Neta de sobreviventes polacos do Holocausto, Judy Batalion resgata os feitos das mulheres judias que lutaram contra os nazis. O Observador pré-publica "As Resistentes", nas livrarias a partir do dia 22.
Esconderam
revólveres dentro de pães, mensagens codificadas nos seus cabelos,
ajudaram a construir sistemas de bunkers subterrâneos e esconderam
milhares em refúgios seguros. No total, os alemães criaram mais de 400
guetos na Polónia, com o objetivo de dizimar a população judaica
através da doença e da fome, e concentrar os judeus de modo a serem
transportados com facilidade até campos de trabalho e de extermínio.
“Para eles”, escreveu Renia Kukielka, “matar uma pessoa era mais fácil
do que fumar um cigarro”.
Neta
de sobreviventes polacos do Holocausto, Judy Batalion guia-nos por 1939
e resgata os feitos das mulheres judias que arriscaram a sua vida a
viajar, a pé ou de comboio, num território ocupado e por entre uma
sinistra operação maciça, tornando-se o coração de uma vasta rede que
lutou contra os nazis.
Foram
incríveis contrabandistas, espias, sabotadoras, “As Resistentes”, em
suma, cujos trajetos ímpares são recordados nesta edição da Crítica, que
chega às livrarias no próximo dia 22 e que o Observador pré-publica.
Capítulo 4
Ver mais uma manhã – terror no gueto
Renia
ABRIL DE 1940
Embora
sendo verdade que os horrores do Holocausto evoluíram como uma série
de pequenos passos, cada um deles uma ligeira escalada em relação ao
precedente, uma acumulação no sentido do genocídio em massa, para
Renia, o terror do princípio da guerra dividiu de modo irreparável a
sua vida entre um «antes» e um «depois». O emprego que conseguira no
secretariado do tribunal desapareceu, as suas esperanças para o futuro
desvaneceram‐se. A sua vida ficou virada do avesso.
Em
1940, aprovaram‐se decretos atrás de decretos em comunidades por toda a
Polónia, incluindo a minúscula aldeia de Jędrezejów. Estas novas
regras tinham como objetivo apontar, humilhar e enfraquecer os judeus. E
também identificá‐los. Os alemães não sabiam diferenciar um polaco
de um judeu, por isso, Renia e todos os judeus com mais de dez anos
estavam obrigados a usar uma faixa branca com a estrela de David a azul
no cotovelo. Se a faixa estivesse suja ou se a sua largura fosse
incorreta podiam ser punidos com a morte. Os judeus tinham de tirar o
chapéu quando se cruzavam com nazis; não podiam caminhar pelos
passeios. Renia assistia, agoniada, às propriedades dos judeus a serem
confiscadas e oferecidas a folksdeutsche: polacos com uma ascendência
em parte alemã que se candidatavam a essa elevada posição. De
repente, escreveu, os polacos mais pobres tornaram‐se milionários e os
judeus tornaram‐se criados nas suas casas, obrigados a pagar renda e a
ensinar os folksdeutsch a gerir as suas anteriores mansões. Então, as
famílias judaicas foram pura e simplesmente expulsas, tornando‐se
mendigos nas ruas. As suas lojas foram ocupadas. Os seus pertences,
sobretudo ouro, peles, joias e valores que tinham conseguido esconder
nos jardins ou debaixo de tijoleiras soltas na cozinha, foram
confiscados. Leah confiou a sua máquina de costura Singer e os
candelabros a um vizinho, para que os guardasse. Renia via polacos
espreitar pelas janelas enquanto passeavam pela povoação, a fantasiar
sobre o que mais poderia vir a pertencer‐lhes.
Em
abril estabeleceu‐se compulsivamente um «bairro judeu», uma iniciativa
que muitos judeus esperavam que os protegesse. A família de Renia –
exceto Sarah, que já se juntara a um kibbutz do Liberdade, e Zvi, que
fugira para a Rússia – foi notificada de que dispunha de dois dias para
transferir as suas vidas inteiras até a uma área a poucos
quarteirões da praça central: um lugar esquálido de pequenas casas
baixas e estreitos becos que anteriormente albergara a escumalha da
povoação. Tiveram de abandonar mobílias, bens – quase tudo menos uma
pequena sacola e alguma roupa de cama. Há relatos de mães que não
dormiram toda a noite a empacotar coisas, os filhos a correrem para lá e
para cá, a levar tudo o que podiam transportar às costas ou em
cestos: roupa, comida, panelas, animais de estimação, sabão, casacos,
calçadeiras, materiais de costura e outros meios de ganhar a vida.
