MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sexta-feira, 4 de março de 2022

A bandidagem derrota os xerifes

 



O mais longo faroeste à brasileira garante que punir corruptos destrói a economia. Augusto Nunes para a Oeste:


O faroeste à brasileira, uma das mais ousadas invenções registradas nos 13 anos em que o PT permaneceu no poder, nasceu do acasalamento de duas singularidades assombrosas. Primeira: nada do que se vê é fictício. As coisas se passam no mundo real, os fatos desfilam a um palmo do nariz da plateia. Em vez de roteiristas profissionais, os caprichos do destino, as trapaças da História e os defeitos de fabricação dos seres humanos é que determinam o que está acontecendo ou vai acontecer. Segunda singularidade: ao contrário do que ocorre nos velhos faroestes exibidos na tela, nessa abjeção concebida no País do Carnaval os bandidos é que perseguem mocinhos, xerifes ou juízes — e sempre acabam vencendo. Os espectadores honestos que esperem sentados um happy end. Só os fora da lei têm direito ao final feliz.

O novo gênero foi parido pelo julgamento no Supremo Tribunal Federal que decidiu o desfecho de “O Estupro do Caseiro”. O primeiro faroeste à brasileira foi protagonizado por Antonio Palocci, ministro da Fazenda do governo Lula, e Francenildo Santos Costa, contratado em 2005 para vigiar um imóvel às margens do Lago Sul batizado de “República de Ribeirão Preto”. O elenco de coadjuvantes incluiu o ministro Gilmar Mendes, no papel de protetor de vilões em perigo, Jorge Mattoso, o presidente da Caixa Econômica Federal obrigado a interpretar um obediente bode expiatório, e o bando de assessores que se tornaram amigos de Palocci nos tempos em que foi prefeito de Ribeirão Preto. Um deles achou que seria uma boa ideia transformar a mansão alugada em hospedaria, esconderijo, sala de reuniões para negócios escusos e salão de festas animadas por garotas de programa.

Em março de 2006, fisgado por uma CPI do Congresso instaurada para investigar bandalheiras envolvendo casas de bingo, o gerente da mansão confessou que Palocci era um assíduo frequentador do lugar. O ministro jurou que nunca dera as caras por lá. Francenildo confirmou que o figurão do governo Lula tanto era figurinha fácil que o resto da turma o chamava de “Chefe”. Decidido a garantir o triunfo da mentira, Palocci resolveu perseguir quem contara a verdade. Achou que viraria o jogo quando alguém lhe soprou que o caseiro estava enredado em “movimentações financeiras atípicas”. Imediatamente, convocou Jorge Mattoso e ordenou-lhe que estuprasse o sigilo da conta de Francenildo na Caixa Econômica Federal. Buscava o quilômetro zero do caminho da salvação. Encontrou a trilha que levava ao penhasco.

Nada havia de errado com Francenildo. O dinheiro cuja origem parecia suspeita fora depositado pelo pai biológico na conta do filho que nunca reconheceu. A vítima do estupro perdeu o posto de caseiro, demorou anos para conseguir trabalho e ainda espera a indenização estabelecida pela Justiça. No faroeste à brasileira, contar a verdade é pecado grave. Inserido no currículo, pode resultar no desemprego eterno. Mas o amadorismo do elenco em ação nesse tiroteio impediu que todos os culpados escapassem incólumes. Depois de estacionar no Supremo Tribunal Federal durante três anos, o processo foi julgado em agosto de 2009. O relator Gilmar Mendes culpou Mattoso pela execução do estupro encomendado por Palocci e, numa acrobacia espantosa, absolveu o réu que o encomendara. Apadrinhado pela maioria dos ministros, nasceu no Pretório Excelso o crime encomendado sem mandante. Graças a essa brasileirice cafajeste, um culpado recuperou o status de inocente. Mas continuou longe do Planalto: condenado pelo Brasil decente, o homem promovido por Lula a “maior ministro da Fazenda da história” regressara à planície em abril de 2006.

Para desconsolo do país que presta, os participantes do faroeste inaugural melhoraram perigosamente o desempenho nos anos seguintes — e a eles se juntaram produtores, diretores e atores que não deixam soltos fios desencapados, capricham no script, corrigem pequenas imperfeições e foram dispensados ainda no berçário do sentimento da vergonha. O elenco ficou melhor por recrutar o que há de pior na Praça dos Três Poderes. O atrevimento insolente removeu os limites da imaginação. Como atestam os mais recentes episódios da série “Só os perversos condenam”, que revê a Operação Lava Jato pelo olhar da bandidagem, a realidade brasileira pode ser infinitamente mais assombrosa que a ficção produzida por mentes sem freios. Perseguir defensores da lei, por exemplo, hoje é muito pouco, quase o mesmo que nada. Castigar juízes, procuradores e policiais envolvidos na Lava Jato tornou-se tão rotineiro quanto duelos motorizados em filmes de ação. O ano eleitoral requer piruetas muito mais atrevidas. É hora de canonizar canalhas, louvar larápios, eleger abjeções, venerar vigaristas, estreitar relações com oportunistas convertidos. É hora de infernizar a vida de quem se atreveu a provar que a lei pode valer igualmente para todos, que há lugar na cadeia também para delinquentes estrelados, até para presidentes da República que asseguraram um capítulo de bom tamanho na História Nacional da Infâmia.

Lula é o Marlon Brando do faroeste pelo avesso. Para escapar de perguntas sem resposta, não conversa com jornalistas independentes desde dezembro de 2005. Para escapar de confrontos verbais desmoralizantes, quer distância de debates eleitorais na TV. “Falta tempo para mostrar programas de governo”, mente. Fugitivo de plateias não domesticadas desde a abertura dos Jogos Pan-Americanos de 2007, quando foi chicoteado pela mítica vaia do Maracanã, quer fazer campanha sem sair de casa. “Quero evitar o risco de atentados”, mente de novo. Mentem em louvor do farsante sem remédio os devotos da seita que aboliu o pecado, juristas para os quais não existem crimes nem criminosos do lado de baixo do Equador, ministros do Supremo que prendem inocentes e soltam ladrões da classe executiva e chefões do PCC, candidatos a vice que aposentam a honradez por sonharem com a antecipação da visita da Indesejada das Gentes ao gabinete que cobiçam. E, entre tantos outros viventes com defeito de fabricação, mente por Lula a turma que faz bonito no faroeste à brasileira.

Neste começo de 2022, em livros, páginas de jornais agonizantes ou na internet, sabujos patológicos tentam debitar na conta da Lava Jato o acidente ocorrido numa linha em construção do metrô de São Paulo, a taxa de desemprego, o preço da gasolina e todos os problemas da economia brasileira. A Lava Jato destruiu as grandes empreiteiras, recitam os discípulos do mestre Mariz. Se o dinheiro já foi roubado, de que adianta prender os gatunos? Se a propina já foi paga, por que engaiolar corruptores e corrompidos? Caso o Código Penal prescrevesse uma hora de cadeia para cada erupção de cinismo sórdido, nenhum integrante do bando que prospera com o faroeste à brasileira escaparia da prisão perpétua.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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