Temos consciência de nossa estagnação,mas tudo indica que não queremos sair dela. Artigo do professor Bolívar Lamounier para o Estadão:
"Durante
anos, puseram-se a fitar a superfície do mar. Aí, resolveram atirar-se à
sua última ousadia: ir aos confins do mundo, para ver o abismo.
Partiram em viagem, num barco muito pequeno. Entendiam como um sinal de
esperança o fato de as aves marinhas seguirem o barco até mar alto”.
Werner Herzog
Dias
atrás (9/6), o presidente argentino, Alberto Fernández, causou revolta
ao afirmar: “Os mexicanos saíram dos índios, os brasileiros saíram da
selva, mas nós, os argentinos, chegamos em barcos”. Essa declaração foi
feita em entrevista ao lado do primeiro-ministro da Espanha, Pedro
Sánchez.
Em
sua inoportuna e disparatada comparação, ao afirmar que seu povo veio
para a América do Sul “em barcos”, o presidente argentino omitiu um
detalhe importante. Esqueceu-se de que a Argentina se destaca no mundo
inteiro como o país que durante décadas e décadas mais cedeu a atração
fatal do retrocesso. A atração pelo abismo. Tendo praticamente chegado
ao Primeiro Mundo, fez questão de regredir ao subdesenvolvimento. Não
sob a pressão de algum fator externo, como uma guerra, ou de alguma
catástrofe natural, mas movido apenas por seus desacertos domésticos,
regrediu e acomodou-se à pobreza comum em nosso triste Hemisfério.
Mas
abstenha-se o roto de rir do esfarrapado. Também no Brasil a atração
pelo abismo existe e se manifesta de forma notavelmente sistemática.
Temos consciência de nossa estagnação, mas tudo indica que não queremos
sair dela.
Nosso
desempenho no combate à covid-19 é bem menos que mediano. Tratada com
indiferença nas primeiras semanas, a “gripezinha” já ceifou cerca de 500
mil vidas. Temos alguns bons laboratórios e um excelente serviço de
atendimento – o SUS –, mas sem os insumos que o resto do mundo
relutantemente nos fornece o que eles podem fazer é pouco. Pior ainda é o
bate-boca diário entre as autoridades governamentais – encabeçadas pelo
sr. Jair Bolsonaro – e os agentes de saúde – médicos, enfermeiros e
outros – que se expõem diretamente aos riscos dessa terrível emergência.
No
âmbito das elites, públicas e privadas, querelas rigorosamente
desprovidas de conteúdo sucedem-se dia após dia, levando o cidadão comum
a supor que são apenas uma ópera-bufa concebida para ocultar a
apropriação do público pelo privado. Falar de corrupção é chover no
molhado. A verdade nua e crua é que os integrantes da atual geração
política parecem ignorar a urgência das tarefas que lhes são afeitas, a
missão que juraram cumprir e até os elementos litúrgicos que lhes
incumbe observar. Na hora atual, o que mais vemos é a esgrima
pré-eleitoral, a mais de um ano da data prevista para o pleito.
A
incapacidade de sustentar políticas econômicas racionais remonta, no
mínimo, ao ciclo militar, notadamente ao “crescimento em marcha forçada”
projetado pelo governo do general Ernesto Geisel. A única exceção a
fazer é a contenção da inflação, levada a cabo pelos governos Itamar
Franco e Fernando Henrique Cardoso. Comentar os seis anos da sra. Dilma
Rousseff é perda de tempo. Na área educacional, a insensibilidade que
sucessivos governos têm demonstrado beira o inexplicável. No atual
governo, é cabível duvidar se o presidente da República já escolheu um
ministro para a pasta. Acrescento, por dever de ofício, que nosso
sistema político – em particular o sistema partidário - já de há muito
adentrou o escorregadio terreno da galhofa. Assim, o que nos resta é
exaltar nossa posição como “uma das maiores economias do mundo”, um
biombo para o retrocesso.
Infelizmente,
depois da comédia geralmente vem a tragicomédia, que por sua vez
costuma anteceder a tragédia. A imprensa não se cansa de falar em golpe,
e não é por falta de assunto. No que se refere às Forças Armadas, temos
a segurança do artigo 142, que as define como “instituições nacionais
permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na
disciplina”, tendo como destinação “a defesa da Pátria, a garantia dos
poderes constitucionais e da lei e da ordem”. Mesmo assim, vez por outra
surgem motivos de preocupação. O número de oficiais da ativa recrutados
pelo presidente Jair Bolsonaro para funções na administração não tem
precedente em nossa História. Pior ainda, vimos outro dia o ex-ministro
da Saúde, general Eduardo Pazuello, participar de uma bizarra
demonstração política ao lado do presidente da República. Episódio,
convenhamos, só aceitável nas mais infelizes republiquetas deste
Hemisfério.
As
aparências podem enganar, mas nem sempre enganam. Cá da planície,
tentando entender o que se passa em Brasília, o que muitos leigos julgam
enxergar é um negaceio entre o sr. Bolsonaro e o Exército, ambos se
movendo taticamente no ringue, cada um esperando a hora de assestar um
golpe decisivo. O leigo não tem culpa, porque, na verdade, todos os
golpes se parecem. Começam com arruaças, evoluem (ou involuem) para a
convulsão social e, cedo ou tarde, desembocam na violência. E os atores
do drama, como sói acontecer, consolados, contemplam as aves marinhas
que os acompanham até mar alto.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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