Os alertas sobre o expansionismo russo sempre foram interpretados como uma espécie de teoria da conspiração de radicais da direita. Flavio Morgenstern para a Oeste:
Quando
era candidata a vice-presidente na chapa de John McCain em 2008, uma
pouco destacada Sarah Palin foi entrevistada sobre seu conhecimento de
geopolítica, já que era vista apenas como a governadora de um Estado
pouco relevante como o Alasca. A resposta de Palin virou piada nacional:
lembrando que o Alasca faz fronteira com a Rússia, afirmou poder ver de
seu Estado natal Putin invadindo a Ucrânia. Até hoje há quem creia que a
governadora tenha afirmado que podia ver fisicamente a Rússia de sua
casa (home), mas quase ninguém se lembrou de sua declaração quando Putin
anexou a Crimeia seis anos depois.
Em um debate com o então presidente, Barack Obama, em 2012, Mitt Romney havia dito que a maior ameaça geopolítica que a América enfrentava era a Rússia.
Obama soube ganhar apoio midiático e votos rindo da declaração,
gracejando que seu adversário republicano queria uma política externa
“dos anos 1980” de volta. Seu vice-presidente era um certo Joe Biden,
então pouco conhecido no Brasil.
Quatro
anos depois, Donald Trump surpreenderia o mundo com sua campanha de
amplo apoio popular — e violentíssima reação da mídia — afirmando, já na
abertura do seu livro América Debilitada, que Vladimir Putin era um
perigo para os Estados Unidos da América e para o mundo livre — e que a
política democrata estava enfraquecendo a América e favorecendo os
planos expansionistas do novo autocrata russo. Putin foi considerado o
homem mais poderoso do mundo durante quase todos os anos da
administração Obama, que tinha em Hillary Clinton seu braço
internacional e em Joe Biden a conexão e o apoio político com o
establishment norte-americano.
Desta
vez, além de virar alvo de galhofa da mídia, seguiram-se pelo menos
dois anos de uma teoria da conspiração que é tratada até hoje como se
tivesse sido provada: que Trump havia ganhado as eleições com ajuda da
manipulação russa — logo de Putin, que era alvo do então candidato.
Seria pedir muito que a maioria dos jornalistas da grande mídia lesse
duas ou três páginas de um livro antes de emitir opiniões tão
fanatizadas. Foram apenas alguns exemplos de constantes críticas pela
direita norte-americana ao expansionismo russo, enquanto o Partido
Democrata, o complexo midiático internacional e as instituições
acadêmicas que formam a opinião pública faziam troça de tais acusações —
tal como Obama, geralmente afirmando que era uma “retórica de Guerra
Fria”.
A
Ucrânia, país pobre e debilitado, mas ao mesmo tempo muito importante
no projeto geopolítico e cultural russo, era vista como o próximo alvo
dos planos de Vladimir Putin, tal como Taiwan é a menina dos olhos da
China de Xi Jinping. Mas os alertas constantes sobre o imperialismo
russo sempre foram ouvidos pelo estamento como uma espécie de teoria da
conspiração de extrema direita ultranacionalista — exatamente a chuva de
adjetivos de forte impacto psicológico e nenhuma clareza conceitual que
foi esquecida na última semana, tão logo Putin cumpriu suas ameaças. A
concretização da geopolítica russa, afinal, é resultado do fracasso
constante da política externa democrata — de Obama, Hillary e Biden.
O fracasso da “contenção” tardia
O
ex-presidente Donald Trump adotou uma política aplicando conceitos mais
próximos da administração do que da geopolítica. Apesar das críticas ao
seu desconhecimento em geopolítica, ele cuidou de favorecer os amigos
do Ocidente, no que ficou conhecido como a política da América em
primeiro lugar (America First). Assumindo quando o Estado Islâmico
parecia trazer o fim dos tempos, conseguiu manter-se por quatro anos sem
nenhum incidente internacional digno de nota. Conseguiu inclusive
trazer Kim Jong-un para a mesa de negociações e colocou fim à guerra
civil síria, além de ter levado mais paz ao Oriente Médio com os Acordos
de Abraão.
Com
a vitória de Biden, não demorou até outras potências e grupos
opositores colocarem à prova a força do novo governo. Quando isso
ocorreu com o Trump, ele respondeu rapidamente com um bombardeio contra
bases sírias. Com Biden, o oposto tomou forma: sua política fracassou no
Afeganistão e perdeu uma guerra custosa de 20 anos. O caminho estava
aberto para que a China, a Rússia, o Irã e outros países voltassem a
avançar contra a estabilidade mundial.
