“A Ucrânia não tem o direito de existir como um estado independente”. O que é isto senão uma afirmação genocida? Mas genocidas são os ucranianos que não reconhecem o grande pacifista que é Putin. Maria Vieira da Silva para o Observador:
Em
16 de Janeiro de 1969, Jan Palach parou a história do mundo. Ele
autoimolou-se na frente dos tanques soviéticos que invadiram a sua
cidade, Praga. Morreu três dias depois. Tinha vinte anos. Foi o único
dissidente a pagar com a vida a sua sede de liberdade.
Palach
não foi apenas um mártir da liberdade mas também um mártir da
independência do seu país. Ele sacrificou-se contra o totalitarismo e a
opressão dos povos. Sozinho fez a resistência. O seu gesto não impediu
que o seu país fosse esmagado pelos tanques da União Soviética e de
outros países do Pacto de Varsóvia. Mas também não foi em vão. A sua
chama acendeu a revolta, em Praga e além, em 1977 e depois em 1989 com a
queda do Muro de Berlim, com a Praça Tiananmen e com a Revolução de
Veludo.
Durante
muitos anos, Jan Palach foi votado ao mais completo desprezo, quando
não “apagado”, pela fábrica internacional de ídolos facínoras, de Che
Guevara e Ho Chi Minh em diante. E quando a censura falhou, os
comunistas assumiram um cinismo do tipo pacifista, que questionava o
sentido de mudar o curso da história interrompendo o curso da vida.
Hoje,
meio século depois de Palach e trinta anos depois da dissolução do
regime soviético, encontramos o mesmo raciocínio cínico naqueles que se
sentem incomodados não por Putin ter invadido a Ucrânia, mas por
Zelensky ousar resistir-lhe. Incomoda-os a resistência ucraniana pelo
que é, uma resistência pela liberdade e pela dignidade dos povos, porque
não se encaixa no seu rígido esquema internacionalista terciário.
Querem a rendição de um povo atingido por bombas para acabar com esse
desvio irritante da história. Aborrece-os, sobretudo, que um povo “não
nosso” – os ucranianos não são os vietcongues ou palestinianos – os
coloque do lado dos “decisores da América e da Europa” (da camarilha
teria dito Marx) que farão os trabalhadores pagarem pela economia de
guerra.
Mas
de que resistência se fala? – eles estão escandalizados – não percebem
que as armas prolongam os conflitos e, portanto, causam mais mortes? Não
percebem que a continuação da guerra depende daqueles que sopram o fogo
de fora e não da resistência ucraniana, da sua determinação, do seu
desejo de liberdade? Para os pacifistas cínicos tudo depende de quem
sopra o fogo, leia-se EUA/Europa, e não de um déspota que quer
desnazificar a Ucrânia, um país soberano e presidido por um homem de
origem judaica. Paradoxal? Na verdade, não. É a repetição da história,
mas ao contrário. É o regresso a 1941, à invasão nazista, ou seja, à
grande guerra patriótica, que serviu para Estaline justificar todo o
tipo de terror e domínio sobre metade da Europa. Agora são os ucranianos
que travam uma grande guerra patriótica, e são os russos que se
comportam como nazistas, cometendo genocídio, conforme Putin deixou
claro no seu discurso pré-invasão: “a Ucrânia não tem o direito de
existir como um estado independente”. O que é isto senão uma afirmação
genocida? Mas genocidas (em que lugar no mundo foi convocada uma
manifestação para denunciar o genocídio de milhões de russos na
Ucrânia?) e nazistas são os ucranianos que não reconhecem o grande
pacifista que é Putin, que gostaria que a invasão fosse uma espécie de
passeio no parque sem resistência armada, como aconteceu em 1969 na
Checoslováquia de Jan Palach, quando os checos nem tempo tiveram para
disparar uma AK-47.
Daqui
resulta a frustração dos pacifistas cínicos por não a ter previsto. E
como não veem a hora de voltar a mergulhar o nariz nos blinis de caviar,
discorrem sobre a inutilidade e até imoralidade da resistência
ucraniana. Eles querem que Zelensky se renda e aceite o inevitável. Ou
seja, que aceite a rendição total ou a mutilação do seu país. Eles
querem que Zelensky ignore a legítima necessidade do seu povo de não se
submeter a uma ditadura, de não querer renunciar às suas liberdades
democráticas e à sua identidade. De preferir “morrer de pé do que viver
de joelhos”, sob a bota de um déspota. Então eles agarram-se
desesperados à narrativa de que esta não é uma escolha dos ucranianos,
não obstante ser feita e confirmada todos os dias pelos próprios
ucranianos. A razão é óbvia: eles não querem admitir que é esta escolha
dos ucranianos que aterroriza Putin, e antes dele todos os líderes
russos que invadiram países vizinhos para conterem impulsos liberais e
revolucionários. O Donbass ou a possível adesão da Ucrânia à NATO ou à
UE não passam de pretextos.
Mas
agora há armamento nuclear e com ele o perigo de uma guerra nuclear,
alegam, mas nem mesmo aqui conseguem pronunciar as inevitáveis
consequências lógicas que daí adviriam. Porque se confrontado com a
ameaça de um déspota que possui ogivas nucleares e poderia usá-las então
será a ameaça que governará a Ucrânia amanhã, e não há razão para
pensar que não seja a ameaça a governar a Moldávia e Letónia no dia
seguinte, a Polónia e até a Suécia e Finlândia depois e depois…
Em
1969, quando Jan Palach saiu à rua, provavelmente pensou estar a lutar
por uma causa perdida. Não estava. Os ucranianos também não estão. Podem
não ter uma perspectiva de resistência vitoriosa ao nível militar.
Porém, politicamente já ganharam. Já ganharam ao inscrever
indelevelmente o renascimento da nação ucraniana no livro da História. E
já ganharam ao encostar Putin às cordas. Ou seja, na condição de não
ter alternativas: ou ele lida com aquele que queria destruir há cerca de
um mês, ou continua com a guerra. E mesmo que no final vença a guerra,
será justamente pela presença da resistência que se verá forçado a fazer
da Ucrânia um mar de ruínas habitado por um povo que o odeia. E onde
irá ele encontrar um Quisling que aceite governar em seu nome, sabendo
que os mártires, cedo ou tarde se vingam?
Não
deixa, por isso, de causar perplexidade descobrir a nocividade de actos
que até agora foram considerados os maiores exemplos da liberdade como
dignidade humana, como princípio de civilização. Assim como não deixa de
perverso fingir que não se sabe que o amor à pátria arde, amadurece e
se consolida durante as invasões estrangeiras. Se assim não fosse,
Portugal seria apenas uma expressão geográfica, para citar Metternich.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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