizem que os judeus exalam sempre
um mau cheiro (...) Outros atribuem estes efeitos ao uso frequente de
ervas de odor penetrante, como a cebola e o alho. (...) Outros ainda
dizem que é a carne de ganso, que eles apreciam muito,
que os torna lívidos e atrabiliosos, dado que é um alimento abundante em açúcares grosseiros e viscosos.
(Baptiste-Henri Grégoire, Essai sur la régénération physique, morale e politique des Juifs, 1788)
Mais tarde, Wagner complicará o retrato com aspectos fonéticos e mímicos:
No
aspecto externo do judeu encontra-se algo de estranho que, mais do que
qualquer outra coisa, repugna a esta nacionalidade; com um homem que tem
um aspecto como aquele, ninguém quer ter nada em comum (...). É
impossível para nós imaginar que um personagem da antiguidade ou dos
tempos modernos, herói ou amoroso, seja representado por um judeu, sem
que nos sintamos involuntariamente chocados com tudo o que há de
inconveniente, ou melhor, de ridículo numa representação do gênero
(...). Mas a coisa que mais nos repugna é o sotaque particular que
caracteriza a fala dos judeus (...). Nossos ouvidos são particularmente
agredidos pelos sons agudos, sibilantes, estridentes deste idioma. Os
judeus usam as palavras e a construção da frase de maneira oposta ao
espírito de nossa língua nacional (...). Ouvindo-os, mesmo sem o
desejar, prestamos mais atenção a seu modo de falar do que àquilo que
dizem. Este ponto é da maior importância para explicar sobretudo a
impressão produzida pelas obras musicais dos judeus. Ouvindo o judeu que
fala, sentimo-nos involuntariamente incomodados ao deparar-nos com um
discurso desprovido de qualquer expressão verdadeiramente humana (...). É
natural que, no canto — a mais vivaz e autêntica manifestação do
sentimento individual —, a índole judaica nos seja especialmente
detestável. Poderíamos reconhecer ao judeu uma aptidão artística, mas
para qualquer arte que não seja a do canto, que parece ter-lhe sido
negada pela própria natureza.
Hitler procede com mais graça, quase nos limites da inveja:
Nos
jovens, a roupa deve ser colocada a serviço da educação. (...) Se hoje
em dia a perfeição corpórea não tivesse sido relegada ao segundo plano
por nossa moda descuidada, centenas de milhares de moças certamente não
teriam sido seduzidas por asquerosos bastardos judeus de pernas tortas.
Do
rosto aos costumes, eis o inimigo judeu que mata criancinhas e bebe seu
sangue. Ele aparece bem cedo, por exemplo, nos Contos de Canterbury de
Chaucer, que narram a história de um menino muito parecido com São Simão
de Trento que, ao passar pelo bairro judaico entoando o Alma
Redemptoris Mater, é raptado, degolado e jogado dentro de um poço. O
judeu que mata criancinhas e bebe seu sangue tem uma genealogia muito
complexa, pois o mesmo modelo já existia na construção do inimigo
interno do cristianismo: o herege. Um único texto é suficiente:
À
noite, quando se acendem os lumes e entre nós se celebra a paixão,
conduzem a uma certa casa as donzelas que iniciaram em seus ritos
secretos, apagam os lampiões, pois não querem que a luz seja testemunha
das ignomínias que terão lugar, e desafogam a própria dissolução sobre
quem for, mesmo que seja irmã ou filha. Na verdade, ao violar as leis
divinas que vetam o conúbio com quem tem o mesmo sangue, acreditam que
estão fazendo uma coisa grata aos demônios. Encerrado o ritual, voltam
para casa e esperam que se passem nove meses: quando chega a hora em que
deviam nascer os ímpios filhos de um ímpio sêmen, congregam-se de novo
no mesmo lugar. Três dias depois do parto, arrancam os míseros filhos de
suas mães, fazem cortes em seus tenros membros com uma lâmina afiada,
recolhem em copas o sangue que jorra, queimam os recém-nascidos enquanto
ainda respiram, jogando-os numa fogueira. Em seguida, misturam as
cinzas ao sangue nas copas, obtendo uma horrível mixórdia com a qual
sujam alimentos e bebidas, escondidos como quem joga veneno no hidromel.
Esta é a sua comunhão.
Às
vezes o inimigo é percebido como diverso e feio porque é de classe
inferior. Na Ilíada, Tersites (“vesgo, manco de um pé, ombros curvos em
arco,/ esquálido, cabeça pontiaguda, calva/ à mostra, odioso para
Aquiles e Odisseu”, II, 212) é socialmente inferior a Agamemnon ou
Aquiles e, portanto, invejoso deles. Entre Tersites e o Frantis de De
Amicis a diferença é pouca, ambos feios: Ulisses golpeia o primeiro a
sangue e a sociedade enviará Franti à prisão perpétua (E. De Amicis,
Cuore, 25 de outubro):
E
a seu lado, a cara dura e triste de um que se chama Franti, que já foi
expulso de outra seção (...). Só uma pessoa poderia rir enquanto Derossi
falava dos funerais do Rei, e Franti riu. Detesto Franti. É mau. Quando
um pai vem à escola para passar uma descompostura no filho, ele se
diverte; quando alguém chora, ele ri. Treme diante de Garrone e bate no
filho do pedreiro porque é pequeno; atormenta Crossi por causa do braço
morto; debocha de Precossi, que todos respeitam; zomba até de Robetti,
da segunda, que anda de muletas por ter salvado uma criança. Provoca
quem é mais fraco que ele e, quando parte para a briga, fica furioso e
quer mesmo machucar. Tem alguma coisa que dá medo naquela testa baixa,
naqueles olhos turvos, quase escondidos sob a aba do boné de lona
encerada. Não tem medo de nada, ri na cara do professor, rouba sempre
que pode, nega na maior cara de pau, está sempre brigando com alguém,
leva alfinetes para a escola para espetar os colegas, arranca os botões
da jaqueta, da sua e da dos outros, e joga fora; tudo dele, a pasta, os
cadernos, os livros, é amassado, rasgado, sujo, a régua cheia de dentes,
a caneta comida, as unhas roídas, as roupas cheias de manchas e rasgões
feitos nas brigas (...). Às vezes, o professor até finge que não está
vendo suas estripulias, estripulias, e ele faz pior ainda. Tentou
convencê-lo com boas palavras, mas ele riu, debochado. Tentou adverti-lo
com palavras terríveis, ele cobriu o rosto com as mãos como se
estivesse chorando, e riu de novo.