Biden
também tem culpa por colocar a ideologia acima dos interesses nacionais
norte-americanos. O presidente norte-americano é um dos grandes
responsáveis por não ter Índia e Brasil alinhados de modo mais claro à
posição norte-americana, já que escolheu esnobar Narendra Modi e
Bolsonaro por serem conservadores. Ele também fez o mesmo com os países
do Golfo, cancelando vendas de produtos de defesa para a Arábia Saudita e
para os Emirados, ambos desafetos do Irã, principal aliado russo no
Oriente Médio.
Com
o atual expansionismo de Putin na Ucrânia, temos um dos mais fortes
erros geopolíticos da história norte-americana (e foram muitos
recentes). Putin faz suas mobilizações para provocar, e sempre ganha sem
precisar disparar um tiro. A Rússia, que faz fronteira com a Turquia e o
Japão, com a Finlândia e a Coreia do Norte, com a Polônia e a China, de
certa forma com o Japão e os Estados Unidos, pode realizar constantes
mobilizações militares e exercícios fronteiriços. Afinal, ainda está em
seu próprio território. Assim o fez recentemente com a Bielorrússia e a
Geórgia, com o Cazaquistão e a própria Ucrânia.
Para
o Ocidente poder mostrar seu poder de fogo de volta, precisa passar
pela via burocrática: pedidos da Otan, destacamento caríssimo de tropas,
passagem por países — não raro ditaduras —, culminando em exercícios
diminuídos e que nunca poderiam assustar alguém como Putin. Até tal
resposta aparecer, os russos já puderam fazer novos exercícios, em
outros pontos da fronteira russa que envolvem países diferentes — e todo
o processo recomeça do zero, a altíssimo custo, enquanto Putin apenas
movimenta tropas alguns quilômetros acima ou abaixo.
O
que foi testemunhado nas últimas semanas foram constantes provocações
militares, que teriam sido contidas caso houvesse um presidente forte na
Casa Branca. Joe Biden, depois de Putin já tomar cidades ucranianas com
ataques por terra, mar e ar, afirma que irá impor… sanções econômicas às regiões separatistas da República Popular de Donetsk
e da República Popular de Luhansk. Algo para o qual Putin já estava se
preparando havia anos — e trata suas tropas na região como “mantenedoras
da paz” (sic). O seu ethos é guerreiro, coletivista, não se importa com
sacrifícios de indivíduos ou tempo pensando no longo prazo. Não há como
comparar uma ameaça de “medidas econômicas severas” com Putin falando
em tons militares das “consequências nunca antes vistas” (com armas
nunca testadas em campo) do apoio à entrada da Ucrânia na Otan.
Seria preciso que os Estados Unidos tivessem realizado uma política de contenção mais robusta, como as sanções impostas por Trump ao oleoduto Nord Stream 2 —
Biden simplesmente desistiu das sanções em maio último, o que levantou
suspeitas sobre os interesses de seu filho — e também da família Clinton
— nos sistemas de energia dos países mais corruptos do Leste Europeu.
Putin logo entendeu que podia se preparar para atacar. Medidas como
esta, no tempo correto, teriam sido suficientes para evitar o atoleiro
no qual Biden se vê: todas as desvantagens de um conflito militar, que
agora é quase inevitável, sem nenhuma vantagem da contenção diplomática.
O
curioso é que a propaganda de Biden era justamente de que Putin tinha
“medo” dele (e não de Trump), porque ele seria “muito duro” com o
autocrata russo. Palavras sem espada são apenas tinta no papel. Ou no
Twitter. Hoje, tudo o que resta a Biden é prometer sanções econômicas,
que poucos dos seus aliados europeus levarão a sério, se são tão
dependentes da energia russa.
A Ucrânia no xadrez geopolítico
Vladimir
Putin sonha em criar algo digno dos grandes conquistadores da
Antiguidade: a recriação da grandeza do antigo Império Russo, mas com a
tecnologia moderna e o poder autocrata herdado da União Soviética. Este
plano busca recriar o Império original, a grande Rus, o nome original da
Rússia. A Ucrânia, ou “Pequena Rússia”,
como é chamada pelos russos, é peça-chave para o plano de Putin. Além
de muitos ucranianos serem etnicamente russos, e identificarem-se mais
com o grande e glorioso país do que com seu decadente e corrupto Estado
moderno, o antigo Império tinha em Kiev o seu centro cultural — o que é
uma questão séria para Putin.
