O mais longo faroeste à brasileira garante que punir corruptos destrói a economia. Augusto Nunes para a Oeste:
O
faroeste à brasileira, uma das mais ousadas invenções registradas nos
13 anos em que o PT permaneceu no poder, nasceu do acasalamento de duas
singularidades assombrosas. Primeira: nada do que se vê é fictício. As
coisas se passam no mundo real, os fatos desfilam a um palmo do nariz da
plateia. Em vez de roteiristas profissionais, os caprichos do destino,
as trapaças da História e os defeitos de fabricação dos seres humanos é
que determinam o que está acontecendo ou vai acontecer. Segunda
singularidade: ao contrário do que ocorre nos velhos faroestes exibidos
na tela, nessa abjeção concebida no País do Carnaval os bandidos é que
perseguem mocinhos, xerifes ou juízes — e sempre acabam vencendo. Os
espectadores honestos que esperem sentados um happy end. Só os fora da
lei têm direito ao final feliz.
O
novo gênero foi parido pelo julgamento no Supremo Tribunal Federal que
decidiu o desfecho de “O Estupro do Caseiro”. O primeiro faroeste à
brasileira foi protagonizado por Antonio Palocci, ministro da Fazenda do
governo Lula, e Francenildo Santos Costa, contratado em 2005 para
vigiar um imóvel às margens do Lago Sul batizado de “República de
Ribeirão Preto”. O elenco de coadjuvantes incluiu o ministro Gilmar
Mendes, no papel de protetor de vilões em perigo, Jorge Mattoso, o
presidente da Caixa Econômica Federal obrigado a interpretar um
obediente bode expiatório, e o bando de assessores que se tornaram
amigos de Palocci nos tempos em que foi prefeito de Ribeirão Preto. Um
deles achou que seria uma boa ideia transformar a mansão alugada em
hospedaria, esconderijo, sala de reuniões para negócios escusos e salão
de festas animadas por garotas de programa.
Em
março de 2006, fisgado por uma CPI do Congresso instaurada para
investigar bandalheiras envolvendo casas de bingo, o gerente da mansão
confessou que Palocci era um assíduo frequentador do lugar. O ministro
jurou que nunca dera as caras por lá. Francenildo confirmou que o
figurão do governo Lula tanto era figurinha fácil que o resto da turma o
chamava de “Chefe”. Decidido a garantir o triunfo da mentira, Palocci
resolveu perseguir quem contara a verdade. Achou que viraria o jogo
quando alguém lhe soprou que o caseiro estava enredado em “movimentações
financeiras atípicas”. Imediatamente, convocou Jorge Mattoso e
ordenou-lhe que estuprasse o sigilo da conta de Francenildo na Caixa
Econômica Federal. Buscava o quilômetro zero do caminho da salvação.
Encontrou a trilha que levava ao penhasco.
Nada
havia de errado com Francenildo. O dinheiro cuja origem parecia
suspeita fora depositado pelo pai biológico na conta do filho que nunca
reconheceu. A vítima do estupro perdeu o posto de caseiro, demorou anos
para conseguir trabalho e ainda espera a indenização estabelecida pela
Justiça. No faroeste à brasileira, contar a verdade é pecado grave.
Inserido no currículo, pode resultar no desemprego eterno. Mas o
amadorismo do elenco em ação nesse tiroteio impediu que todos os
culpados escapassem incólumes. Depois de estacionar no Supremo Tribunal
Federal durante três anos, o processo foi julgado em agosto de 2009. O
relator Gilmar Mendes culpou Mattoso pela execução do estupro
encomendado por Palocci e, numa acrobacia espantosa, absolveu o réu que o
encomendara. Apadrinhado pela maioria dos ministros, nasceu no Pretório
Excelso o crime encomendado sem mandante. Graças a essa brasileirice
cafajeste, um culpado recuperou o status de inocente. Mas continuou
longe do Planalto: condenado pelo Brasil decente, o homem promovido por
Lula a “maior ministro da Fazenda da história” regressara à planície em
abril de 2006.
Para
desconsolo do país que presta, os participantes do faroeste inaugural
melhoraram perigosamente o desempenho nos anos seguintes — e a eles se
juntaram produtores, diretores e atores que não deixam soltos fios
desencapados, capricham no script, corrigem pequenas imperfeições e
foram dispensados ainda no berçário do sentimento da vergonha. O elenco
ficou melhor por recrutar o que há de pior na Praça dos Três Poderes. O
atrevimento insolente removeu os limites da imaginação. Como atestam os
mais recentes episódios da série “Só os perversos condenam”, que revê a
Operação Lava Jato pelo olhar da bandidagem, a realidade brasileira pode
ser infinitamente mais assombrosa que a ficção produzida por mentes sem
freios. Perseguir defensores da lei, por exemplo, hoje é muito pouco,
quase o mesmo que nada. Castigar juízes, procuradores e policiais
envolvidos na Lava Jato tornou-se tão rotineiro quanto duelos
motorizados em filmes de ação. O ano eleitoral requer piruetas muito
mais atrevidas. É hora de canonizar canalhas, louvar larápios, eleger
abjeções, venerar vigaristas, estreitar relações com oportunistas
convertidos. É hora de infernizar a vida de quem se atreveu a provar que
a lei pode valer igualmente para todos, que há lugar na cadeia também
para delinquentes estrelados, até para presidentes da República que
asseguraram um capítulo de bom tamanho na História Nacional da Infâmia.
Lula
é o Marlon Brando do faroeste pelo avesso. Para escapar de perguntas
sem resposta, não conversa com jornalistas independentes desde dezembro
de 2005. Para escapar de confrontos verbais desmoralizantes, quer
distância de debates eleitorais na TV. “Falta tempo para mostrar
programas de governo”, mente. Fugitivo de plateias não domesticadas
desde a abertura dos Jogos Pan-Americanos de 2007, quando foi chicoteado
pela mítica vaia do Maracanã, quer fazer campanha sem sair de casa.
“Quero evitar o risco de atentados”, mente de novo. Mentem em louvor do
farsante sem remédio os devotos da seita que aboliu o pecado, juristas
para os quais não existem crimes nem criminosos do lado de baixo do
Equador, ministros do Supremo que prendem inocentes e soltam ladrões da
classe executiva e chefões do PCC, candidatos a vice que aposentam a
honradez por sonharem com a antecipação da visita da Indesejada das
Gentes ao gabinete que cobiçam. E, entre tantos outros viventes com
defeito de fabricação, mente por Lula a turma que faz bonito no faroeste
à brasileira.
Neste
começo de 2022, em livros, páginas de jornais agonizantes ou na
internet, sabujos patológicos tentam debitar na conta da Lava Jato o
acidente ocorrido numa linha em construção do metrô de São Paulo, a taxa
de desemprego, o preço da gasolina e todos os problemas da economia
brasileira. A Lava Jato destruiu as grandes empreiteiras, recitam os
discípulos do mestre Mariz. Se o dinheiro já foi roubado, de que adianta
prender os gatunos? Se a propina já foi paga, por que engaiolar
corruptores e corrompidos? Caso o Código Penal prescrevesse uma hora de
cadeia para cada erupção de cinismo sórdido, nenhum integrante do bando
que prospera com o faroeste à brasileira escaparia da prisão perpétua.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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