Joias escondidas foram coladas a corpos. Uma pulseira de ouro foi cosida
na manga de uma camisola. Dinheiro foi escondido em massa de biscoitos e
levado ao forno.
A
sobrelotação era insuportável. Cada apartamento alojava várias
famílias, as pessoas dormiam no chão ou em catres improvisados – Renia
dormia em cima de um saco de farinha. Chegava a haver 50 pessoas
amontoadas numa pequena casa. As raras fotografias disponíveis de
habitações no gueto mostram diversas famílias a partilhar o
santuário de uma sinagoga, filas de irmãos a dormir no bimah ou
debaixo dos bancos. As pessoas mal tinham espaço para esticar os
braços ou as pernas. O espaço pessoal não existia. Por vezes, as
pessoas tinham a sorte de conhecer alguém que morava na área do gueto e
mudavam‐se para casa desse amigo ou familiar; a maior parte, no
entanto, coabitava com estranhos, muitas vezes com hábitos distintos.
Judeus das aldeias circundantes e de classes sociais diferentes eram
obrigados a habitar juntos, aumentando a tensão, introduzindo uma
disrupção na normalidade da ordem social.
Em 1940, aprovaram‐se decretos atrás de decretos em comunidades por toda a Polónia, incluindo a minúscula aldeia de Jędrezejów, na foto. Estas novas regras tinham como objetivo humilhar os judeus |
Mesmo
que as pessoas comprassem mobílias, não havia espaço para
colocá‐las. As camas improvisadas desmontavam‐se durante o dia para
deixar espaço para as lavagens e as refeições; as roupas ficavam
penduradas em pregos espetados nas paredes; pequenas celhas eram usadas
para lavar partes do corpo e a roupa suja, que secava nos telhados dos
vizinhos. Empilhavam‐se mesas e cadeiras no exterior. À medida que as
semanas se arrastavam, a família de Renia utilizava os restos da sua
antiga vida como lenha. As chamas consumiam coisas que tinham sido
essenciais.
No
total, os alemães criaram mais de 400 guetos na Polónia, com o
objetivo de dizimar a população judaica através da doença e da fome,
e concentrar os judeus de modo a serem arrebanhados e transportados com
facilidade até campos de trabalho e de extermínio. Era uma operação
maciça, e cada gueto apresentava regulamentações e qualidades um
tudo‐nada diferentes, dependendo da cultura judaica local, do governo
nazi local, da situação geográfica e da liderança interna. Mesmo
assim, muitos elementos da política dos guetos seguiam o mesmo padrão
em todo o país, de remotas povoações até aldeias ainda mais remotas,
incluindo o encarceramento.
Ao
princípio, os Kukiełka estavam autorizados a sair do gueto para
trabalhar e comprar comida; do mesmo modo, os polacos podiam passar os
portões e levar pão para trocar por valores. Mas não tardou que o
acesso fosse vedado em todos os guetos. Os judeus só podiam sair com
uma autorização emitida pelo Judenrat. A partir de 1941, todo o
movimento através da fronteira dos guetos, para polacos ou judeus,
passou a ser proibido. Uma barreira física selava uma parte da área,
um rio outra. Até que tentar sair significava nada menos que uma
execução sumária.
Renia
vestia camada de roupa por cima de camada de roupa: meias, mais um par,
um vestido por cima de outro, grosso como os que as camponesas polacas
envergavam. Esther usava dois casacos e um lenço. Às apalpadelas no
escuro, Bela ajudava a prender as roupas da irmã antes de enfiar
várias camisas dobradas debaixo do cós da saia, para fingir uma
barriga de grávida. Todas escondiam pequenos artigos nos bolsos, tecido
dentro de tecido; um palimpsesto de mercadoria e disfarce, tudo no
corpo. Era assim, recordava Renia a si mesma, que podia ajudar a mãe, o
irmão pequeno, a família.
