Foi Lênin, o grande reformador humanitário, que escreveu que a liberdade era uma coisa tão preciosa que devia ser racionada... procedendo desde logo ao seu racionamento. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Andam
a classe académico-mediática e parte da classe política muito
preocupadas com a “democracia iliberal” – na Hungria, na Polónia, nos
Estados Unidos de Trump, no Brasil de Bolsonaro e até no Reino Unido de
Boris Johnson, entre outros locais do globo, aparentemente infectados
pelo novo vírus.
E
como toda a “democracia iliberal” é de direita, ou melhor, de
extrema-direita (ou assim o diz um coro de cidadãos vigilantes das mais
diversas mas sempre democráticas proveniências), a “direita-moderada”
tende a pôr máscara que a esquerda vivamente aconselha aos grupos de
risco. E faz-se também vigilante; atentíssima aos virais desvios
iliberais ou às ameaçadoras derivas antidemocráticas que lhe chegam
sempre e só da direita.
E
é bom que se faça vigilante e que esteja atenta, até porque não vivemos
ainda numa democracia plena, numa democracia liberal e madura, como a
da Venezuela, por exemplo. Ali, no último Domingo, 6 de Dezembro,
realizaram-se eleições parlamentares. Na Assembleia legislativa, que
agora terminou o mandato, a oposição tinha 112 lugares em 167; estava,
portanto, em maioria, o que, não impedindo a marcha da democracia
liberal chavista-madurenha, constituía um desnecessário estorvo – pelo
que o Presidente Maduro, para continuar a levar por diante uma obra
humanitária que já obrigou cinco milhões de ingratos venezuelanos a
abandonar o país (capitalistas, reaccionários e proto-fascistas), se viu
forçado a ampliar mais ainda as já amplas liberdade democráticas
venezuelanas, aumentando o número de deputados para 277. E o facto de se
terem abstido 80% dos eleitores só veio provar uma de duas coisas: ou
que os fascistas que ainda não abandonaram o país continuam a boicotar a
democracia; ou que o bom povo progressista não necessita já de ir às
urnas porque deposita nas sábias mãos de Maduro a boa condução da
democracia liberal.
Interrupção Involuntária da Liberdade de Expressão
Outra
forma a que recorrem os direitistas iliberais, jurados inimigos da
liberdade, do progresso e da humanidade, é a disseminação de fake-news e
de “mensagens de ódio”. E perante isto, o que pode a Esquerda liberal
fazer senão, de coração partido, optar pela Interrupção Involuntária da
Liberdade de Expressão?
Foi
o que a maioria progressista que governa em Madrid se viu forçada a
fazer, ao aprovar no Congresso dos Deputados uma proposta de lei do
Unidas Podemos para “facilitar o controlo e a eliminação” das “mensagens
de ódio” que a direita divulga nas redes sociais. Uma lei que, ao
contrário do que pretende a direita do Vox, do Partido Popular e do
Ciudadanos, secundada por alguns cronistas mais reaccionários, nada tem
que ver com o Exame Prévio, esse nefasto instrumento da ditadura
franquista e salazarista, já que é de defesa liberal da verdade contra a
iliberal propagação da falsidade que se trata. E, de resto, compará-la à
Censura Prévia é já pura desinformação, até porque a “expressão” – caso
se afigure deficiente ou incompatível com a vida em democracia liberal –
não é previamente amordaçada: só é interrompida depois de gerada ou
emitida.
O
mote já tinha sido dado na democrática e liberal América do Norte,
quando o Twitter e o Google interromperam a circulação de certas
notícias ou descontinuaram mensagens falsas e opiniões perigosas para a
democracia, como as do Presidente Donald Trump e de outros iliberais.
Isto sem nunca recorrer à censura prévia, já que só depois de examinados
cuidadosamente os conteúdos, com isenção esclarecida e em prol da
verdade, pôde o capital que hoje açambarca e domina as novas formas de
imprensa proceder à interrupção da liberdade de expressão. O pragmático
Lenine ter-se-ia orgulhado dos novos híper-capitalistas, festejando a
janela de oportunidade aberta pelo estranho facto de parte dos
arqui-milionários do high-tech padecerem agora de versões pós-modernas
da “doença infantil do comunismo”.
Ideias que matam
É
bom recordar Vladimir Illich Ulianov, até porque estamos num tempo em
que vai ser preciso estar atento às palavras e aos seus autores. E foi o
democrático Lenine, o grande reformador humanitário, que, na sua
infatigável luta “por uma sociedade mais justa” escreveu que “as ideias”
eram “mais letais que as armas”. Daí as suas justas e prudentes
palavras sobre a liberdade: “A liberdade é uma coisa tão preciosa que
devia ser racionada”. E com a sua habitual rapidez em juntar o
pensamento à acção, a palavra à execução, logo tratou de a racionar nos
primeiros dias após a tomada do poder na Rússia. E quanto à liberdade de
imprensa, já avisara:
“A
liberdade de imprensa é também uma das principais palavras de ordem da
‘democracia pura’. Os operários sabem e os socialistas de todos os
países reconheceram-no milhares de vezes, que esta liberdade é um engano
enquanto as melhores impressoras e os stocks de papel forem
açambarcados pelos capitalistas, e enquanto subsistir o poder do capital
sobre a imprensa”.
Foi
de acordo com estes elevados princípios que, em 27 de Outubro de 1917
(9 de Novembro pelo novo calendário), dois dias depois da queda do
Palácio de Inverno, o Conselho dos Comissários do Povo da República
Russa emitiu um decreto sobre a liberdade de imprensa, a verdadeira
liberdade de imprensa, a que devia, antes de mais, aniquilar os
“inimigos da liberdade”; ou, pelo menos, retirar-lhes os seus perigosos
instrumentos.
Assim
o fizeram os Bolcheviques, seguindo as sábias palavras do grande
combatente da verdade (recentemente, e oportunamente, lembradas à nossa,
por vezes infantilizada, descuidada e distraída, esquerda doméstica). E
antes que os capitalistas recorressem às suas fake news, às suas
mensagens de ódio e às suas maquiavélicas artes de sabotagem,
requisitaram tipografias, edifícios, máquinas e stocks de papel. Alguns
jornais da oposição ainda estrebucharam, conseguindo fazer sair alguns
números, mas em Julho de 1918 o assunto estava resolvido.
É
claro que, como o Mal e a Reacção nunca desarmam, alguns destes
capitalistas e aristocratas, juntamente com os intelectuais e
jornalistas seus serventuários, escaparam da Rússia para a Europa
Ocidental, onde prosseguiram as suas maquinações contra a verdadeira
liberdade de imprensa e contra as outras verdadeiras liberdades que a
democracia liberal soviética estava então a instalar.
Em duas semanas, a nova polícia política, a Tcheka, matou mais que a Okhrana czarista em 37 anos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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