Sem
ter uma ideologia muito precisa que unifique a sociedade a favor do seu
projeto de poder como os ditadores comunistas possuíam com o
bolchevismo comunista, seu apelo atual é para um “nacionalismo”
expansionista, no qual os antigos territórios do Império Russo serão
retomados um a um. A hegemonia cultural, militar e econômica do globo
deixará de ter na América e na Inglaterra o seu centro irradiador, e a
Grande Mãe Rússia ressurgirá como a nação capaz de salvar os pobres e
aflitos do planeta. Foi neste contexto que vimos a Ucrânia querer uma
aproximação com o Ocidente: cogitando mais um modelo liberal, pró-União
Europeia e sendo apoiada até militarmente pelo mundo livre. Cogitou se
filiar à Otan, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, o bloco de
países que se uniu justamente para frear o expansionismo militar russo
durante a Guerra Fria. Para um autocrata com um plano global como Putin,
é muito mais do que uma provokatsiya: é praticamente uma declaração de
guerra. Afinal, a “Pequena Rússia” é parte da Rússia, segundo pensa
Putin.
A
despeito das ideologias, as fronteiras atuais da Ucrânia foram
definidas pelos tratados do fim da Guerra Fria. Como os países menores
eram controlados por governos “satélites” de Moscou pela União
Soviética, o mapa atual da Ucrânia possui fronteiras artificialmente
maiores do que seu desenho histórico — o que é martelado dia e noite
pela propaganda oficial de Putin. Entre os principais alvos estão Odessa
e Sevastopol, importantes portos para a economia russa. Quando a
Ucrânia se declarou independente de Moscou de vez, em 2014, essas
regiões tornaram-se zonas de extrema tensão e conflito. E é neste ponto
em que a política externa de Biden, desastrosa em tudo, se tornou
verdadeiramente mortífera.
Memes começaram a aparecer nas redes sociais minutos depois da invasão:
A política da provokatsiya e da desinformatsiya
Putin,
homem forte da KGB e especialista em desinformatsiya, sempre soube
fazer intensa propaganda separatista na Ucrânia, sobretudo na fronteira
leste, financiando milícias, apoiando grupos rebeldes e prometendo
mundos e fundos para quem pretendesse anexar-se à Rússia. Ao mesmo
tempo, também destaca como grupos “neonazistas” aparecem no país vizinho, passando a tratar qualquer um que se oponha ao seu projeto de poder como um “nazista” ou um “racista”.
Como palavras importam em uma guerra travada antes na mídia do que no
campo de batalha, países ocidentais pisam em ovos para apoiar governos
legítimos, como o da Ucrânia. Mesmo no Brasil, até sua bandeira já foi
acusada de ser um “símbolo neonazista”, exigindo que o embaixador
ucraniano no Brasil viesse a público explicar que o símbolo do país não é “neonazista”.
Ou
seja, a desinformatsiya russa é eficiente e transcontinental. Determina
até os termos usados por jornalistas brasileiros. Enquanto isso, Putin
constantemente ganha mais espaço de manobra para destruir grupos rivais.
Tal como virou moda em republiquetas, acusa seus adversários de
nazistas, e então trata-os como se merecessem um eterno Estado de
exceção. E políticos como Obama e Biden, em vez de defender o mundo
livre, sempre pisam em ovos para lidar com as manobras do expansionismo
russo. Para eles, importa muito mais não ser chamados de “apoiadores de
nazistas” pelo complexo midiático norte-americano — e, logo, mundial —
do que lutar pelo mundo livre. Infelizmente, este modelo de política já
foi exportado para o mundo ocidental.
As possíveis consequências para o Brasil
Em
um mundo interligado, um conflito na Ucrânia não é mais assunto
distante, como a última Guerra da Bósnia. O Brasil está em uma situação
bastante peculiar: sua agropecuária alimenta boa parte do mundo, mas é
extremamente dependente de fertilizantes russos — e 49% das exportações
de gado têm como destino a China. Por isso, uma negociação com os russos
é necessária e delicada.
Além
de uma possível alta no preço dos combustíveis e do gás, em caso de um
embargo, como proposto por Biden, a Rússia provavelmente irá triangular
com a China para furar o bloqueio. A manobra aumentaria ainda mais o
poder de Xi Jinping sobre o comércio internacional. Mais um desastre da
atual política norte-americana é forçar sanções nas regiões pró-Rússia
em dólar, euro e iene. Em vez de enfraquecer o inimigo, todas essas
áreas separatistas passam a recorrer ao iuane chinês, aumentando o poder
de barganha de Pequim. O Brasil também sofre com uma China controlando
ainda mais territórios com sua moeda.
O cenário tem tudo para ser, no mínimo, péssimo para a economia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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