Por
um segundo, a adolescente voava para uma terra distante – que na
realidade ficava apenas a poucos quilómetros de distância e a alguns
meses no passado –, antes de a sua vida de classe média se ter
desintegrado. Devaneava sobre como a mãe, uma força da natureza, se
ocupava de tudo: cozinhava, limpava, geria o dinheiro. As vizinhas
polacas dirigiam‐se a Leah, incrédulas: «Como consegues vestir sete
filhos com aquilo que ganhas e fazê‐los parecer tão ricos?» Em
iídiche, Leah era uma balabasta: uma prodigiosa fada do lar que tinha
sempre uma casa cheia de filhos bem‐educados e bem comportados e
respetivos amigos, e toda‐ via miraculosamente limpa e arrumada. E ela
tinha sempre as suas respostas prontas: «Comprem roupas caras porque
duram. E então passem‐nas de uns para os outros. E deem a cada criança
um par de sapatos feitos por encomenda… um tamanho acima. Espaço para
crescer.»
Aquilo
que se vestia, a maneira como se usava. Agora, as raparigas utilizavam
tudo ao mesmo tempo como roupa e modo de vida. Eram quase nove da noite –
horas de ir. Acenaram um rápido adeus, e juntas caminharam pela rua e
saíram do gueto. Renia nunca revelou como saía daquele gueto, mas
talvez subornasse um guarda, se esgueirasse por uma ripa ou grade solta,
trepasse um muro, passasse por uma cave ou um telhado. Tudo isto eram
meios que os contrabandistas – na sua maioria‐ mulheres – usavam para
entrar e sair dos lugares onde estavam confinados os judeus da Polónia.
Porque,
com frequência, eram apanhados nas ruas, os homens ficavam em casa. As
mulheres, das mais pobres às da alta sociedade, tornaram‐se as
abastecedoras. Vendiam cigarros, soutiens, objetos de arte, por vezes o
próprio corpo. Era também mais fácil para as crianças escapulirem‐se
do gueto para procurar comida. Os guetos criaram toda uma cascata de
inversão de papéis.
As
irmãs Kukiełka chegaram à aldeia e começaram a percorrer as ruas.
Enquanto caminhava a passo estugado, Renia pensava em como costumava ir
com a mãe à padaria todas as sextas‐feiras comprar biscoitos das mais
variadas cores e feitios. Agora, cartões de racionamento para o pão:
dez decagramas por dia ou um quarto de uma pequena carcaça. Vender pão
além da quantidade e preço autorizados significava execução.
Aproximou‐se
de uma casa. Cada passo era um risco. Quem estaria a vê‐la ali de pé?
Polacos? Alemães? Membros da milícia? Quem abrisse a porta poderia
denunciá‐la. Ou matá‐la. Ou a pessoa podia fingir com‐ prar, e então
não pagar e ameaçar entregá‐la à Gestapo a troco de uma recompensa.
Nesse caso, que poderia ela fazer? E pensar que tinha tra‐ balhado no
tribunal, com advogados, justiça, leis que faziam sentido. Já não.
Noite após noite, havia mulheres que saíam assim, algumas delas mães a
tentar alimentar a família.
Outras
raparigas ajudavam as respetivas famílias realizando trabalhos
forçados para as entidades municipais ou empresas privadas. Todos os
judeus dos catorze aos setenta e cinco deviam trabalhar, mas, por vezes,
rapariguinhas muito novas calçavam sapatos de salto alto para
parecerem mais velhas porque queriam comida. Alguns judeus viram‐se
obrigados a ser alfaiates, costureiros e carpinteiros; outros demoliam
casas, reparavam estradas, limpavam as ruas, descarregavam bombas de
comboios que, por vezes, explodiam e os matavam. Apesar de palmilharem
quiló‐ metros para ir trabalhar a partir pedra, amiúde com neve pelos
joelhos e um frio de rachar ossos, famintas e esfarrapadas, as mulheres
eram espancadas sem piedade se pediam um momento de descanso. As pessoas
escondiam as suas feridas e morriam mais tarde de infeções. Partes do
corpo congelavam. Partiam‐se ossos nos espancamentos.
