As Forças Armadas existem para defender o país, a Constituição, a lei e a ordem, não para estar a serviço político ou para se submeter a caprichos do governante de plantão. Editorial da Gazeta do Povo:
O
general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde e atual secretário de
Estudos Estratégicos do Palácio do Planalto, não será punido pela
participação em um ato de apoio ao presidente Jair Bolsonaro, realizado
no Rio de Janeiro em 23 de maio. A decisão de arquivar o processo contra
Pazuello foi tomada pelo comandante da força, general Paulo Sérgio
Nogueira de Oliveira, e divulgada na quinta-feira em nota curta,
informando que, na avaliação do comandante, “não restou caracterizada a
prática de transgressão disciplinar” da parte do general. A decisão foi
elogiada de forma indireta por Bolsonaro e criticada abertamente por
deputados de oposição, pelo ministro do STF Marco Aurélio Mello e pelo
general da reserva Carlos Alberto Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro
demitido em 2019.
Ao
contrário da maior liberdade de expressão e ação concedida pelas regras
militares aos seus oficiais da reserva, o Regulamento Disciplinar do
Exército restringe enormemente a participação de militares ainda na
ativa em atos políticos. Seu Anexo I traz a lista de infrações e inclui,
no item 57, “manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que
esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza
político-partidária”. Sendo Pazuello um general, a aplicação das
punições elencadas no artigo 24 seria atribuição do comandante do
Exército, que optou por não fazê-lo e, com isso, abre um precedente
perigosíssimo que reverte uma conquista da sociedade.
O
espírito da regra militar é muito claro: preservar a instituição de um
papel político que claramente não lhe cabe, por mais que inúmeros
governantes tenham sucumbido à tentação de fazer do Exército um apêndice
de seu projeto de poder. Já houve quem tentasse aparelhar a cúpula da
força, e já houve quem buscasse insuflar a tropa, como quis fazer João
Goulart, levando por sua vez ao golpe militar de 1964, cujas
consequências mostraram os males da simbiose entre o poder militar e o
poder político. Na “autocrítica” feita pelo PT após o impeachment de
Dilma Rousseff, em 2016, um dos “erros” apontados pelos petistas foi
justamente não ter colocado um cabresto nas Forças Armadas, além de
outras instituições. É salutar, portanto, que o Exército e as outras
armas mantenham distância da disputa político-partidária, daí a
gravidade tanto da participação de Pazuello no ato de apoio a Bolsonaro
quando da decisão de não aplicar-lhe punição alguma, nem mesmo a mais
branda, de advertência.
A
manifestação de motociclistas não era um evento institucional, mas um
ato de apoio político ao presidente da República – e esse caráter era
tão evidente que nem mesmo seria preciso que Bolsonaro pedisse votos
para sua reeleição. Tampouco se pode argumentar que Pazuello, sendo
general, estivesse no palanque de Bolsonaro por ordem do presidente,
comandante-em-chefe das Forças Armadas (o que serviria de justificativa,
segundo o artigo 18 do Regulamento Disciplinar do Exército), já que os
próprios envolvidos falam apenas em um “convite”. Aliás, o argumento que
isenta subordinados de responsabilidade por estarem obedecendo a ordens
ilícitas ou imorais de seus superiores já é inválido desde a década de
40 do século passado.
A
omissão do comandante do Exército, sem exagero algum, poderia muito bem
ser enquadrada no item 5 da lista de transgressões, “deixar de punir o
subordinado que cometer transgressão, salvo na ocorrência das
circunstâncias de justificação previstas neste Regulamento”. Ela cria
precedentes gravíssimos, porque deixa a porta aberta para futuras
manifestações políticas, em qualquer direção, de militares da ativa.
Dias depois do ato de motociclistas, o vice-presidente Hamilton Mourão,
general da reserva, deixou claro o perigo ao dizer que “a regra tem de
ser aplicada para evitar que a anarquia se instaure dentro das forças,
porque, assim como tem gente que é simpática ao governo, tem gente que
não é. Então, cada um tem de permanecer dentro da linha que as Forças
Armadas têm de adotar. As Forças Armadas são apartidárias. Elas não têm
partido. O partido das Forças Armadas é o Brasil”. Mourão sabe bem do
que fala: em 2015, foi demitido do Comando Militar do Sul e transferido
para um cargo burocrático após criticar a então presidente Dilma
Rousseff e pedir “o despertar de uma luta patriótica”; em 2017, quando
fez um discurso golpista em uma loja maçônica, só escapou porque o então
comandante Eduardo Villas Bôas avaliou que o general estava prestes a
passar para a reserva e uma nova punição poderia atiçar os defensores de
Mourão.
As
Forças Armadas são instituições de Estado, não de governo. Existem para
defender o país, a Constituição, a lei e a ordem, não para estar a
serviço político ou para se submeter a caprichos do governante de
plantão, independentemente de sua orientação ideológica. Ainda que este
governante seja o comandante-em-chefe da tropa, sua posição não legitima
qualquer convocação de oficiais para atos em seu apoio, fazendo letra
morta do regulamento militar ou, pior ainda, distorcendo-o para admitir
manifestações políticas apenas de um lado, o governista. A relativização
do princípio da isenção do poder armado nos assuntos políticos é
ingrediente que incendeia ainda mais a polarização por que passa o país.
Nada de bom há de sair daí.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário