Tem de ser estatal? Em artigo publicado pela Veja, Fernando Schüler responde à pergunta:
Sou
da época em que o aeroporto era tido como “setor estratégico” e, por
causa disso, tinha de ser estatal. Nunca entendi aquilo direito. Uma vez
perguntei a um defensor da tese, isso lá pelos anos 1990, e ele me
respondeu: “Pelo controle dos voos; só militar pode cuidar disso”, e
encerrou o assunto. Achei esquisito, mas tinha lá sua lógica. Risco de
ataque terrorista, risco de o cara dormir no ponto e os aviões se
chocarem. Alguma coisa nessa linha.
O
mesmo valia para o saneamento básico, para as estradas e os portos.
“Porto é área de segurança nacional!” Até hoje leio essas certezas, com
ponto de exclamação e tudo, em publicações de sindicatos. Hoje tudo isso
soa meio paleolítico, mas foram essas ideias que por muito tempo
pautaram, e de certo modo ainda pautam, a nossa visão sobre o papel do
Estado na economia e na sociedade.
São
ideias que vêm de longe. No mínimo dos anos 1930, com Getúlio, e depois
a partir de 1964, com nossa segunda longa ditadura. Jorge Caldeira,
talvez com exagero, chama Roberto Campos, que comandou a reorganização
do Estado nos primeiros anos do golpe, de “o maior estatizador da
história do Brasil”. Difícil disputar com Geisel. No conjunto, os
militares de 64 acrescentaram 10% do PIB à carga tributária brasileira.
E
entregaram o país quebrado. O resultado foi a década perdida de 80,
quando conseguimos piorar mais as coisas, na Constituição de 1988. Ela
foi ótima para a democracia. Consolidou o estado de direito, mas foi
péssima no modelo de gestão. Gerou uma enorme burocracia pública, deu
estabilidade no emprego a todo o funcionalismo, e por aí vai.
Nos
anos 1990 ensaiamos uma bela reforma do Estado, sob a batuta do
ministro Bresser Pereira. Descobrimos uma coisa simples: o que é público
não precisa ser estatal. Descobrimos que o Estado não precisa fazer
tudo, mas o essencial: ser um bom regulador, assegurar respeito aos
direitos das pessoas e bons serviços públicos, ainda que não geridos
pela máquina pública.
E
aí as coisas começaram a acontecer. O governador Mário Covas chamou
boas instituições hospitalares de São Paulo e disse uma coisa simples:
são vocês que sabem administrar hospitais, não o governo. Surgiram as
organizações sociais de saúde, que hoje comandam alguns dos melhores
hospitais públicos do país, como o Instituto do Câncer do Estado de São
Paulo. Depois fomos adiante. Descobrimos que os hospitais do SUS não só
não precisavam ser estatais, como podiam dar lucro. Foi o que fez o
governo da Bahia, comandado pelo PT, com o modelo das PPPs, tendo como
primeira unidade o premiado Hospital do Subúrbio, em Salvador.
Tempos
atrás achei graça na tagarelice sobre a “privatização do SUS”, que
surgiu com um decreto do governo autorizando estudos sobre “parcerias
com o setor privado” na saúde. Exemplo perfeito da maluquice nacional.
Mais de 60% das unidades de saúde da capital paulista já são geridas por
organizações sociais privadas. Ainda agora, em meio à pandemia, foi o
setor privado que aportou mais de 180 milhões de reais para a construção
da Fábrica de Vacinas, do Butantan. No Brasil é assim. O mundo real
parece andar à frente da retórica política.
Fomos
aprendendo mais. Aprendemos que parques ambientais não precisavam ser
estatais. Nosso primeiro grande exemplo foi o Parque do Iguaçu, no
Paraná, concedido à gestão privada no fim dos anos 90. Estudo do TCU
mostrou que, entre 2013 e 2016, o parque remunerou o Instituto Chico
Mendes (ICMBio) em mais de 76 milhões de reais. O ICMBio é a autarquia
federal que cuida de mais de 300 reservas ambientais brasileiras. Além
de melhorar a gestão, cada nova concessão faz crescer a capacidade do
governo para investir nos parques com menos atratividade econômica.
Os
exemplos poderiam se multiplicar. Quando as pessoas vão a um concerto
da Osesp ou da Filarmônica de Minas Gerais, assistem a um espetáculo na
Pedreira Paulo Leminski, em Curitiba, visitam a Pinacoteca do Estado de
São Paulo ou o Museu do Amanhã, no centro do Rio de Janeiro. Ou ainda
quando saem para andar de bicicleta no Parque Ibirapuera, ou para jantar
no Embarcadero, a novíssima concessão feita no antigo Porto de Porto
Alegre, elas talvez não percebam, mas estão em lugares onde o governo
deu certo. Deu certo porque soube produzir uma saudável divisão de
trabalho. Na expressão consagrada de David Osborne, o governo decidiu
navegar em vez de remar. Definiu grandes metas e ofereceu segurança
jurídica para que o setor privado investisse. E a partir daí as coisas
engrenaram.
E
a educação? Tem de ser estatal? Se já sabemos que os aeroportos não
precisam, que o saneamento básico, as orquestras, os hospitais e os
parques ambientais não precisam, por que deveria ser diferente com as
escolas? Não precisa. É só mais um tabu brasileiro. E de um tipo
perverso, visto que os mais ricos há muito já se “autoprivatizaram”,
colocando suas crianças em boas escolas particulares. Presos ao
monopólio da escola estatal só ficam os mais pobres.
Exemplo
de que as coisas não precisam ser assim é um programa muito pouco
pesquisado no Brasil, o Prouni, que é possivelmente o maior programa de
voucher educação do planeta. Nem Milton Friedman, o herói do
liberalismo, teria pensando coisa melhor. Pesquisa recente do Ipea
mostrou que os alunos que receberam bolsa integral, de famílias com
renda per capita de até 1,5 salário mínimo, tiveram nota média 10 pontos
superior no Enade à dos não bolsistas, que incluem os alunos de
universidades públicas.
O
modelo traduz a mudança de cabeça que precisa acontecer: o governo não
gera burocracia, deixa o setor privado fazer a gestão, financia
diretamente os alunos, que de quebra recebem o direito de escolher onde
estudar. O mesmo direito que seus colegas mais ricos sempre tiveram.
A
verdade é que há muita iniciativa inovadora e que vem dando certo no
Brasil. E é nelas que devemos prestar atenção. Elas surgem quando o
governo tira sua mão pesada do jogo. Criam regras claras, permitem que
as pessoas trabalhem, passam a custar menos e mudam o foco: mais atenção
aos cidadãos e menos às velhas corporações que sempre estiveram no
comando. De forma que me permito, escrevendo este artigo, algum
otimismo. Se soubermos direcionar nosso olhar para o que nós mesmos
construímos de melhor, nesses anos todos, descobriremos o caminho a
seguir.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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