A autora, Judy Batalion Beowulf Sheehan |
«Ninguém
diz uma palavra», escreveu uma jovem trabalhadora a respeito das
marchas às quatro da madrugada para ir trabalhar, cerca‐ das por
guardas nazis. «Tenho o cuidado de não pisar os calcanhares da pessoa
que vai à minha frente, a tentar calcular na escuridão o ritmo e o
comprimento das suas passadas. Avanço por entre o vapor da sua
respiração, o cheiro de roupas que não foram lavadas, o fedor das
casas apinhadas à noite.» E depois havia as chegadas tardias a casa,
cheias de nódoas negras, rígidas, desapontadas por não terem
conseguido fazer passar nem sequer uma cenoura para a família por causa
das revistas à entrada do gueto. Não obstante o terror de serem
espancadas, voltavam aos locais de trabalho na manhã seguinte,
incluindo mães que tinham de deixar os filhos entregues a si mesmos.
Que outra coisa podiam fazer?
Cuidar
das famílias nos guetos, manter as crianças judias vivas – alimentar
física e espiritualmente a próxima geração – era a forma de
resistência das mães. Os homens eram levados ou fugiam, mas as
mulheres ficavam para tratar dos filhos e, frequentemente, dos pais.
Como Leah, muitas estavam familiarizadas com gerir dinheiro e comida,
só que tinham agora de trabalhar em condições de privação extrema.
Os cupões para um dia – que permitiam comprar pão de milho feito com
grãos, caules e folhas, um pouco de sêmea, uma pitada de sal, um
punhado de batatas – não proporcionavam alimento suficiente nem sequer
para o pequeno‐almoço.
Os
pobres eram os que mais sofriam, notava Renia, por não terem dinheiro
para comprar os bens vendidos no mercado negro. Uma mãe faria tudo para
evitar ter de ver os filhos morrer de fome – «a pior de todas as
mortes», refletiria Renia. Incapazes de satisfazer as necessidades
básicas da existência, procuravam nutrientes, escondiam os filhos da
violência e, mais tarde, das deportações (mantinham‐nos calados em
esconderijos, por vezes obrigadas a abafar o choro dos bebés), tratavam
as doenças o melhor que podiam sem medicamentos. As mulheres do gueto,
sempre vulneráveis ao assédio sexual, saíam para trabalhar ou
contrabandear, correndo o risco de serem apanhadas e deixarem os filhos
sozinhos no mundo. Outras entregavam os bebés a cuidadoras polacas,
frequentemente a troco de substanciais quantias, e por vezes tinham de
ver ao longe os filhos serem maltratados ou intoxicados com mentiras a
respeito delas. No fim, inúmeras mães que poderiam ter sido poupadas
para trabalhar acabaram por ser mandadas para as câmaras de gás com os
filhos, recusando deixá‐los morrer sozinhos – a confortá‐los e a
abraçá‐ ‐los até ao último segundo.
"A
fome, a infestação, o fedor dos corpos por lavar, a falta de trabalho
ou de qualquer rotina diária, o medo constante de ser apanhado e
obrigado a fazer trabalhos forçados e espancado eram a realidade
quotidiana. As crianças brincavam aos nazis contra judeus na rua. Uma
menina gritava ao gato da família que não saísse do gueto sem levar
os documentos. Não havia dinheiro para as velas do Hanukkah nem para os
challahs do Sabat"
Quando
os maridos continuavam em casa, os conflitos conjugais surgiam com
regularidade. Os homens, que alegadamente tinham menos tolerância à
fome, tendiam a comer tudo o que encontrassem. As mulheres precisavam de
esconder as rações. O sexo num quarto apinhado e entre corpos
famintos não era de um modo geral uma possibilidade, o que acrescia à
tensão. De acordo com os registos do gueto de Łódź, muitos casais
pediram o divórcio, não obstante o facto de ser solteira tornar uma
pessoa mais suscetível de ser deportada e morta. Em muitos casos, eram a
primeira geração a beneficiar de casamentos por amor em vez de
uniões combinadas, mas a fome crónica, a tortura e o terror
desintegravam os laços românticos.
As
mulheres, que foram treinadas nas competências domésticas, tinham
também o cuidado de se manterem livres de parasitas, limpas e
arranjadas – coisas que contribuíam para a sua sobrevivência física e
emocional. Alguém dizia que as mulheres sofriam mais com a falta de
higiene do que com a fome.
