"Era uma vez um sonho", com Glenn Close e Amy Adams. |
O coração da América não vai se entregar sem luta e Hillbilly Elegy é uma prova de que há uma batalha de vida ou morte pela própria sobrevivência. Uma guerra que, apesar da derrota de Donald Trump, promete batalhas ainda mais violentas nos próximos anos. Alexandre Borges para a Gazeta:
Não
sou particularmente fã de Ron Howard (alguém é?). Mesmo seus filmes
mais aclamados e premiados, como Apolo 13 e Uma Mente Brilhante, não
chegam a ser inovadores ou surpreendentes a ponto de merecem um lugar no
Hall da Fama do cinema. Alguns são equívocos constrangedores, como O
Código da Vinci ou Han Solo. Os que gosto, como Frost/Nixon e EdTV,
pouca gente lembra ou liga.
Howard
venceu na profissão, mas não fez história. Ache o que quiser dele, é
aparentemente um sujeito de bom trato, tímido e nada deslumbrado, avesso
a polêmicas e, apesar de ideologicamente alinhado com Hollywood, não
tem o ativismo político como foco. É um contador de histórias com
acertos e erros e um compromisso genuíno com sua arte.
O
pacato e afável Howard é a mais nova vítima da cultura do cancelamento,
uma espécie de “fascismo do bem” que patrulha, persegue e exige uma
conformidade política de tudo e de todos. Ele ousou contar em Hillbilly
Elegy (“Era uma vez um sonho” no Brasil), filme baseado no best-seller
autobiográfico de J. D. Vance, os conflitos e dramas reais de três
gerações de uma família pobre da região dos Apalaches, uma das mais
atingidas pela rápida desindustrialização da América nas últimas
décadas. O termo “apalachiano” é considerado nada lisonjeiro para os
americanos do cinturão da ferrugem.
Assim
como J. K. Rowling, a mãe de Harry Potter, Howard descobriu da pior
maneira que a conformidade tácita com os totalitários do seu próprio
lado ideológico já não é mais garantia de ser preservado ou poupado de
ataques. É preciso ter lado, ser panfletário e abraçar todas as
bandeiras, causas e narrativas da extrema-esquerda identitária para
sobreviver num ambiente cultural cada vez mais intolerante das elites
costeiras ditas progressistas.
O
curioso da controvérsia sobre Hillbilly Elegy é que o filme não é nada
mais que um passatempo, com uma mensagem tipicamente americana de
superação das piores circunstâncias a partir de boas escolhas, trabalho
duro e responsabilidade individual, e que dificilmente causaria qualquer
polêmica há dez anos ou mais. No atual clima político e cultural
radicalizado da América, não existe mais neutralidade e qualquer menção
ao “sonho americano” é tratado como “racismo”, o xingamento oficial dos
sinalizadores de virtude.
O
contexto social que envolve a trama, muito presente no livro que deu
origem ao filme, foi quase soterrado por Howard. Ele tinha a ilusão de
despolitizar a obra e focar apenas no drama familiar de J. D. Vance e
nas atuações memoráveis de Glenn Close e Amy Adams, e sua reação
estupefata com os ataques que sofreu de críticos e de seus pares pareceu
legítima.
Aos
66 anos, Howard foi forçado a entender que sua geração de
progressistas, autoproclamada “liberal”, já é considerada inaceitável
pelos novos jacobinos da imprensa, da política e das elites costeiras.
Hillbilly Elegy seria até a década passada apenas mais um “Oscar bait”,
um típico filme produzido com a intenção de conquistar estatuetas, e
hoje é capaz de não apenas ser esnobado na premiação como gerar
problemas sérios para a carreira de Howard.
Hillbilly
Elegy, uma produção da Netflix, cometeu o grave crime político de ter
um olhar condescendente e compreensivo para o drama vivido pelos brancos
“apalachianos”, os tais caipiras do meio-oeste, uma ofensa às
narrativas que repetem que basta ter a pele clara para ser um
privilegiado opressor e só negros podem sofrer ou serem pobres no país e
nas telas.
O
livro de J D Vance, que vendeu mais de três milhões de cópias e serviu
quase como um estudo antropológico sobre os eleitores de Trump em 2016,
resume o abismo social, cultural e político entre as “duas Américas” que
estão cada vez mais distantes e desconfiadas uma da outra, a ponto de
fazer com que as elites costeiras, hegemônicas nos meios de comunicação e
na cultura, sequer permitam que outra parte do país, encrustada em seu
coração, seja entendida e, no limite, ajudada.
Para
os novos totalitários, os brancos dragados por sucessivas recessões e a
fuga de oportunidades e empregos de suas regiões, são para as elites
costeiras apenas perdedores da globalização, dinossauros de uma América
racista e branca que deveria apenas desaparecer. O uso de drogas, a
desesperança, os suicídios e o ostracismo social destas pessoas não
deveria ser compreendido, pelo contrário, a decadência da América rural
deve ser comemorada e até acelerada. Entender estas pessoas é respeitar
seus desafios, muitos deles estruturais, enquanto deveriam apenas
caminhar para a extinção.
Há
um motivo claro para que o que menos se fale sobre Hillbilly Elegy é
sobre o filme em si, que deve ser visto mas está longe de ser
extraordinário, como quase tudo que Howard fez na vida. A família de J.
D. Vance, vítima direta da exportação dos empregos de “colarinho azul” e
das fábricas do meio-oeste, é um retrato de uma América conservadora e
patriota que ainda luta para sobreviver. O sucesso de um de seus filhos,
que superou as dificuldades e hoje é um bem sucedido investidor,
escritor e advogado, é simplesmente inaceitável.
O
coração da América não vai se entregar sem luta e Hillbilly Elegy é uma
prova de que há uma batalha de vida ou morte pela própria
sobrevivência. Uma guerra que, apesar da derrota de Donald Trump,
promete batalhas ainda mais violentas nos próximos anos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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