Entre
os portadores de feiura devida à posição social estão obviamente o
delinquente nato e a prostituta. Mas com a prostituta já entramos num
outro universo, o da inimizade ou do racismo sexual. Para o macho que
governa e escreve, ou que escrevendo governa, desde o início a mulher
foi apresentada como inimiga. Não nos deixemos enganar pelas mulheres
angelicais, ao contrário: justamente porque a literatura maior é
dominada por criaturas doces e belas, o mundo da sátira — que é, aliás, o
do imaginário popular — demoniza a mulher constantemente, desde a
antiguidade, por toda a Idade Média e até os tempos modernos. Para a
antiguidade, limito-me a Marcial (Epigramas, 94):
Viveste
sob trezentos cônsules, Vetustila; restam-te três cabelos e quatro
dentes, tens o peito de uma cigarra, as pernas e a cor de uma formiga.
Passeias por aí uma testa que tem mais pregas que tua estola e seios
semelhantes a teias de aranha (...). Tua visão é como a das corujas de
manhã e fedes como um bode; teu traseiro é igual ao de uma pata
ressequida (...). Nesta tua vagina só o que pode penetrar ainda é a
tocha fúnebre.
E quem seria, afinal, o autor do seguinte trecho?
A
mulher é animal imperfeito, arrebatado por mil paixões desagradáveis
(...). Nenhum outro animal é menos limpo que ela: nem mesmo o porco, que
às vezes chafurda no lodo, pode vencê-las em feiura; e se alguém
tivesse a ideia de negá-lo, bastaria olhar suas partes ou procurar os
locais secretos onde elas, envergonhadas, escondem os horríveis
instrumentos que usam para extrair de si os humores supérfluos.
Se
assim pensava Giovanni Boccaccio (no Corbaccio), laico e libertino,
imaginem o que devia pensar e escrever um moralista medieval para
reiterar o princípio paulino de que, se fosse possível fazê-lo sem
queimar de ardores, melhor seria nunca conhecer os prazeres da carne.
(...)
Parece
que é impossível prescindir do inimigo. A figura do inimigo não pode
ser abolida dos processos de civilização. A necessidade é inata também
nos homens mais afáveis e amigos da paz. Nestes casos, a imagem do
inimigo é simplesmente deslocada para uma força natural ou social que
nos ameace de alguma forma e que precisa ser vencida, seja ela a
exploração capitalista, a poluição ambiental ou a fome no Terceiro
Mundo. Mas ainda que estes sejam casos “virtuosos”, como recorda Brecht,
também o ódio contra a baixeza endurece a voz. Então a ética seria
impotente diante da necessidade ancestral de ter inimigos? Posso dizer
que a instância ética não surge quando se finge que não existem
inimigos, mas quando se tenta entendê-los, colocar-se em seu lugar. Em
Ésquilo não há aversão contra os persas, cuja tragédia este vive entre
eles e do ponto de vista deles. César trata os gauleses com muito
respeito, no máximo diz que são um pouco chorões quando se rendem.
Tácito admira os germanos, considerando que têm mesmo umabela
compleição e limitando-se a lamentar sua falta de higiene e sua
relutância nos trabalhos mais árduos, pois não suportam calor e sede.
Tentar entender o outro significa destruir os clichês a seu respeito,
sem negar ou apagar sua alteridade. Mas sejamos realistas. Estas formas
de compreensão do inimigo são próprias dos poetas, dos santos e dos
traidores. Nossas pulsões mais profundas são de ordem bem diferente.
(...)
A
visão mais pessimista sobre isso vem de Sartre, em Huis clos. De um
lado, só podemos nos reconhecer a nós mesmos na presença de um Outro, e
nisto se baseiam as regras de convivência e mansuetude. Mas é mais fácil
considerar este Outro insuportável, porque simplesmente não é nós. E
assim, reduzindo-o a inimigo, construímos nosso inferno na terra. Quando
Sartre encerra três defuntos, que não se conheceram em vida, num
quarto de hotel, um deles compreende a tremenda verdade:
Você
vai ver que idiotice. Idiota como uma flor! Não tem tortura física, não
é verdade? E, no entanto, estamos no inferno, lugar de ser castigado,
né? Ninguém mais vem, vem? A gente vai ficar até o fim, só nós, juntos,
não é isso? (...) Falta o carrasco. (...) Fizeram um corte de pessoal. É
só isso. (...) Cada um de nós é o carrasco dos outros dois.
[CONFERÊNCIA
PROFERIDA NA UNIVERSIDADE DE BOLONHA, EM 15 DE MAIO DE 2008, NO ÂMBITO
DOS SARAUS SOBRE OS CLÁSSICOS, E PUBLICADA EM: IVANO DIONIGI (ORG.).
ELOGIO DELLA POLITICA. MILÃO: BUR, 2009.]
BLOG ORLANSO TAMBOSI
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