A
despeito de todos os esforços, a falta de comida, a sobrelotação e a
ausência de água corrente e serviços sanitários levaram a uma
epidemia de tifo no gueto de Jędrezejów. As casas onde se declarava a
infeção eram entaipadas e os doentes levados para um hospital judaico
criado de propósito para combater esta doença, que se propagava
através dos piolhos. A maior parte dos doentes morria devido à falta
de tratamento. Balneá‐ rios especiais desinfetavam corpos e roupas, que
ficavam muitas vezes inutilizáveis. Renia ouviu rumores a respeito de
os alemães proibirem o tratamento dos doentes de tifo e ordenarem o seu
envenenamento. (Os nazis eram notoriamente germofóbicos. No hospital
de Cracóvia, havia judeus não infetados que se misturavam com os
contagiados para salvar a vida.)
A
fome, a infestação, o fedor dos corpos por lavar, a falta de trabalho
ou de qualquer rotina diária, o medo constante de ser apanhado e
obrigado a fazer trabalhos forçados e espancado eram a realidade
quotidiana. As crianças brincavam aos nazis contra judeus na rua. Uma
menina gritava ao gato da família que não saísse do gueto sem levar
os documentos. Não havia dinheiro para as velas do Hanukkah nem para os
challahs do Sabat. Até os judeus ricos acabaram por ficar sem o
dinheiro que tinham levado para o gueto ou que receberam da venda dos
seus bens. Embora vendessem as suas coisas aos polacos por quase nada, o
mercado negro era exorbitante. Uma fatia de pão vendida no gueto de
Varsóvia custava a um judeu pouco mais de 50 euros atuais.
Naquele
momento, diante da porta, era a oportunidade de Renia; estava
desesperada por fundos. Como tantas outras mulheres por todo o país,
não se considerava uma pessoa política. Não pertencia a qualquer
organização, e no entanto ali estava, a arriscar a vida em ação.
Estendeu o punho fechado, cada pancada uma potencial bala.
Foi
uma mulher que lha abriu, pronta para negociar. Ficam felizes por
comprar, pensou Renia. Não têm mais nada em que gastar o dinheiro. A
mulher ofereceu uma pequena quantidade de carvão. Renia pediu umas
poucas moedas, muito menos do que valiam os panos de renda da família.
«Está bem.» Afastou‐se apressada, com o coração a bater. Tocou nas
moedas que levava no bolso. Uma miséria, mas ao menos tinha conseguido
qualquer coisa.
Uma
manhã, a temida pancada na porta. A milícia. Uma ordem. A comunidade
judaica teria de escolher 220 homens fortes e saudáveis para serem
levados até um campo de trabalhos forçados fora da povoação. Aaron, o
irmão mais novo de Renia, fazia parte da lista.
Os
Kukiełka suplicaram‐lhe que não fosse, mas ele receou as
consequências da desobediência: a família inteira podia ser
executada. As entranhas de Renia arderam ao ver aquela figura alta e
loura sair porta fora. Juntaram os homens no quartel dos bombeiros, onde
foram examinados por médicos e torturados pela Gestapo, obrigados a
cantar e dançar temas judaicos e a espancarem‐se uns aos outros até
sangrarem, enquanto a Gestapo ria. Quando chegou o autocarro para os
levar, os esbirros da Gestapo, com cães e pistolas‐metralhadoras,
espancaram os retardatários com tal violência que os outros rapazes
tiveram de carregá‐los para o veículo.
Camaradas do Liberdade em Budapeste, 1944, incluindo Renia Kukiełka (embaixo à direita). |
O
irmão de Renia dir‐lhe‐ia mais tarde que estava convencido de que o
levavam para ser executado, mas que, para sua surpresa, o haviam deixado
num campo de trabalhos forçados perto de Lvov. Pode ter sido o campo
Janowska, um campo de trânsito que também tinha uma fábrica onde os
judeus eram obrigados a trabalhar gratuitamente em carpintaria e
metalurgia. Os alemães criaram mais de 40 mil campos para facilitar o
assassínio das «raças indesejáveis», incluindo campos de trânsito,
campos de concentração, campos de extermínio, campos de trabalho e
combinações de todos eles. As SS arrendavam alguns dos campos de
trabalho a empresas privadas, que pagavam por escravo. As mulheres
custavam menos, o que encorajava essas empresas a «alugá-las»,
colocando‐as a executar as tarefas mais árduas. Por toda a Polónia,
nos campos de trabalho estatais ou privados, as condições eram
atrozes, e morria‐se de fome, espancamentos constantes, doenças
provocadas pelo ambiente insalubre e exaustão por excesso de trabalho.
Nos primeiros anos da guerra, desmoralizavam‐se os prisioneiros dos
campos de trabalho ao obrigá‐los a realizar tarefas humilhantes e,
muitas vezes inúteis, como partir pedra. Com o tempo, cresceu a
necessidade de trabalhadores para fazer face às necessidades do
exército alemão, e as tarefas diversificaram‐se. A ementa diária num
dos campos consistia de uma fatia de pão e uma tigela de sopa preta
feita com ervilhaca, uma planta que servia para alimentar o gado e sabia
a pimenta cozida. A perspetiva do envio para um campo de trabalho
escravo aterrorizava os jovens judeus.
Não
obstante o total colapso social do país, os correios ainda
funcionavam, e um dia chegou uma carta. A tremer, Renia desdobrou as
páginas e ficou a saber que Aaron estava vivo. Mas os horrores da sua
vida chocaram‐na: os rapazes dormiam nos estábulos, em camas de palha
nunca mudadas; trabalhavam do nascer ao pôr do sol, morriam de fome e
gelavam, alimentavam‐se de bagas silvestres e ervas que apanhavam do
chão. Eram espancados todos os dias, levados para casa aos ombros dos
camaradas. À noite, eram obrigados a fazer ginástica, e se não
aguentassem – morte. Os piolhos devoravam‐nos vivos. Não havia
lavatório. Nem latrina. O fedor era letal. Vinha então a disenteria.
Apercebendo‐se de que os seus dias estavam contados, muitos rapazes
fugiam. Mas por causa das roupas que vestiam, conspícuas no frio do
inverno, evitavam as povoações e cortavam por campos e florestas. A
Gestapo perseguia‐os, ao mesmo tempo que torturava os que tinham ficado.
Renia
apressou‐se a enviar ao irmão encomendas de ajuda. Incluía roupas com
dinheiro cosido nos bolsos para que ele pudesse comprar um bilhete para
casa se conseguisse fugir. Todos os dias estava atenta ao regresso de
quaisquer refugiados. O aspeto deles era assustador: reduzi‐ dos a pele e
osso, corpos cobertos de úlceras e impingens, roupas infestadas de
parasitas, membros inchados. De repente, rapazes pareciam débeis
anciãos. Onde estava Aaron?
Eram
tantos os judeus enviados para o desconhecido. «Um pai, um irmão, uma
irmã, uma mãe», escreveu Renia. «Em todas as famílias faltava uma
pessoa.»
Porém,
tudo pode tornar‐se relativo. Renia não tardaria a saber que faltar
só «uma pessoa» era bom. Até «uma pessoa viva» significava que se
tinha sorte.
Renia sabia que precisava de fazer a sua própria sorte.
"Foi
assim que os judeus do gueto começaram a sentir‐se verdadeiramente
ocupados. O seu território, a sua pele, até os seus pensamentos
estavam ameaçados. Qualquer coisa que dissessem ou fizessem – o mais
pequeno gesto ou movimento – podia resultar na execução do autor e de
toda a sua família. Todos os elementos da sua existência física e
espiritual estavam sob vigilância. «Ninguém podia respirar, tossir ou
chorar sem ter um público», relatava uma jovem habitante do gueto. Em
quem se podia confiar? Quem estava à escuta?"
Uma
noite, com o crepúsculo a pesar sobre os decrépitos telhados do
gueto, chegou uma notícia. Cada mensagem, cada pequena nota, tinha o
potencial de alterar a vida de uma pessoa para sempre, de esmagar o
frágil conforto, fosse ele qual fosse, que essa pessoa tivesse
conseguido construir para se aguentar. Dessa vez, os Kukiełka, com as
outras 399 famílias mais ricas do gueto, seriam obrigadas a abandonar a
povoação. À meia‐noite.
Renia
tinha visto como os ricos tentavam pagar para encontrar uma forma de
contornar os decretos, subornando o Judenrat para pôr outros nos seus
lugares ou contratando operários para trabalhar por eles. As pessoas
lidavam com as dificuldades das maneiras que conheciam, jogavam com os
sistemas como sempre tinham jogado – só que agora os jogos não tinham
regras. Os ricos só eram respeitados por outros judeus; os alemães
não queriam saber. As famílias mais abastadas ten‐ taram usar o
dinheiro para escapar também àquela partida forçada, mas os cofres do
Judenrat estavam cheios com o produto de subornos anteriores – na
realidade, oferecia a cada família rica 50 złotys para des‐ pesas de
recolocação.
Os
Kukiełka amontoaram à pressa os seus pertences num trenó e partiram a
meio da noite. Estava um frio de gelar em Wodzisław, onde foram
largados. Aquilo fazia parte do plano alemão, deduziu Renia: transferir
os judeus de uma povoação para outra sem outro propósito que não
fosse envergonhá‐los e deprimi‐los. Renia tiritava, apertava melhor o
casaco à volta do corpo (era uma sorte ainda ter um casaco) e
testemunhava, impotente, como mães desesperadas viam a carne dos seus
bebés ficar azulada por causa do frio. Os judeus de Wodzisław dei‐
xaram as mães e os bebés meio‐mortos instalarem‐se nos redis das ove‐
lhas, nos pátios, o que pelo menos os protegia um pouco dos ululantes
ventos.
Por
fim, os judeus foram todos encaminhados para a gélida sinagoga, de
cujas paredes pendiam pingentes de gelo, e receberam uma malga de sopa
de uma cantina comunitária. Em tempos as pessoas mais ricas e
influentes da sua comunidade, aceitavam agora que a única coisa
importante era manterem‐se vivos. «O resultado foi que os alemães
endureceram o coração dos judeus», escreveu Renia, a sentir o
endurecimento do seu próprio âmago. «Agora, cada um só se preocupava
consigo mesmo, disposto a tirar a comida da boca dos irmãos.» Como
comentava um sobrevivente a respeito do calejamento da alma que, com o
tempo, aconteceu no gueto de Varsóvia: «Se alguém via um cadáver na
rua, tirava‐lhe os sapatos.»
Tal como acontecera em todos os guetos, os decretos tornavam‐se cada vez mais bárbaros.
«Um
dia, os alemães inventaram uma nova forma de matar judeus», escreveu
Renia. Seria possível alguém sentir‐se ainda mais aterrorizado? De
algum modo, a despeito de tudo, o choque não tinha ainda desaparecido.
Com cada sádica inovação, Renia sentia um medo doentio, uma noção
mais profunda da malícia sem limites, da miríade de maneiras como os
assassinos podiam infligir violência. «À noite, aparecia um autocarro
cheio de homens da Gestapo perdidos de bêbedos.» Traziam uma lista com
30 nomes, arrancavam esses homens, mulheres e crianças de suas casas, e
espancavam‐nos antes de os abater a tiro. Renia ouvia os gritos e os
disparos, e, de manhã, via os corpos espalhados pelos becos, negros e
azuis das pancadas. Os insuportáveis lamentos das famílias
destroçavam‐lhe o coração. Sempre que acontecia, imaginava que um dos
seus podia ser o próximo. A comunidade demorava dias a acalmar depois
destes incidentes. Quem fazia a lista de nomes? Com quem era preciso ter
cuidado? Quem antipatizava com quem? As pessoas tinham medo até de
falar.
Foi
assim que os judeus do gueto começaram a sentir‐se verdadeiramente
ocupados. O seu território, a sua pele, até os seus pensamentos
estavam ameaçados. Qualquer coisa que dissessem ou fizessem – o mais
pequeno gesto ou movimento – podia resultar na execução do autor e de
toda a sua família. Todos os elementos da sua existência física e
espiritual estavam sob vigilância. «Ninguém podia respirar, tossir ou
chorar sem ter um público», relatava uma jovem habitante do gueto. Em
quem se podia confiar? Quem estava à escuta? Ter uma cândida conversa
com uma velha amiga exigia combinar com antecedência um local de
encontro, e então caminharem juntas como se fossem encarregar‐se de
qual‐ quer tarefa doméstica. Os judeus polacos temiam que até os seus
sonhos pudessem traí‐los.
Por
vezes, a Gestapo chegava ao gueto a meio da noite e pura e simplesmente
matava pessoas. Uma noite, todos os membros do Judenrat e as respetivas
famílias foram executados. Numa outra noite memorável, homens da
Gestapo transportados em vários autocarros obrigaram judeus seminus,
descalços ou com roupas de dormir, a sairem de casa e a correrem à
volta do mercado coberto de neve enquanto os perseguiam com bastões de
borracha, ou lhes diziam que ficassem deitados na neve durante meia
hora, ou forçavam‐nos a fustigarem‐se uns aos outros com chicotes, ou a
deitarem‐se no chão e deixar que veículos militares lhes passassem
por cima. Os nazis despejavam água sobre as pessoas geladas e
obrigavam‐nas a permanecer na posição de sentido. «Uma pessoa nunca
sabia se estaria viva na manhã seguinte.» Era esta a nova realidade de
Renia.
Começaram
os pesadelos diurnos. O fogo das metralhadoras ecoava na floresta. Os
nazis obrigavam os judeus a cavar as suas sepulturas e depois a cantar e
dançar dentro das covas até que os abatiam. Obrigavam outros judeus a
enterrar as vítimas – ou, por vezes, a enterrá‐las vivas. Também os
judeus mais idosos eram obrigados a cantar e dançar, e os alemães
arrancavam‐lhes os pelos da barba um a um e esbofeteavam‐nos até
cuspirem os dentes.
O
gueto era uma sociedade fechada – não se permitiam os rádios –, mas
Renia tinha formas de obter informação. Centenas de mulheres eram
transportadas para locais desconhecidos e nunca mais se sabia delas. Um
soldado mais ingénuo revelou‐lhe que levavam essas mulheres para a
frente de guerra, onde serviam como prostitutas. Contraíam doenças
sexualmente transmissíveis e eram queimadas vivas ou mortas a tiro.
Fascinada, ouviu‐o dizer que, certa vez, vira centenas de jovens
revoltarem‐se. Atacaram os nazis, roubaram‐lhes as baionetas,
feriram‐nos com elas, arrancaram‐lhes os olhos e depois mataram‐se, a
gritar que nunca conseguiriam forçá‐las a ser prostitutas. As
raparigas que não morreram acabaram por ser dominadas e violadas.
O
que podia fazer uma rapariga de quinze anos? Renia mantinha‐se
vigilante, sabendo por instinto que tinha de recolher informação e
enfrentar a verdade. Ouvia os rumores que chegavam das outras
povoações. As pessoas morriam de fome, mendigavam cascas de batata,
comida do lixo. Os judeus matavam‐se e matavam os filhos para não
caírem nas mãos dos alemães. Transportes inteiros – por vezes 10 mil
judeus – eram obrigados a caminhar do gueto até à estação
ferroviária; partiam das suas cidades para lugares desconhecidos.
Selecionavam‐se as pessoas e, supostamente, colocavam‐nas a trabalhar.
As comunidades judaicas ouviam falar de uns poucos escolhidos que,
pensava‐se, eram deixados para trás intencionalmente pelos alemães
para espalhar desinformação. A maior parte das pessoas pura e
simplesmente desaparecia. «Deixavam‐nos como que sugadas por um abismo»,
escreveu Renia. Para onde ia toda aquela gente?
Os
nazis privilegiavam o castigo coletivo. As SS decretavam que qual‐ quer
polaco que ajudasse um judeu seria morto. Os judeus do gueto temiam
que, se fugissem, as suas famílias fossem assassinadas como
represália. Ficar e proteger a comunidade? Ou fugir? Fugir, lutar.
A
matança era constante. Os comités de extermínio constituídos por
folksdeutsch, «selvagens ucranianos», como Renia escreveu, e «alemães
jovens e saudáveis para os quais a vida humana nada significava»,
puseram mãos à obra. «Estavam sempre sedentos de sangue», disse Renia a
respeito dos nazis e dos seus colaboradores. «Era a natureza deles.
Como um vício em álcool ou em ópio.» Aqueles «cães negros» usavam
uniformes pretos e quépis decorados com caveiras. Quando apareciam com
os seus rostos pétreos, olhos esbugalhados e grandes dentes – animais
selvagens prontos a atacar –, toda a gente sabia que metade da
população seria executada naquele dia. No instante em que eles
entravam no gueto, as pessoas corriam a esconder‐se.
«Para eles», escreveu Renia, «matar uma pessoa era mais fácil do que fumar um cigarro.»
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário